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sexta-feira, 25 de julho de 2025

Pierre, o flâneur — texto de Eduardo Moraes

Pierre acorda sempre às 5h em ponto já tirando a regata e as cafonas meias compridas. Suando, como de costume, por se recusar a ligar o ar condicionado. Pelo menos tinha aprendido a abrir as janelas para entrar um ar. Já solta duas ou três bufadas quando ouve o barulho da rua, corre à janela para espiar o que os transeuntes estão fazendo no estimado bairro da Glória. Resmunga enquanto sorri por dentro pela visão familiar de cada dia. Ele era um daqueles branquelos com a pele queimada do sol e, por mais que morasse no Brasil há muitos anos, sempre ficava com a bochecha vermelha, denunciando a sua cara de gringo. Usava aquele chapeuzinho de malandro que ornava perfeitamente com a sua barriguinha de chope, que, de fato, tinha muita história para contar. 

Quando chegou da França, vinte anos atrás, não tinha escolhido o bairro para morar, foi a Glória que o escolheu. Pelo menos era isso que ele contava quando queria romantizar a sua história no Rio de Janeiro. A verdade é que veio ao Brasil a convite dos sócios de Gaston Lenôtre para comandar a cozinha de um bistrô na Zona Sul carioca, 
métier que não vingou pela sua falta de assiduidade no trabalho. Rapidamente deram a cozinha na mão do ainda não tão conhecido Claude Troisgros, e Pierre ficou de mãos abanando.

Com dinheiro apenas para mais um mês no apartamento que estava no Flamengo, descobriu uma pensão simpática e barata na Glória, cuja dona, Jussara, hoje uma grande amiga, aceitou recebê-lo em troca de serviços gastronômicos até que ele encontrasse um emprego. Para ele, estava ótimo, ainda mais considerando que aquele quartinho na pensão era mais que o dobro do 
chambre de bonne no 9ème arrondissement de Paris em que vivia antes de chegar ao Rio. E a localização era ótima, bem perto do metrô da Glória, onde hoje funciona o hotel (motel) Love Time.

Só que ele não parava em um emprego sequer, de modo que seus pagamentos eram inconstantes e raros, mas assim foi levando por alguns meses. Sorte dele que Jussara aceitava, porque o motivo era simples: ele era um 
flâneur incurável.

Não andava com tempo cronometrado ou preocupado com o caminho mais rápido. Pierre ia vagando, passeando sem pressa pelas ruas, vendo a vida acontecer diante dos seus olhos, contemplando cada detalhe e se inspirando nas belezas que o Rio tinha a oferecer a ele diariamente.

E Pierre desempenhava com louvor todas as modalidades de 
flâneur. O vagabundo de Baudelaire. O flâneur investigador de Allan Poe. Ou o “cronista da cidade” descrito por Walter Benjamin. O azar é que nenhuma dessas modalidades era admirada pelos seus chefes.

Enquanto perambulava pelas ruas, nada mais importava. Ele só queria bater perna, dar um borboleteio e flanar, ora!
 Foi ficando mais simpático com o passar dos meses e por todos os lugares pelos quais passava lançava um sorridente “Bonjour, Monsieur”. Como a rotina era diária, para os mecânicos da oficina, os padeiros da rua e para o apontador do jogo do bicho, Pierre virou o “Seu Mêsiê”.

O pessoal brincava, mas no fundo gostava da sua formalidade, que nunca o deixou tratar os outros sem ser por “vous”, que, com o tempo, acabou virando "você".

Dizia a todos que tinha parado de fumar quando completou mais tempo de Brasil que de França. A exceção era quando estava irritado. E, mesmo sem muitos motivos para estar, todo dia ele dizia que alguma coisa o tinha tirado do sério, o que obrigava o homem a dar um traguinho no seu cachimbo. Sempre na surdina, para ninguém notar. Só que todo mundo notava.
 Quando alguém o acusava, já apontava para o pôster amarelado do “La trahison des imagesde Magritte que tinha nos fundos da pensão dizendo “Ceci n'est pas une pipe”.

Quando ganhava um cascalho a mais, pagava o que devia à dona Jussara, que nunca cobrava nem aplicava juros ou correção, e ia ao restaurante da esquina, que era simples, mas delicioso, para pagar uma cerveja e um jantar a ela.

Quem comandava o boteco e morava no charmoso apartamento que ficava em cima era Elba. Pierre, como 80% dos frequentadores, se apaixonou por ela. Classuda, inteligentíssima e muito bonita.

Elle est très jolie, cette femme, mais bien plus que ça”.

Ele achava muito irônico estar apaixonado por uma mulher que levava o nome da ilha italiana em que Napoleão foi exilado.

Ainda mais pelo fato de seu nome ter sido escolhido justamente pela raiva de sua mãe, Hilda, professora de História na rede pública, pelo pai, Seu Napoleão, um cara muito bonito que parecia que não envelhecia, e conhecido por ser um grande cafajeste por todo Rio Comprido e adjacências. Não era Bonaparte, mas também era um conquistador.
 Seu apelido? O Príncipe Etíope, pela sua semelhança com o craque Didi, da Seleção Brasileira, e que fez história no Fluminense e no Botafogo.

Elba começou a trabalhar muito cedo, sem nunca largar a escola, algo que sua mãe não perdoaria. Formou-se na escola e, a duras penas, também na faculdade de Administração. Depois de graduada tocou alguns negócios bem-sucedidos com uns colegas de faculdade, até tomar um golpe de um sócio.

Perdeu tudo.

Ficou mais cascuda, e também bem amargurada, de modo que perdeu o sorriso fácil, que só aparecia quando alguém tocava alguma do Paulinho da Viola ou do Jorge Aragão. Decidiu que seu novo negócio seria um restaurante simples, agora sem sócios. E que toda sexta e sábado teria samba. Afinal, no samba ela sabia que podia confiar.
 E deu certo. Muito certo.

Bancava a casa da mãe, que atualmente morava com seu novo marido, e também os remédios do pai, que tinha dinheiro para tudo, menos para os remédios do vitiligo, que o afetava muitíssimo por influenciar sua aparência, apesar de não diminuir em nada os casos que arrumava pelo Rio de Janeiro.

Um dia, bem na hora de fechar o recinto, Pierre apareceu por lá dizendo que era a décima vez que ia no restaurante e que queria chamá-la para jantar. Mas que nunca tinha tido coragem.

Ela disse que não era assim que funcionava, mas gostou da ousadia.
 Falou que ia pensar e subiu para casa com um sorriso no rosto, que Pierre não achou que tinha sido por sua causa, já que ao fundo tocava “Timoneiro”. Sorriu porque viu que as palavras eram sinceras e não mais um papinho de um gringo fetichizando uma mulher preta brasileira, como já tinha vivenciado dezenas de vezes.

Na décima primeira ida ao bar, ele renovou o convite, agora com mais convicção. Ela curtiu, mas disse que preferia um café da manhã. Ele topou, é claro, porque não podia perder a oportunidade, mas por dentro pensou não entendia muito bem essa história do 
petit-déjeuner se chamar, em português, “café da manhã” e ser mais do que apenas um café.

O romance vingou.

E, conforme evoluía, Pierre percebeu que não sustentaria por mais tempo nas condições de vida que levava. O nome de Elba era trabalho e o sobrenome, hora extra.
 Ela valorizava demais a labuta. E também não dava para levá-la para a pensão de Dona Jussara dia sim dia não. Ao mesmo tempo, não conseguia abandonar sua alma de flâneur. Enfim, tomou uma decisão: por Elba, acordaria mais cedo ou dormiria mais tarde para poder flanar antes e/ou depois do horário comercial e provaria a ela que sabia e podia trabalhar bem.

Elba falava pouco com palavras, mas muito com o olhar e percebeu a movimentação de Pierre, até que decidiu fazer uma proposta de trabalho. Ele comandaria a cozinha da birosca e lhe daria aulas de francês em troca de um salário mais do que justo, que o ajudaria a pagar suas dívidas na pensão. E tinha um bônus: se desse certo, ela o colocaria para dentro de casa definitivamente.
 Ele aceitou na hora.

— 
Ça va aller, mon cœur - puxando o “r” de propósito, porque sabia que ela gostava.

A convivência diária não começou fácil. Mesmo depois de muito tempo de curso, Pierre seguia jogando lixo no vaso, para terror de Elba, que ficava louca quando o via lançar na latrina os papéis que usava para sua higiene matinal. Os gastos com pão, manteiga, queijo e geleia aumentaram demais, e ela detestava abrir a porta do banheiro e se surpreender com ele fazendo xixi sentado, costume que pegou de seu pai alemão.

Falando em pai alemão, ele, que sabia a sua árvore genealógica de cor até a quarta geração, aprendeu que, no Brasil, que vive até hoje as mazelas dos 300 anos de escravidão, era normal que uma pessoa preta da sua idade não soubesse o nome e muito menos a origem dos bisavós. No caso de Elba, nem o nome dos avós maternos.

Pierre foi aprendendo a viver com Elba e botou na rotina os dois banhos diários. Tudo bem que eram banhos de gato, gelados e rapidíssimos, mas pelo menos tomava. Foi a condição imposta para ganhar um beijo quando descesse no bar, onde Elba já começava a todo vapor coordenando as rotinas do recinto. Antes mesmo das suas flanadas matinais.

Outro problema foi a mania de Pierre com tigelas. Ele usava todas da casa para as mais diversas utilidades. Sopa, geleia com pão e até café, que tomava apenas um por dia, acompanhado de um shot de 
pastis marseillais, sempre depois do almoço para não dormir em pé.

Apesar de algumas alfinetadas, ela o amava muito. E sabia disso pelo simples fato de seu lindo sorriso ter voltado para o rosto.

Amava o seu audível “
bon appétit”, que desejava para todos que servia. Achava uma graça o fato de fazer questão de comer na mesa posta e sempre esperar todo mundo se sentar para comer nas clássicas feijoadas de sexta-feira que serviam no bar para todos os funcionários, dona Jussara e outros amigos do bairro. Só detestava a nojenta mania de assoar o nariz à mesa e pediu para ele parar. Ele parou.

Pas de problème, mon chou!”

Eles viviam situações inusitadas nessa dinâmica franco-brasileira. Quando ele disse que ia “
faire le ménage”, ela deu um tapa na sua cara, sem ver que ele estava com o aspirador de pó na mão pronto para fazer uma faxina na casa. Ela pediu desculpas e explicou o porquê. Ele não só entendeu como concordou com a reação dela. Sempre romântico, antes de beijá-la, cravou:

J’ai envie de toi et seulement de toi”.

E nessa de ficar falando português e francês misturados, acabou se surpreendendo com a safadeza de Elba quando, em um momento íntimo, a moça, querendo dizer um “Beija Eu”, no melhor estilo Marisa Monte, lançou um “
baise-moi, que acabou de fato se concretizando no final da noite.

Mas essa, no caso, foi uma confusão boa.

Fora as clássicas de gênero. Era “a carro” (
la voiture) pra cá, “um árvore” (un arbre) pra lá e o lindo erro de falar “a mar” (la mer), que fazia o coração de Elba vibrar já que achava que o equívoco era a palavra “mar” ser um substantivo masculino.

Uma que amava também, e que Pierre continuava errando de propósito, era o uso dos verbos 
prendre offrir em tradução literal.

Quando ela passou a flanar com ele, volta e meia paravam para “pegar um café da manhã” (
prendre un petit-déjeuner) ou paravam em alguma loja em que ele “oferecia um presente” (offrir un cadeau) a ela, mas não só oferecia, dava!

E nessas andanças, Elba só se apaixonava ainda mais por Pierre, que militava pela 
flânerie dizendo a ela que seus antigos chefes o chamavam de vagabundo porque não se adequava ao sistema. Mas reconheceu que sem Elba, nunca teria entrado no prumo e que sua disciplina o fez ser um homem melhor.

Por isso, acorda para trabalhar com um sorriso no rosto. Todos os dias.

Com Elba, ele aprendeu a trabalhar. Com Pierre, ela aprendeu a flanar. E assim vão levando, na labuta ou flanando.

E amando.



Eduardo Moraes


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