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segunda-feira, 27 de maio de 2019

poema náutico


Eu nunca percebi que estava sedado
até, sedento de vida,
enforcar-me nas cordas que ancoravam
um veleiro estacionado.

Rizei o tempo e o frio.
Ora sou deles amigo, com algum temor de traição
inato a quem deseja, mas não ama.

Não sinto o gosto da chuva
apenas o leve temor de morte pneumônica
que, por oculta circunstância,
o trovejo reverberado n’alma aviva.

Escapai, pássaros, para suas ilhas e segundas-feiras sem nome!
Bicai suas presas, forjai sua liberdade, emergida soberana
ao menor tom de ameaça.

O vento permanece soprando para a pedra
e para os cabelos do homem
Não é mensageiro de nada
senão de uma brisa seca que antevê
a rotação das temporadas.

Clidevar Araujo

Flora do Cerrado, poema de Antonio Miranda


Pequis, araticuns,
cajuís.
Veredas da solidão,
arbustos tortuosos, retorcidos,
ungidos sob o sol estival.

Árvores secas, queimadas,
renascidas, tortas,
carcomidas,
entre capins resvalantes
nos interflúvios,
nas encostas pedregosas.
Pedras lunares,
cristais
e flores matinais
entre nasceres e morreres
contumazes.

Tem o araçá agridoce e arbustivo,
tem o bacupari de polpa
sobre caroços tungidos,
escondidos
em cascas coriáceas.
E tem a curriola esverdeada
dos pássaros famintos
e o jatobá das farinhas
preparado com açúcar mascavo.
Tem a mangaba, murici,
mama-cadela, lobeira, gabiroba.
E as palmeiras jerivá,
babaçu, macaúba, guariroba,
emplumando a paisagem
no cerradão do tropeiro
e do peão.
E o peão sabe:
onde tem buriti tem água,
tem vida, brotação.

E haja espaço
e vez para louvar
as orquídeas e as bromélias:
o Cyrthopodium eugenii
cilíndrico obeso bulboso
nos afloramentos alcalinos;
os gravatás de todos os nomes
armados e serrilhados
nas árvores
e nos inselbergues ensolarados.
Testemunhos seculares
de endemismos.

E,
guardião dos campos úmidos
restabelecidos,
o papalantus sobranceiro,
de roseta capilar,
esferoidal,
demarcando distâncias.
As nuvens plúmbeas
querendo afogar a terra,
errantes, suspensas
como cogumelos alucinados,
como coágulos espessos.
Nuvens tingidas de vermelho,
nos horizontes abertos, teatrais,
descortinantes e desconcertantes.

Nuvens orquestrais, plasmadas
contra o azul absoluto, total,
onipresente.
Nuvens movediças, baixas,
volumosas, assim gráceis
ou frágeis, ou densas
e pretensas.
Cupinzeiros,
espinhos e folhas urticantes,
raízes tuberosas,
seivas e entranhas flagrantes
e fragrantes,
colinas ondulantes,
rochosas.

O cerrado é campo aberto
é grota é mata ciliar
é cipó é maritaca e é tucano
quando não é siriema
e tatu e coruja e guará
nas vertentes nas encostas
nos varjões.
Nasce e renasce em ciclos
estelares,
nas constelações decíduas
de folhagens intermitentes,
metamorfoses,
mutações.

A natureza aqui é árdua
e serena,
impassível, fossilizada,
sem beirada.
É fátua
é pródiga, profícua
infalível, implacável
— valham todos os adjetivos!

Antonio Miranda
Ilustração de Álvaro Nunes


Antonio Miranda é um baluarte da auto-organização da poesia brasileira e latino-americana. Quem quiser conhecer um pouco mais o seu belo e importante trabalho basta clicar em: http://www.antoniomiranda.com.br/  Este poema aqui publicado foi extraído do livro "CANTO BRASÍLIA" (Brasília: Thesaurus, 2000).

Triste Ironia


Nas longas agonias, que ela oculta
Nos sorrisos forçados da tristeza...
Carmen Freire

Um eu te amo dito sem amar
É um sorriso audaz sem alegria,
É uma noite clara como o dia,
É dormir sem mais nunca despertar!

No fim, é não ter sonhos a sonhar,
Sentir a luz do sol mórbida e fria,
Viver sem vida e sem qualquer magia
Que nos permita pelos céus voar!

É fácil confundir... sim, é plausível,
Um coração gelado e outro sensível,
Pela linha tênue entre o sublime e o ínfimo...

O Belo pode aparentar horrível,
E o Feio deslumbrador e aprazível;
Só é real aquilo de mais íntimo!

Renan Tempest

segunda-feira, 20 de maio de 2019

A revolução dos buchos


Ela gritava do segundo andar
Para mais um homem que a deixava
Pelo portão da frente
“Eu não preciso de respeito! Muito menos de amor!
Eu preciso de silêncio!
Um terreno para meus ossos cavarem até o útero da terra
Encontrar o esconderijo dos fracos e inocentes
E por tão inocentes amam e odeiam
Não perdoam
Não nascem
Explodem
Saem pelos vulcões e viram cinzas
Viram noticiário e atraem turistas
Poeira refletida
Excessos! Excessos! Excessos!
Somos todos desajustados
Trocamos de mulheres, de homens
Procuramos amigos melhores
Não nos ajustamos com o velho, com o novo, nem com o próximo
A sede mata, a água também
Somos vírus mutantes
Matando, morrendo, mudando e matando
De novo e de novo
Ajustes e desajustes”
O homem não olhou para trás
Ela viu metade da minha cabeça
E você, o que está olhando?
Vim ver o show
Ah! Você é aquele louco que vomita sozinho toda noite!
Quem disse que estou sozinho?
Todo mundo aqui sabe que você é desagradável!
Mais uma vez ela estava certa,
Errada estava a Bíblia
O homem dobrou a esquina
Como todos os outros que saíam
Do segundo andar, pelo portão
E quem ficava com a agonia sonora
Que descia pelos fios de luz por trás da parede
Até o interruptor do quarto
Era o desagradável que vomitava sozinho toda noite
E sempre que algumas coisas se repetiam
Eu pensava brevemente:
“Algumas pessoas sabem o que querem,
Outras apenas querem
Sem saber”

Ramon Carlos



Ramon Carlos (Santa Catarina, 1986). Escreve no site: www.estrAbismo.net. Sua carreira literária resume-se a dois contos publicados em uma antologia, além de materiais diversos em revistas como: Mallarmargens, InComunidade, LiteraLivre, Subversa, Philos, Escambau, Bacanal, Ruído Manifesto, Literatura & Fechadura e Jornal Plástico Bolha.

sábado, 18 de maio de 2019

manual para cachoeiras


acostumar os pés
palmilhar as pedras
                                   com cuidado
muito cuidado
atentar para aranhas

(acima de tudo evitar
escorregar e bater a cabeça:
é muito inconveniente
morrer no rolê)

entrar de frente
recebendo a peito
rosto e boca abertos
as águas geladas
e só então te virares:
deixar a correnteza
lavar da tua pele
das tuas mãos
o amor extinto
que trazes ainda
entranhado em
tuas ranhuras
feito sangue seco

(nós, que amamos
demais
sempre trazemos
sangue seco
–– além do fresco ––
nas mãos)

Thássio Ferreira

segunda-feira, 13 de maio de 2019

Um poema de Yasmin Barros


a grande cisma da igreja católica
é perceber que a libido move o mundo
muito mais do que a fé
e que no centro da vontade humana
em vez de obediência ou temor
- evoé!

prendem sob calças cintos castidades
preciosas prendas corporais
amarram em cíngulo as vontades
sofregando e sofrendo seus desejos
enquanto enxergam os lampejos
de ritos antigos bacanais

canto baco e bacantes – cessai penteu!
que tragam liberdade libertação libertinagem
tudo que for certo errado vivo e meu
não mais corpos prisões em que imprimem
o poder das censuras medievais
fortes como a fragilidade de um hímen

Yasmin Barros

sexta-feira, 10 de maio de 2019

Passos


Em cobertos caminhos passos distraem
o sentido em que vive o prisioneiro na rua
de paralelepípedos colocados lado a lado
o acento o acerto com que se compromete
entre margens o leito esteira espumas
no passado com a nitidez do agora fosse
antes e teria a ilusão do ato gestos
perdidos em acenos de quem reparte
onde o destino se entranha: a máquina
no barulho pela janela aberta paisagem
não são pedras postas ou atirados jogos
em que se enredam as mãos permitem
o encontro fortuito no tombo a pedra
esfola e sangra o pé na pressa
e a presa escapa novamente
a rua passada lembra o começo
e o pavão abre as penas
apenas árvores escutam o segredo
folhas em tapetes onde o passo rápido
do calçado marca o espanto.

Pedro Du Bois