Pierre
acorda sempre às 5h em ponto já tirando a regata e as cafonas meias
compridas. Suando, como de costume, por se recusar a ligar o ar
condicionado. Pelo menos tinha aprendido a abrir as janelas para
entrar um ar. Já solta duas ou três bufadas quando ouve o barulho
da rua, corre à janela para espiar o que os transeuntes estão
fazendo no estimado bairro da Glória. Resmunga enquanto sorri
por dentro pela visão familiar de cada dia. Ele
era um daqueles branquelos com
a pele queimada do sol e, por mais que morasse no Brasil há muitos
anos, sempre ficava com a bochecha vermelha, denunciando a sua
cara de gringo. Usava aquele chapeuzinho de malandro que
ornava perfeitamente com a sua barriguinha de chope, que, de
fato, tinha muita história para contar.
Quando
chegou da França, vinte anos atrás, não tinha escolhido o bairro
para morar, foi a Glória que o escolheu. Pelo menos era isso
que ele contava quando queria romantizar a sua história no Rio de
Janeiro. A verdade é que veio ao Brasil a convite dos sócios de
Gaston Lenôtre para comandar a cozinha de um bistrô na Zona Sul
carioca, métier que
não vingou pela sua falta de assiduidade no trabalho. Rapidamente
deram a cozinha na mão do ainda não tão conhecido Claude
Troisgros, e Pierre ficou de mãos abanando.
Com
dinheiro apenas para mais um mês no apartamento que estava no
Flamengo, descobriu uma pensão simpática e barata na Glória, cuja
dona, Jussara, hoje uma grande amiga, aceitou recebê-lo em troca de
serviços gastronômicos até que ele encontrasse um emprego. Para
ele, estava ótimo, ainda mais considerando que aquele quartinho na
pensão era mais que o dobro do chambre
de bonne no 9ème
arrondissement de
Paris em que vivia antes de chegar ao Rio. E a localização era
ótima, bem perto do metrô da Glória, onde hoje funciona o hotel
(motel) Love
Time.
Só
que ele não parava em um emprego sequer, de modo que seus pagamentos
eram inconstantes e raros, mas assim foi levando por alguns meses.
Sorte dele que Jussara aceitava, porque o motivo era simples: ele
era um flâneur incurável.
Não
andava com tempo cronometrado ou preocupado com o caminho mais
rápido. Pierre ia vagando, passeando sem pressa pelas ruas, vendo a
vida acontecer diante dos seus olhos, contemplando cada detalhe e se
inspirando nas belezas que o Rio tinha a oferecer a ele diariamente.
E
Pierre desempenhava com louvor todas as modalidades de flâneur.
O vagabundo de Baudelaire. O flâneur investigador
de Allan Poe. Ou o “cronista da cidade” descrito por Walter
Benjamin. O azar é que nenhuma dessas modalidades era admirada pelos
seus chefes.
Enquanto
perambulava pelas ruas, nada mais importava. Ele só queria
bater perna, dar um borboleteio e flanar, ora! Foi
ficando mais simpático com o passar dos meses e por todos os lugares
pelos quais passava lançava um sorridente “Bonjour,
Monsieur”.
Como a rotina era diária, para os mecânicos da oficina, os padeiros
da rua e para o apontador do jogo do bicho, Pierre virou o “Seu
Mêsiê”.
O
pessoal brincava, mas no fundo gostava da sua formalidade, que nunca
o deixou tratar os outros sem ser por “vous”, que, com o tempo,
acabou virando "você".
Dizia
a todos que tinha parado de fumar quando completou mais tempo de
Brasil que de França. A exceção era quando estava irritado. E,
mesmo sem muitos motivos para estar, todo dia ele dizia que alguma
coisa o tinha tirado do sério, o que obrigava o homem a dar um
traguinho no seu cachimbo. Sempre na surdina, para ninguém notar. Só
que todo mundo notava. Quando
alguém o acusava, já apontava para o pôster amarelado do “La
trahison des images”
de
Magritte que tinha nos fundos da pensão dizendo “Ceci
n'est pas une pipe”.
Quando
ganhava um cascalho a mais, pagava o que devia à dona Jussara, que
nunca cobrava nem aplicava juros ou correção, e ia ao restaurante
da esquina, que era simples, mas delicioso, para pagar uma cerveja e
um jantar a ela.
Quem
comandava o boteco e morava no charmoso apartamento que ficava em
cima era Elba. Pierre, como 80% dos frequentadores, se apaixonou
por ela. Classuda, inteligentíssima e muito bonita.
“Elle
est très jolie, cette femme, mais bien plus que ça”.
Ele
achava muito irônico estar apaixonado por uma mulher que levava o
nome da ilha italiana em que Napoleão foi exilado.
Ainda
mais pelo fato de seu nome ter sido escolhido justamente pela raiva
de sua mãe, Hilda, professora de História na rede pública, pelo
pai, Seu Napoleão, um cara muito bonito que parecia que não
envelhecia, e conhecido por ser um grande cafajeste por todo Rio
Comprido e adjacências. Não era Bonaparte, mas também era um
conquistador. Seu
apelido? O Príncipe Etíope, pela sua semelhança com o craque
Didi, da Seleção Brasileira, e que fez história no Fluminense e no
Botafogo.
Elba
começou a trabalhar muito cedo, sem nunca largar a escola, algo que
sua mãe não perdoaria. Formou-se na escola e, a duras penas, também
na faculdade de Administração. Depois de graduada tocou alguns
negócios bem-sucedidos com uns colegas de faculdade, até tomar um
golpe de um sócio.
Perdeu
tudo.
Ficou
mais cascuda, e também bem amargurada, de modo que perdeu o sorriso
fácil, que só aparecia quando alguém tocava alguma do Paulinho da
Viola ou do Jorge Aragão. Decidiu que seu novo negócio seria um
restaurante simples, agora sem sócios. E que toda sexta e sábado
teria samba. Afinal, no samba ela sabia que podia confiar. E
deu certo. Muito certo.
Bancava
a casa da mãe, que atualmente morava com seu novo marido, e também
os remédios do pai, que tinha dinheiro para tudo, menos para os
remédios do vitiligo, que o afetava muitíssimo por influenciar sua
aparência, apesar de não diminuir em nada os casos que arrumava
pelo Rio de Janeiro.
Um
dia, bem na hora de fechar o recinto, Pierre apareceu por lá dizendo
que era a décima vez que ia no restaurante e que queria chamá-la
para jantar. Mas que nunca tinha tido coragem.
Ela
disse que não era assim que funcionava, mas gostou da
ousadia. Falou
que ia pensar e subiu para casa com um sorriso no rosto, que Pierre
não achou que tinha sido por sua causa, já que ao fundo tocava
“Timoneiro”. Sorriu porque viu que as palavras eram sinceras
e não mais um papinho de um gringo fetichizando uma mulher
preta brasileira, como já tinha vivenciado dezenas de vezes.
Na
décima primeira ida ao bar, ele renovou o convite, agora com mais
convicção. Ela curtiu, mas disse que preferia um café da manhã.
Ele topou, é claro, porque não podia perder a oportunidade, mas por
dentro pensou não entendia muito bem essa história
do petit-déjeuner se
chamar, em português, “café da manhã” e ser mais do que apenas
um café.
O
romance vingou.
E,
conforme evoluía, Pierre percebeu que não sustentaria por mais
tempo nas condições de vida que levava. O nome de Elba era
trabalho e o sobrenome, hora extra. Ela
valorizava demais a labuta. E também não dava para levá-la para a
pensão de Dona Jussara dia sim dia não. Ao mesmo tempo, não
conseguia abandonar sua alma de flâneur.
Enfim, tomou uma decisão: por Elba, acordaria mais cedo ou dormiria
mais tarde para poder flanar antes e/ou depois do horário comercial
e provaria a ela que sabia e podia trabalhar bem.
Elba
falava pouco com palavras, mas muito com o olhar e percebeu a
movimentação de Pierre, até que decidiu fazer uma proposta de
trabalho. Ele comandaria a cozinha da birosca e lhe daria aulas de
francês em troca de um salário mais do que justo, que o ajudaria a
pagar suas dívidas na pensão. E tinha um bônus: se desse
certo, ela o colocaria para dentro de casa definitivamente. Ele
aceitou na hora.
— Ça
va aller, mon cœur -
puxando o “r” de propósito, porque sabia que ela gostava.
A
convivência diária não começou fácil. Mesmo depois de muito
tempo de curso, Pierre seguia jogando lixo no vaso, para terror de
Elba, que ficava louca quando o via lançar na latrina os papéis que
usava para sua higiene matinal. Os gastos com pão, manteiga, queijo
e geleia aumentaram demais, e ela detestava abrir a porta do banheiro
e se surpreender com ele fazendo xixi sentado, costume que pegou de
seu pai alemão.
Falando
em pai alemão, ele, que sabia a sua árvore genealógica de cor até
a quarta geração, aprendeu que, no Brasil, que vive até hoje as
mazelas dos 300 anos de escravidão, era normal que uma pessoa
preta da sua idade não soubesse o nome e muito menos a origem dos
bisavós. No caso de Elba, nem o nome dos avós maternos.
Pierre
foi aprendendo a viver com Elba e botou na rotina os dois banhos
diários. Tudo bem que eram banhos de gato, gelados e rapidíssimos,
mas pelo menos tomava. Foi a condição imposta para ganhar um beijo
quando descesse no bar, onde Elba já começava a todo vapor
coordenando as rotinas do recinto. Antes mesmo das suas flanadas
matinais.
Outro
problema foi a mania de Pierre com tigelas. Ele usava todas da casa
para as mais diversas utilidades. Sopa, geleia com pão e até café,
que tomava apenas um por dia, acompanhado de um shot de pastis
marseillais, sempre
depois do almoço para não dormir em pé.
Apesar
de algumas alfinetadas, ela o amava muito. E sabia disso pelo simples
fato de seu lindo sorriso ter voltado para o rosto.
Amava
o seu audível “bon
appétit”,
que desejava para todos que servia. Achava uma graça o fato de fazer
questão de comer na mesa posta e sempre esperar todo mundo se sentar
para comer nas clássicas feijoadas de sexta-feira que serviam no bar
para todos os funcionários, dona Jussara e outros amigos do bairro.
Só detestava a nojenta mania de assoar o nariz à mesa e pediu para
ele parar. Ele parou.
“Pas
de problème, mon chou!”
Eles
viviam situações inusitadas nessa dinâmica franco-brasileira.
Quando ele disse que ia “faire
le ménage”,
ela deu um tapa na sua cara, sem ver que ele estava com o aspirador
de pó na mão pronto para fazer uma faxina na casa. Ela pediu
desculpas e explicou o porquê. Ele não só entendeu como concordou
com a reação dela. Sempre romântico, antes de beijá-la, cravou:
“J’ai
envie de toi et seulement de toi”.
E
nessa de ficar falando português e francês misturados, acabou se
surpreendendo com a safadeza de Elba quando, em um momento íntimo, a
moça, querendo dizer um “Beija Eu”, no melhor estilo Marisa
Monte, lançou um “baise-moi”,
que acabou de fato se concretizando no final da noite.
Mas
essa, no caso, foi uma confusão boa.
Fora
as clássicas de gênero. Era “a carro” (la
voiture)
pra cá, “um árvore” (un
arbre)
pra lá e o lindo erro de falar “a mar” (la
mer),
que fazia o coração de Elba vibrar já que achava que o
equívoco era a palavra “mar” ser um substantivo masculino.
Uma
que amava também, e que Pierre continuava errando de propósito, era
o uso dos verbos prendre e offrir em
tradução literal.
Quando
ela passou a flanar com ele, volta e meia paravam para “pegar um
café da manhã” (prendre
un petit-déjeuner)
ou paravam em alguma loja em que ele “oferecia um presente”
(offrir
un cadeau)
a ela, mas não só oferecia, dava!
E
nessas andanças, Elba só se apaixonava ainda mais por Pierre, que
militava pela flânerie dizendo
a ela que seus antigos chefes o chamavam de vagabundo porque não se
adequava ao sistema. Mas reconheceu que sem Elba, nunca teria entrado
no prumo e que sua disciplina o fez ser um homem melhor.
Por
isso, acorda para trabalhar com um sorriso no rosto. Todos os dias.
Com
Elba, ele aprendeu a trabalhar. Com Pierre, ela aprendeu a flanar. E
assim vão levando, na labuta ou flanando.
E
amando.
Eduardo Moraes
Que delícia de texto com direito a romance 😍
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