sexta-feira, 17 de maio de 2024

Um soneto de Fabrício Corsaletti


neste Museu de Artes Decorativas
há todo um luxo antigo, aristocrata
meu sonho sempre foi ser um pirata
com mão certeira ainda que furtiva

dei um trago de Cannabis sativa
antes de entrar, o beque é uma fragata
que transforma os ruídos em sonata
e deixa a minha mente mais altiva 

deuses, diabos, anjos, orixás
me deem de presente esse piano
decorado com temas pastoris

prometo fazer samba, fazer jazz
tocar melhor que um músico cubano
sem raiva, sem angústia, ser feliz


Fabrício Corsaletti

quinta-feira, 16 de maio de 2024

Serenata, de Masé Lemos


Morava à rua dos Inconfidentes, 645
bairro dos Funcionários

Ao alto ficava o corpo de bombeiros

Tinha muita raiva das sirenes
Quando passavam
gritava com elas


Masé Lemos

quarta-feira, 15 de maio de 2024

pista estreita


branca, branca, branca,
a mulher, leve como uma garça,
esgrime contra a neve.
entanto pistas estreitas,
corredores de antigos castelos,
ainda lhe aparam as asas...
até o sangue


Lasana Lukata

terça-feira, 14 de maio de 2024

Um poema de Larissa Lins


Davi,

Sabe? Quase morri Todas as mulheres com que dormi, naquele dia em que acordei com seu telefonema me dizendo que não voltaria mais, todos os amigos que negligenciei, e joguei pela janela todas as suas roupas o telefonema da mamãe que não atendi, para não atear fogo na casa, nelas, em mim. e quando o vovô morreu eu não liguei. E quando finalmente eu me libertei daquilo tudo, As loucuras todas que já fiz chapado, do meu amor louco ali por você, quando a gente se viu naquele dia no parque, desprotegido, dirigindo embriagado, foi mais forte do que eu, eu precisava ser honesto em alguma coisa. você falando Daí liguei pra Mariana e eu não disse nem tchau. e ela chorou, Você falando, ela chorou de alegria eu me levantei e fui embora. porque eu propus o casamento, Você falando lá sozinho, ela chorou… e eu fui embora e não disse nem tchau. E um bebê? Seria a nossa salvação! Mas, perdão, Davi, por ter saído daquele jeito. Um bebê e tudo ia mudar! Você ainda é o único, juro, Davi, volte pra mim, Um bebezinho e tudo ia mudar… pro seu bebezinho dentro de mim agora. Voltei pra casa, era 7 da manhã. Agora, em tantas camas perdida por aí… Voltei pra casa, eu tava acabado. as coisas meio que saíram de controle, sabe? Voltei pra casa, a Mariana foi embora. Mas você é especial, você é o único, Davi, é você o pai, juro, Davi.

Mariana.


Larissa Lins

segunda-feira, 13 de maio de 2024

Decantação


Crisântemo
Crisântempo 
Crisântemplo
Crise ante o tempo
Crises ante o templo


Iuri Mello

domingo, 12 de maio de 2024

LLANTO


nada hiere tanto
(y genera más espanto)
que ese corto corte
de la fina hoja en blanco

Lucas Viriato

sábado, 11 de maio de 2024

trecho de Orientes possíveis


O que se deve fazer quando se recebe uma herança? Desmembrar a mobília da casa, escolher os itens mais úteis e se desfazer do resto ?Talvez doar e distribuir os bens conforme a necessidade de outras pessoas. Ou, ao contrário, seria mais digno manter o patrimônio da família intocado, preservado, restrito?

Mayumi Aibe

sexta-feira, 10 de maio de 2024

Entrevista: Patricia Lavelle e o enigma do texto como ponto de partida

 por Rafaela Albernaz, Danilo Brandão e Martha Marques 


Patrícia Lavelle é poeta, tradutora e ensaísta. Professora do Departamento de Letras da PUC-Rio e pesquisadora do CNPq, fez doutorado em Filosofia na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, cidade onde morou entre 1999 e 2014. Tem publicado poesia, traduções e ensaios teóricos no Brasil e na França. Principais publicações em poesia: Bye bye Babel (7Letras, 2018, 2ª edição em 2021/Les presses du réel, 2023), Sombras longas (Relicário edições, no prelo). Bye bye Babel recebeu menção honrosa no Prêmio Cidade de Belo Horizonte.

1) Como a literatura entrou na sua vida e como você se relaciona com ela hoje?

A literatura sempre esteve na minha vida. Desde que eu aprendi a ler, fui sempre uma leitora inveterada, era uma criança que não dormia enquanto não terminassem de me contar histórias. Quer dizer, a literatura já entrou na minha vida quando eu não sabia ler, e o meu grande desejo, na minha primeira infância, era aprender a ler. Quando aprendi, me tornei realmente uma leitora que devorava livro após livro. Então a literatura sempre esteve na minha vida. Hoje, a literatura se tornou uma parte da minha vida profissional. Isso faz com que, claro, eu tenha de ler textos teóricos e textos literários profissionalmente, o que cria para a leitura um direcionamento. Nem sempre é possível ler aquilo que dá vontade e prazer naquele momento, porque há a necessidade de organizar a leitura em função da preparação de uma aula ou de um artigo, por exemplo. Então a literatura está sempre presente, mas ela deixou de ser essa paixão caótica e se tornou algo mais organizado.
 
2) Dom, inspiração, trabalho, achado: nasce-se poeta ou torna-se poeta?

Bem, poeta é quem escreve poema. Não vejo que esse seja um ofício muito elevado, como uma predestinação ou algo assim. Poeta é simplesmente quem escreve poema, independentemente daquela produção ser uma prática elaborada e publicada, ou apenas uma atividade momentânea. Então diria que a gente se torna poeta.
 
3) Sendo uma profissional da palavra, o seu olhar está sempre afiado, ou você consegue ser uma “leitora amadora”? Há um botão de liga/desliga?

Eu espero conseguir ainda ser uma leitora amadora, ou seja, conseguir ler aquilo que não é necessariamente direcionado para uma pesquisa, por exemplo. Além de ler o que é necessário para produzir artigos ou preparar aulas, ter também essa leitura selvagem, essa leitura que vai para todos os lados, que vai para aquele lugar que ainda não conhecemos, com assuntos que não dominamos, é fundamental. Essa leitura amadora, que vai por curiosidade aqui ou ali, eu não posso deixá-la morrer.
 
4) Em todo verdadeiro artista, a arte e a vida são uma coisa só. O que você acha dessa afirmação? Há separação?

Primeiramente, não sei se me colocaria nesse lugar de verdadeiro artista; é uma expressão, talvez, muito “pesada”. Quanto à separação entre arte e vida, eu vejo que a escrita poética é de certa forma ficcional: escolhem-se algumas coisas, recortam-se outras. Claro, como o romancista, o poeta também trabalha a partir das suas próprias experiências e vivências, mas transformando-as. Essa transformação passa também pela referência a outros textos literários e poéticos; o trabalho de leitura, o trabalho de reler e se deixar atravessar por outros textos faz parte da escrita literária. Por isso, eu não diria que não há separação entre a escrita e a vida, a não ser que se queira entender que tudo o que é leitura, tudo o que são referências intertextuais, de algum modo, faz parte da vida também – e de fato faz; a pessoa que eu sou, assim como a pessoa que todos nós somos, é a pessoa que leu isto e aquilo. Então, nesse sentido, sim, mas não naquele sentido mais imediato do texto poético refletir vivências pessoais e ser imediatamente confessional. Não é nesse sentido que eu penso esta questão da relação entre vida e escrita. Mas acredito que o material com o qual qualquer pessoa escreve está relacionado com tudo aquilo que ela viveu, e nisso se inclui aquilo que leu e aprendeu, o que é muito importante, assim como os recortes e sínteses que ela vai elaborar com esse material, e como tudo se conecta.
 
5) Quais os livros fundamentais na sua formação? O que está lendo agora? O que indica como leitura para o momento atual?

Alguns livros mudaram a minha vida. Começo citando As flores do mal, de Charles Baudelaire, que me fez aprender francês; esse é um livro que foi fundamental para mim. Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, livro que me acompanhou durante muitos anos, é também um livro fundamental. Alguns livros de filosofia também mudaram a minha vida; por exemplo, Crítica da razão pura e Crítica do juízo, de Immanuel Kant, foram livros que me tiraram do eixo e me recolocaram em outro eixo. E não posso esquecer os textos de Walter Benjamin que habitam no meu imaginário há muitos anos, e foram muitas vezes relidos.
Entre as leituras marcantes da juventude, lembro de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, que li quatro vezes quando adolescente; foi uma leitura muito intensa. Cito também Machado de Assis, que a meu ver é uma leitura intensa para todos, uma leitura a que sempre voltamos. Também Virginia Woolf. E um livro fundamental na minha infância foi Ou isto ou aquilo, de Cecília Meireles, que aliás recomendo a todos; foi uma das leituras que me marcaram quando criança, e eu comecei a me interessar pela poesia a partir dessa obra.
Além desses, mais antigos, é importante falar dos textos que de algum modo me trouxeram de volta para o Brasil, e que me acolheram aqui quando cheguei; foram em grande parte textos poéticos. Tenho de falar de Lu Menezes, uma poeta que tem sido importante para mim; também Orides Fontela; meu colega e amigo Paulo Henriques Britto: sua obra foi e ainda é uma leitura importantíssima, uma leitura formadora. Aprendi muito sobre escrita poética com ele. Enfim, são muitos os autores fundamentais, os livros fundamentais na minha formação, mas eu mencionei alguns que de certo modo marcaram etapas na minha vida.
Atualmente tenho lido muita poesia contemporânea brasileira, dentro da minha pesquisa. É algo que me interessa trabalhar com poetas que, de algum modo, colocam em cena a questão da pluralidade linguística no seu trabalho poético. Eu comecei pensando que isso fosse uma exceção à regra, mas agora vejo que tenho uma pilha imensa de materiais que de uma maneira ou de outra trabalham com isso. Normalmente pensamos que a poesia tem relação com a língua materna, com o ritmo da língua materna – e tem mesmo. Mas tem a ver também com certo estranhamento em relação à língua materna, um olhar de fora; e nesse sentido muitos poetas são também tradutores ou, de algum modo, têm um trabalho que incorpora, de muitas maneiras diferentes, esse estranhamento em relação à língua e a relação com outros idiomas, propondo diversos tipos de abordagem como misturas lexicais, influência da sintaxe de outras línguas, autotradução...
Para mencionar um exemplo, trabalhei recentemente com Josely Vianna Baptista, que é uma grande poeta brasileira contemporânea, cuja poética surge dos seus estudos da língua mbyá-guarani, o que implica uma reflexão sobre a linguagem. Ela tem vários livros, e um livro especificamente é, metade dele, composto por traduções de cantos desse povo indígena, e a outra parte são textos dela que de alguma forma se relacionam com esse material traduzido. Enfim, eu tenho trabalhado muito com isso. Reli recentemente Roça barroca, da Josely, para pensar isso; li recentemente também, dentro dessa chave, fazendo um diálogo com ela, A queda do céu, de Bruce Albert e Davi Kopenawa, que também é uma figura incrível de intérprete. É algo que me tem interessando bastante, essa questão da pluralidade linguística no interior do território brasileiro, das línguas indígenas, portanto. Então andei lendo isso recentemente.
Quanto às minhas recomendações de leitura, há muitas obras interessantes para indicar. Todos esses que eu mencionei são recomendações de leitura, são autores que me interessaram e que eu recomendo. Walter Benjamin é uma recomendação de leitura. Também Franz Kafka, Marcel Proust... E de autores do Brasil contemporâneo, são tantas pessoas interessantes. Lu Menezes, Luci Collins, Josely Vianna Baptista, Marília Garcia, Ana Martins Marques, Aline Bei são recomendações de leitura.

6) A Literatura é, por vezes, considerada como escape da realidade e, outras, como forma de abrir nossos olhos para as suas sutilezas. Como lida com essas percepções em sua própria escrita?

Eu acredito que seja mais uma forma de abrir nossos olhos para as sutilezas da realidade. Podemos pensar, por exemplo, que a leitura absorvente de um romance, de alguma forma nos desloca daquilo que está acontecendo aqui e agora e nos transporta para outro universo; mas, de certo modo, também nos faz projetar uma distância crítica em relação às situações cotidianas, e pensá-las de outro modo. Não digo que a literatura faça isso necessariamente, até porque temos de dissociar o texto literário e a dimensão política; há uma política nas produções literárias, claro, mas há textos que não necessariamente apresentam questionamentos em relação ao nosso mundo. Eu acredito, porém, que a leitura literária nos permite criar uma distância em relação à realidade imediata e, por isso, indiretamente incita a colocarmos questões, a questionarmos o que encontramos no mundo real. 

7) Todos já fizeram poemas algum dia, em geral na juventude. Você já escreve poesia há muitas décadas. O que a faz permanecer poeta?

Eu sou uma jovem poeta, na verdade. Não sou uma pessoa jovem, mas sou uma jovem poeta. Eu escrevi poemas na minha infância e na minha juventude, mas depois fiz mestrado e doutorado, e minha ambição foi para os estudos, para uma escrita ensaística. Eu estudei Filosofia, e deixei de lado essa escrita poética por muitos anos; fiquei vivendo muito tempo fora do Brasil, escrevi por muito tempo só em francês e só textos teóricos. E o desejo de escrever poesia surgiu em um momento em que estava querendo voltar ao Brasil, querendo voltar a escrever em português, e tinha começado a traduzir alguns textos meus do francês ao português. 
O meu livro de estreia, Bye bye Babel, foi lançado em 2018 e reeditado em 2022 com poemas novos. Agora acaba de sair na França também, reescrito por mim mesma num processo que incluiu tradução, recriação e uma série de novos poemas escritos diretamente em francês. Um segundo livro de poesia deve sair ainda em 2023 pela Relicário edições. Chama-se Sombras longas. Enfim, essa escrita com objetivo de publicação, esse projeto poético mais maduro, só surgiu muito recentemente, embora a poesia tenha sido sempre muito importante para mim.

8) A partir da sua experiência como professora, o que você considera mais importante na leitura em sala de aula? Como formar alunos que sejam leitores proficientes?

Eu acredito que, para formar leitores, é preciso suscitar ocasiões para leitura, e é preciso conversar sobre o que foi lido. É importante esse compartilhamento de leituras, a conversa sobre as leituras, a criação de um espaço afetivo de troca em torno do texto lido. Isso ajuda a desenvolver essa proficiência leitora. Em sala de aula, é importante que se coloquem situações de leitura que são coletivas: ler juntos, ler em voz alta. Isso cria uma dinâmica interessante e inscreve o texto numa dimensão menos individual, o que ajuda a alcançar essa proficiência de leitura. Mas a experiência da leitura individual em casa é muito importante também, até para animar as conversas em aula. 

9) A atividade de professora repercute no trabalho como poeta? E vice-versa?

Sim. O trabalho como poeta repercute em sala de aula, porque, claro, ao escrever poesia, eu acabei conhecendo certas técnicas poéticas, e isso acaba ajudando a pensar e a discutir os textos. O fato de escrever poesia traz uma vivência, uma consciência de certas técnicas, da dimensão artesanal do texto, e essa vivência ajuda no trabalho como professora, sim. E a atividade de professora também repercute na atividade poética. É muito estimulante essa experiência de ler em voz alta e ouvir textos na voz das pessoas. Para mim isso é estimulante, sobretudo no que concerne ao texto poético. Ouvir o texto em várias vozes tem, para mim, um efeito de estímulo à criação, já que o poema surge do ritmo, vem com o ritmo da língua.
Aliás, eu preciso contar esta anedota. Há um poema que eu escrevi assim: ia andando para a PUC, onde trabalho, e o poema veio vindo na minha cabeça. Quando cheguei à sala, comecei a dar a minha aula e, no momento em que havia uma tarefa em grupo para os alunos, eu anotei o poema. Ninguém sabe, ninguém viu, mas o primeiro esboço do poema surgiu ali em sala de aula. E significativamente esse poema se chama Língua materna, e é dedicado ao meu filho. Percebo que há um estímulo que vem das vozes de alunos e alunas lendo e se empolgando com os textos. E isso é muito importante.

10) Quais as qualidades de um bom leitor?

Acredito que a maior qualidade de um bom leitor é não se assustar com o que não é compreendido, ou seja, o leitor deve “montar no próprio tombo”. Essa é uma imagem de uma poeta brasileira contemporânea, Simone Brantes; eu gosto dessa expressão. É preciso não se assustar com o incompreendido e entender que é a partir do que não foi compreendido que podemos construir uma interpretação. É naquilo que fica em aberto, naquilo que fica indeterminado que algo pode surgir. Portanto, um bom leitor é a pessoa que não se assusta diante do que não ficou imediatamente compreendido, e que, ao contrário, parte dali, entendendo aquela incompreensão como um desafio produtivo, e não como algo que o coloca para escanteio. Enfrentar a frustração que temos diante da não compreensão é uma maneira de entrar no texto, e o bom leitor está tranquilo com isso. Às vezes colocar boas questões a partir de um texto lido é mais interessante do que trazer respostas, às vezes o texto nos suscita mais questões do que respostas. Isso também é algo que tem a ver com a não compreensão; há coisas que realmente não vamos resolver, mas aquele enigma no texto é um ponto de partida.


Esta entrevista foi realizada como parte das atividades de práticas extensionistas realizadas junto aos alunos da graduação em Letras da PUC-Rio, sob a supervisão da professora Helena Martins e com a coordenação de Suzana Macedo e Lucas Viriato.


quinta-feira, 9 de maio de 2024

Poderosa


o espelho só reflete o que quer
é o dono da imagem

alguma deformação em seu rosto
faz parte de minha engrenagem

mastigo todo o silêncio
e engulo o que me reflete

a escultura que nunca aparece
ou a madrasta da branca de neve


Rodrigo de Souza Leão

quarta-feira, 8 de maio de 2024

Antes que rompa o dia e fujam as sombras


todas as noites
com o advento das respostas que se descobrem em atraso
           o sopro quente do tempo
           me esquenta a nuca

junto com os feitos que não deviam ter sido
e os maus presságios
que não passaram
de covardia mitificada

todas as noites
a língua do tempo
me lambe o lóbulo da orelha

          a direita
quando me deito para a janela
temendo as luzes rápidas no teto

          a esquerda
quando me deito para o espelho
e não temo senão a mim

todas as noites
as mãos do tempo
correm nos meus peitos

estão secos e caídos para o lado
como um banquete deixado a apodrecer
          pela falta da fome nas bocas

todas as noites o tempo enfia em minha boca a sua língua
          antes que eu consiga recusar

balança a língua
atrás dos meus dentes
onde moram os choros engolidos
e as palavras perigosas

e no fundo da minha garganta
          sente o ácido
          do meu medo de morrer
          misturado à amargura de estar viva
o tempo se esfrega
nas partes minhas
que são só minhas para esfregar
          todas as noites
e a mim mantém desperta
para que não me esqueça
que todas as noites são noites a menos

           todas as manhãs encontro em mim os restos do tempo


Milena Martins Moura

terça-feira, 7 de maio de 2024

Um poema de Larissa Lins


nos dias de semana
é quando nos achamos            e
vagamos na cidade
                       o amor à tarde
sem beijos não há necessidade

na folga vespertina
depois do escritório
você é só rotina                        eu sou a diversão
                         o amor à tarde
sem beijos não há necessidade
o telefone toca toca
devolve casa convenção          o berço incendiado
a tua realidade
                        o amor à tarde
sem beijos não há necessidade

é bonito o meu vestido?
as pernas inocentes                   entre

os manequins sem cabeça         os teus nervos que me ardem
                                 o amor à tarde
sem beijos não há necessidade


Larissa Lins

segunda-feira, 6 de maio de 2024

com dois reais


a gente       ia
e voltava
hoje a gente
quase não vai


Otávio Campos

domingo, 5 de maio de 2024

em loop, a fala do soldado


vivo numa caixa preta
de 20 centímetros.
vejo o mundo por um visor,
no meio uma cruz
para mirar as coisas
prédios  estradas   objetos   cachorros.

tudo que passa pelo quadro
vira alvo, então penso em algo
linear: você já reparou que algumas imagens
se repetem? de repente,
um cisco no olho.
“eu vivo numa caixa preta”,
disse. estamos sentados
lado a lado no trem
— em silêncio — os dois de calça verde
e camisa branca.
sei que não está tudo bem,
levanto o olhar tentando alcançar
o dele e ouço apenas a voz
de frente para o alvo.
vivo numa caixa preta, diz
e eu não sei como parar
a repetição.


Marília Garcia




sábado, 4 de maio de 2024

No país da Cobra Grande


Alarga as assas
Decola e vai
No convés de um navio
No bater do leva e traz

Saudade passa
Mas dói demais
No percurso de um rio
Cobra Grande é muito mais

Distância é banzo
Chora urucungo
Esse cantar parece manso
Mas o rebote vem com tudo

Desse mundo vasto mundo
O Brasil é o que me coube
Quero mais é navegar
Vou viajar com Raul Bopp


Lucas Viriato


sexta-feira, 3 de maio de 2024

Entrevista: Isabel Diegues — leitura, palavra e a delicada arte da edição

 por Romanita Santiago e Gabriele Santiago 

foto por Simon Schwyzer


Isabel Diegues é escritora, editora e cineasta. Formada em Letras pela PUC-Rio, é hoje Diretora Editorial da Cobogó e atuou como roteirista, produtora e diretora de cinema. Organizou publicações como Adriana Varejão – entre carnes e mares (2010), 5 x favela (2010), Pintura Brasileira Séc. XXI (2011), Gerald Thomas – Arranhando a superfície (2012), Paulo Nazareth, Arte Contemporânea/LTDA (2012), a série de entrevistas com Hans Ulrich Obrist (2010-2021) e ainda as coleções O livro do disco (2014-2023) e a Coleção Dramaturgia (2012-2023). Em sua produção cinematográfica, destacam-se os premiados curtas-metragens Vila Isabel (1998) e Marina (2003), dos quais foi roteirista e diretora. Em 2016, lançou o livro Diário de uma digressão (Uma viagem ao sertão do Piauí da Serra das Confusões até o mar), parte do Projeto Piauí, viagem que resultou em uma exposição de mesmo nome, e Arte Brasileira para Crianças, livro de atividades escrito a partir de artistas brasileiros, em conjunto com Mini Kert, Priscila Lopes e Márcia Fortes. Reside no Rio de Janeiro, onde, em 2006, também foi uma das fundadoras deste intrépido jornal Plástico Bolha.


1) Como a Literatura entrou em sua vida e como você se relaciona com ela hoje?

Leio desde criança. Primeiro através da leitura de clássicos infantis, através da minha mãe, que lia para mim e para o meu irmão Francisco. Depois, uma amiga querida, um ano mais velha e minha amiga até hoje, a Silvia, aprendeu a ler antes, e lia tudo pra mim. Passávamos horas lendo juntas, ela em voz alta. Em alguns momentos da vida li muito, noutros menos. Mas os livros sempre fizeram parte da existência, da minha vida. Não sei viver sem eles.
 
2) Sendo uma profissional da palavra, o seu olhar está sempre afiado, ou você consegue ser uma “leitora amadora”? Há um botão de liga/desliga?

Sou uma pessoa só, com interesses e desejos diversos e leio sempre com prazer, curiosidade, mas cada leitura pede uma dedicação diferente. Quando estou editando, estou atenta a questões que surgem na minha leitura avulsa, de títulos publicados por outras editoras, e aquilo que encontro que me parece fora de lugar, desestruturado ou passível de ser lapidado vai seguir como está. Mas confesso que por vezes faço umas marquinhas de revisão em livros que estou lendo pessoalmente, não como profissional. Mais que um vício, gosto de apontar caminhos, frases belas, ideias instigantes e trechos que gostaria de voltar com facilidade no livro.
 
3) Em todo verdadeiro artista, a arte e a vida são uma coisa só. O que você acha dessa afirmação? Há separação?

Não há regras. Pode ser de muitos jeitos. E essa é a graça da vida e da arte.
 
4) Quais os livros fundamentais na sua formação? O que está lendo agora? O que indica como leitura para o momento atual?

Não tenho um livro preferido dentre todos. Os mais importantes mudam também ao longo da vida. Mas alguns autores me acompanham, como Graciliano Ramos, Jorge Amado, Clarice Lispector, Paul Auster, Mario de Andrade, Orhan Pamuk, Octavia Butler, Ana Maria Machado. São muitos os autores que me formaram. Gosto de ler meus contemporâneos, e principalmente os brasileiros, Jeferson Tenório, Carola Saavedra, Grace Passô, Daniel Galera, Marcio Abreu, são muitos.
 
5) A Literatura é, por vezes, considerada como escape da realidade e, outras, como forma de abrir nossos olhos para suas sutilezas. Como lida com essas percepções em sua própria escrita?

A literatura, assim como a arte, nos sensibiliza, diverte, ensina, alerta, assusta, é um aspecto da vida, fundamental para a existência humana, e para nos compreendermos no nosso tempo e em perspectiva.
 
6) Em qual momento você soube que queria trabalhar como editora de livros?

Até ser convidada pela minha sócia Márcia Fortes a montar uma editora, jamais havia pensado a respeito. Assim que comecei a entrar nos textos, descobri que eu já editava, há muito, trabalhos e criações de amigos próximos com quem discutia o meu trabalho e os deles. 
 
7) De todos os livros que você já editou, existe algum com o qual você se identifica mais e por quê?

Os livros fazem parte de determinados momentos da nossa vida. Alguns são especialmente gostosos de fazer não apenas por seu texto, mas também pelas discussões que suscitam, pelas pessoas com quem se pensa junto as eventuais soluções, ou apenas porque são belos e nos tocam. O primeiro livro que editei foi muito maravilhoso de fazer, Saga lusa, o relato de uma viagem, de Adriana Calcanhotto. O texto ia me chegando aos poucos, por e-mail, antes mesmo de ser um livro, e fui juntando os pedaços dessa que era uma viagem de turnê, mas também um perder-se de si, que recobra a lucidez através do próprio texto, da literatura. 
 
8) O que você leva em consideração ao publicar um livro? Quais são os seus critérios para a seleção dos livros que edita?

Publico o que acredito que precise ou mereça ser lido. E, claro, levando em conta a viabilidade dos projetos. Faço livros porque amo livros, mas vivo de vendê-los.
 
9) Você já se arrependeu de algum livro que editou? Caso sim, qual o motivo?

Nunca me aconteceu.
 
10) A Editora Cobogó está em um projeto interessante de entrelaçamento com o Teatro. Como está sendo a experiência de publicar a dramaturgia brasileira contemporânea em livro?

Tem 10 anos que publicamos dramaturgia, e já são mais de 90 títulos. Esta é uma coleção muito cara para mim. Tem muito a ver com os meus interesses não apenas no teatro, mas na performance do texto, na performance da leitura, seja individual ou coletiva. É onde publicamos na Cobogó o que podemos chamar de ficção. Ainda que muitas delas sejam verdadeiras teses ou ensaios. É onde discutimos a força e a singularidade do texto, e tantas outras questões que muito me interessam. Temos autores fenomenais.
 
11) Quais as qualidades de um bom leitor?

O bom leitor é aquele que se interessa pelo que está lendo. Que não tem medo de abandonar o texto quando não lhe interessa mais, mas também tem a persistência de seguir adiante, brigar com uma eventual preguiça de continuar a leitura, e que se propõe a se confrontar com as questões do textos, se dedicar a ele. O bom leitor é aquele que se oferece ao texto, e faz um pacto de cumplicidade que pode, ou não, acabar ao final da leitura. O bom leitor é aquele que, acima de tudo, se apropria do que está lendo.



Esta entrevista foi realizada como parte das atividades de práticas extensionistas realizadas junto aos alunos da graduação em Letras da PUC-Rio, sob a supervisão da professora Helena Martins e com a coordenação de Suzana Macedo e Lucas Viriato. 

quinta-feira, 2 de maio de 2024

CADERNOS DE ROSA: uma lição benjaminiana sobre a arte da linguagem, de Marília Rothier Cardoso


(...) na contemplação filosófica, a idéia se libera, enquanto palavra, do âmago da realidade, reivindicando de novo seus direitos de nomeação. Em última análise, contudo, na origem dessa atitude não está Platão, e sim Adão, pai dos homens e pai da filosofia. A nomeação adamítica está tão longe de ser jogo e arbítrio, que somente nela se confirma a condição paradisíaca, que não precisava ainda lutar contra a dimensão significativa das palavras. W. Benjamin, Origem do drama barroco alemão. Meu duvidar é da realidade sensível, aparente – talvez só um escamoteio das percepções. Porém, procuro cumprir. (...) Acredito ainda em outras coisas, no boi, por exemplo, mamífero voador, não terrestre. Meu mestre foi, em certo sentido, o Tio Cândido.
Era ele pequeno fazendeiro, suave trabalhador, capiau comum, aninhado em meios termos, acocorado. (...) Tinha fé – e uma mangueira. 
(...) Tio Cândido olhava-a valentemente, visse Deus a
nu, vulto. A mangueira, e nós, circunseqüentes. Via os
peitos da Esfinge.

Guimarães Rosa, Tutaméia.


É possível rastrear, na correspondência privada de Guimarães Rosa, o momento em que a atividade literária deixou de ser exercício diletante para tornar-se uma tarefa de profissional. Esse momento, localizado nos meados da década de 1940, quando se aproximava a publicação de Sagarana — conjunto de contos inscritos num concurso em 1934 e laboriosamente recompostos, nas brechas do trabalho diplomático —, teria como referência as cartas de 6 e 30/11/1945, enviadas do Rio para Minas, no propósito de combinar com o pai uma viagem a Vila Paraopeba e Cordisburgo, onde pretende retomar “contacto com a terra e a gente”, não como passeio, mas “de cadernos abertos e lápis em punho para anotar tudo o que possa valer” (Rosa, 1999, p.178-181). Planejada com ansiedade e interesse, essa excursão foi feita a convite e em companhia do amigo Pedro Barbosa, a cuja família pertencia a fazenda das Pindaíbas, onde o grupo se hospedou. As anotações, tomadas naquele dezembro de observação e lembranças, foram guardadas sob o rótulo: “Notas da grande excursão a Minas”; hoje, podem ser consultadas no IEB-USP, na pasta E-26 do arquivo do escritor. São registros variados sobre a natureza da região, com destaque especial para o rebanho e as lavouras da fazenda, correspondendo sempre ao empenho de captar o vocabulário, a sintaxe e a perspectiva locais.

Quando se compenetra da situação de autor publicado e dedica-se ao preparo de novos livros — os livros que surpreenderão público e crítica, ao se lançarem em 1956, com os títulos de Corpo de baile e Grande sertão: veredas —, Guimarães Rosa desenvolve seu próprio método de pesquisa para a formação de um acervo das falas do povo do sertão. Seus cadernos de escritor nada têm dos desabafos e invenções do romancista burguês e urbano; são cadernetas de campo destinadas ao levantamento de um saber prático, comunitário, feito de crenças e charadas, provérbios e cantigas. Posteriormente, datilografadas e suplementadas com indicações de uso ficcional, testemunham a etapa da mediação criteriosa entre o legado arcaico de narrativas, as exigências da arte experimental erudita e a reflexão questionadora do pensador inconformado com os padrões consensuais da modernidade progressista.

Considerada a partir dos documentos de sua construção, a obra de Guimarães Rosa apresenta-se como ensaio estético-crítico, isto é, condensação de uma prática narrativa, que recupera ruínas de uma épica (brasileira) híbrida e, assim, vai desenvolvendo uma teoria da linguagem, cifrada, à maneira alegórica, nos enredos encadeados. Para apoio dessa leitura complexa, recorre-se aos ensaios de Walter Benjamin cuja afinidade com a escrita rosiana, descontadas as defasagens de tempo, latitude e cultura, é evidente. Tanto no ensaio de juventude, “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem humana”, quanto em textos capitais como as propostas epistemológicas introdutórias à tese, Origem do drama barroco alemão, e como o prefácio “A tarefa do tradutor”, Benjamin formula o conceito de linguagem para além de qualquer intencionalidade comunicativa ou qualquer utilitarismo informacional: “o que a linguagem comunica é a essência lingüística das coisas” (BENJAMIN, 1971, p.81). Em conseqüência, o conceito engloba e aproxima as línguas articuladas dos homens e a linguagem “muda” da natureza, operando um deslocamento vertiginoso da razão lógica para a revelação mística. Essa trajetória é, precisamente, o ponto de encontro da aventura filosófica do alemão com a viagem ficcional do brasileiro. Para interferir em circunstâncias político-culturais diversas, ambos escolhem estratégia equivalente – transportar o leitor para um tempo simultâneo onde os mitos modernos, propostos à maneira do oráculo arcaico, perdem sua credibilidade autoritária. Seja para Benjamin, seja para Guimarães Rosa, a tarefa da “nomeação”, atribuída aos homens, se os destaca dos demais seres é em função do empréstimo de uma linguagem sagrada comum a todos e, portanto, tanto melhor empregada quanto mais experimentalmente próximo o nomeador esteja das coisas nomeadas. Se, na obra benjaminiana, o filósofo tem de apropriar-se do discurso do poeta, com sua margem intransponível de simbolismo enigmático, nas estórias de Rosa, a função narrativa deve ser ocupada pelo vaqueiro ou pelo jagunço, pelo menino ou pelo louco, aquele que ouve “o recado do morro” e freqüentemente toma a forma de animal ou planta.

O trabalho de Benjamin com e sobre a linguagem corresponde, grosso modo, a um refinamento e complexificação, ao longo de duas décadas, do texto de 1916, “Sobre as linguagens em geral e sobre a linguagem humana”. Paralelamente, é possível perceber, no início diletante de Rosa (desde os contos publicados em O Cruzeiro até Sagarana), um esforço ousado de produzir e praticar uma teoria da linguagem, na contramão da modernidade burguesa, pelo exercício do papel adâmico de nomeação. No entanto, só se pode dizer que esse esforço ganhou efetiva consistência, a partir dos meados dos anos quarenta, quando as pesquisas do autor são sistematicamente desenvolvidas e preservadas e, assim, dão conta da constituição de um instrumento lingüístico plural, com potência reveladora. Em “São Marcos”, por exemplo, onde se delineia uma versão inicial de teoria da linguagem, é o intelectual urbano (o morador recente do Calango Frito) que protagoniza a experiência radical com a percepção e o trabalho de nomeação da natureza enquanto conduz a narrativa. Por isso mesmo, se o conto evidencia a virtualidade mágica da linguagem, posta à prova pelo choque da cegueira, sua composição é incomodamente preconceituosa, pois o narrador citadino adota um humor canhestro quando apresenta tanto o poeta popular quanto o feiticeiro, ainda que ambos lhe tenham servido de mestres na revelação do “canto e plumagem” das palavras (ROSA, 1967, p.236). Muito diferente é a estrutura de “Cara-de Bronze”, um dos três contos que compõem a “parábase” de Corpo de baile. Aí, a trama não se conduz por uma voz individual; ao contrário, faz-se drama polifônico para narrar, em plena potência, uma trajetória de produção da poesia.

No curso do desenvolvimento de uma teoria da história compatível com sua teoria da linguagem, através do uso do instrumental místico de revelação da “verdade”, que, em vertente messiânica, funciona combinado criticamente com o materialismo dialético, Walter Benjamin faz-se arqueólogo da metrópole moderna. Por seu lado, Guimarães Rosa elabora, com rigor, um discurso mítico-ritualístico, apropriado ao confronto com a história moderna, empreendendo uma etnografia e uma etnologia das comunidades do sertão brasileiro. E se, ao contrário de Benjamin, Rosa descarta a postura política explícita, não deixa, nunca, de operar diplomaticamente, através das alegorias do latifúndio e da jagunçagem, sobre a esfera do poder político-econômico.

Voltando à correspondência de Guimarães Rosa, referida no início, e tomando-a como apoio na datação de sua trajetória de pesquisa, considera-se a longa troca epistolar com o amigo e conterrâneo, o empresário Pedro Barbosa (o mesmo da fazenda das Pindaíbas); aí, tanto quanto no diálogo com o pai, a especificidade do interesse literário do diplomata vai ocupando parte do espaço das notícias. Em 16/11/1948, já de volta à Europa, depois da “excursão a Minas”, Rosa pede: “Quando você voltar ao Rio, de uma de suas viagens ao feudo paraopebano, escreva-me contando alguma coisa que transmita o cheiro dos bogaris de lá, o barulho do ‘carneiro’ de tirar água, e o berro dos bois, distintos semoventes.” 1 Ao lado das notas, tomadas na fazenda, três anos antes – e, àquele momento, provavelmente, objeto de trabalho para a composição ficcional —, surge a necessidade de vivificar a pesquisa com vozes envolvidas com a vida sertaneja. Por isso mesmo, em 27/01/1949, há outro pedido semelhante — a assinatura da “Gazeta” de Paraopeba. Além de Pedro, que, por sua vez, recebe o pedido de recolher depoimentos de empregados e da família, Florduardo Rosa, seu pai, vai-se tornando um colaborador assíduo da obra do filho. Como bom narrador, alheio ao mundo da literatura culta, deve contribuir com a memória das vilas mineiras, onde os ciganos acampavam, as boiadas faziam pouso para serem embarcadas nos trens da Central e os comerciantes, nos dias de folga, exercitavam-se como caçadores. A aparente futilidade de uma carta particular é o espaço em que o autor inventa sua “máquina de escrita”, pois encontra, nos destinatários, informantes preciosos do discurso do trabalhador rural, discurso impregnado de um tempo anterior ao tempo parisiense, que pode servir de senha para uma leitura “a contrapelo” dos projetos de desenvolvimento latino-americano. Ao dedicar-se, paralelamente, à retomada de notas etnográficas da atividade pecuária e à reunião de lembranças e depoimentos de brasileiros próximos dos remanescentes de um sertão híbrido e arcaico, o escritor cria as condições de enunciação de um texto artístico coletivo, cuja anacronia – ou policronia funciona como crivo crítico tanto dos pressupostos estéticos quanto da conjuntura política daquele momento.

Cruzando a correspondência com as cadernetas de campo e os posteriores “estudos para a obra”, encontramos, pouco a pouco, indicações do processo compositivo das estórias rosianas. Significativamente, na versão passada a limpo das “notas da excursão a Minas” de 1945, dentre as observações sobre a lida com o gado e a fabricação da farinha de mandioca — observações atribuídas a Avelino, “homem sabido”, Pedro Figueiredo e Tio Moreira —, registrou-se a frase: “o boi arrancou de lá (...), deu uma peitada na porteira” , que deve ser aproveitada (conforme indicação à margem) no conto “Cara-de-Bronze”, ainda em manuscrito. Mesmo que, na versão publicada, a frase, tal e qual, não apareça, a violência, que ela transmite, se desdobra em formulações semelhantes para descrever o movimento frenético da apartação de gado em dia de chuva: “E o gado queria mortes. Trusos, compassavam-se correndo, cumprindo, trambecando, sob os golpes e gritos dos homens (...)” (ROSA, 1978, p.75) Com seu formato de diálogo — entre teatro e roteiro para filme —, “Cara-de-Bronze” destaca o resultado das anotações dos cadernos: é a coleção das falas dos vaqueiros a melhor estratégia de resgate da cultura sertaneja como “imagem do pensamento”. O trabalho rural, com seu discurso cotidiano e suas trovas e ditos, conservadores de uma sabedoria e de uma ética, transborda dos relatos individuais. Só acumula a mesma força do gado no meio da tempestade, se a poesia, que o nomeia, produzir a dissonância do burburinho de vozes, berros, trancos e toques de viola. 

O que determina o método peculiar do trabalho etnográfico de Guimarães Rosa 
(bem como sua contrapartida etnológica) é a busca bibliográfica paralela. As viagens pesquisa do escritor percorrem um roteiro traçado pela linguagem, que tanto se escreve nos livros – livros de percursos épicos e de viagens científicas – quanto se inscreve na memória. O arquivo do escritor compõe-se, assim, de cadernetas de campo e cadernos de notas de leitura, cada um dos quais desdobrando-se em pilhas de folhas (na maior parte datilografadas) de cópia, combinações, acréscimos e mudanças da matéria de cadernos e cadernetas. Nesses grupos de folhas datilografadas, chamados de “estudos para a obra”, registros e citações se alternam e produzem as expressões lingüísticas cunhadas pelo escritor e marcadas pela sigla m%. Dentre as cadernetas de campo, a única efetivamente conhecida (identificada pelo número 6) é aquela em que estão as observações correspondentes à última parte da viagem de maio de 1952, quando Rosa acompanhou a boiada, conduzida por Manuelzão, entre a fazenda da Sirga (onde passou alguns dias de adaptação e preparativos) e a fazenda de São Francisco, pouco adiante do Capão do Defunto, onde foi feita a reportagem de O Cruzeiro, que celebrizou a imagem do escritor a cavalo. As cadernetas da excursão de 1945 e da viagem de 1952, entremeadas com as citações e referências dos cadernos de notas, alimentaram vários conjuntos de “estudos para a obra”, reunidos sob o título de “Boiada”. Este é, certamente, o tratamento primeiro da tarefa de fabulação, que resultou nos livros de 1956 e nas coletâneas posteriores de contos curtos. É curioso observar, em contraponto, a pesquisa, empreendida por Benjamin, desde 1927, como exercício de historiografia dialético-messiânico-materialista do século XIX — atividade emblematizada no “trabalho das passagens” —, e o acervo rosiano de pesquisas, definido pela imagem da “boiada”. Entre o objeto urbano e o rural, destaca-se um traço de afinidade – o movimento, que fascina o pesquisador e orienta sua tarefa. O movimento econômico, que, em Paris, se concentra nas galerias do comércio elegante, definindo a ordem hegemônica do capitalismo, surge como atividade pecuária, na periferia. A ambigüidade do transeunte metropolitano, ora consumidor, ora flâneur, também se repete no cavaleiro sertanejo – vaqueiro controlado pelos interesses do proprietário ou jagunço resistente ao controle e à lei. É a tensão resultante do caráter incompleto ou aberto desse movimento dialético que marca a escolha e a associação (em geral, desconcertante) dos registros, desencadeando o rigor crítico dessa “constelação”.

No conjunto dos estudos da “Boiada”, ganham destaque as falas dos moradores das 
vilas e fazendas, especialmente aqueles que, lidando cotidianamente com os animais, sabem representar em imagem (ou “idéia”) iluminadora o nexo necessário entre o mundo concreto das coisas e o mecanismo mental da compreensão. (Mais que os vaqueiros, talvez sejam os bobos e os meio alucinados os que melhor revelam as operações do pensamento.) A importância desses produtores sertanejos do conhecimento é ressaltada pelo paralelismo entre suas falas e as citações dos clássicos e dos cientistas.

A escolha revolucionária do caminho místico para a produção do conhecimento — 
de um conhecimento, elaborado em contexto multicultural periférico, que se deseja alheio às hierarquias político-sociais — implica numa atitude de contemplação diante do objeto. Assim, o processo de engendramento narrativo de Guimarães Rosa envolve a multiplicação de inscrições das imagens verbais, que se repetem, do manuscrito da caderneta de campo para a primeira folha datilografada de estudo e desta para a segunda e, às vezes, para a terceira, sempre experimentando pequenas variações. É como que um ritual de traduções em constante busca de aperfeiçoamento. A contemplação do objeto concreto — com o objetivo de cumprir uma ordem, como a que foi dada ao Grivo, de demanda do “quem das coisas” — estende-se, no caso do escritor, à contemplação das formas lingüísticas em sua concretude de símbolo. Para bem seguir esse ritual contemplativo, o escritor parte da
nomeação sertaneja, proferida pelos vaqueiros, e, ao copiá-la, deixa que o nome (ou a expressão nomeadora) se contamine por termos de outras línguas ou registros culturais. São esforços complexos e delicados de tradução, uma vez que imitam o gesto adâmico aproveitando a própria fala do que se expressa sem voz articulada.

Na caderneta 6 da viagem de 1952, lê-se: “No brejo: garças; o monjolinho, do 
tamanho do galo do campo, mas ‘tem muito é pernas’; tem o bico preto, comprido e o pescoço comprido, que fica pendendo e batendo, feito um monjolo. É chumbadinho de preto e branco. Anda aos casais. Faz: — Cuik, quick!...” 4 Aí se percebe um misto de descrição, explicação do nome corriqueiro e empenho em traduzir como que a auto-nomeação do pássaro. Para ajudar nessa tarefa atraente e impossível, páginas adiante, transcreve-se um glossário de termos ciganos: “capado — balinchõn / defunto — mulõn / espora — buzég”. Nas folhas de estudo, a outra etapa do rito tradutório, desdobra-se o trabalho de aproximação do verbo sagrado, através da transcrição de quadras e da tradução da fala dos bichos: “O touro (Tarzan) que chegou com as vacas e sentiu outros touros (boiadeiros) no curral, e desafiava: U – hu – han! U – hu – han — tossido, sem parar”. E, diante do desafio da traduzibilidade, quando à beira da revelação da poesia, o escritor impõe pequena marca pessoal à linguagem mágica da criação: “m%: o quirquincho ou quirquinxo de um tatu caçado (kirkincho = o tatu , Aymara).”


*           *          *

Como Susana Kampff Lages, recentemente, vários estudiosos da obra de Guimarães Rosa têm destacado as afinidades entre a construção desta e o pensamento de Walter Benjamin, mostrando, nas estratégias escriturais do brasileiro, uma surpreendente afinidade com as proposições e a prática daquele poderoso filósofo da historiografia moderna. Podem-se apontar alguns desencontros biográficos desses escritores que, não fossem as circunstâncias adversas, teriam-se entendido perfeitamente bem: em 1938, Rosa foi enviado para Hamburgo na função de cônsul-adjunto mas, nessa altura, Benjamin já havia sido obrigado a exilar-se na França; três anos antes, cogitou-se o nome de Benjamin para integrar o corpo docente da recém fundada Universidade de São Paulo, é possível, no entanto, que o convite nunca tenha sido formulado efetivamente. Mais instigantes, talvez, que essas especulações, seja um exercício ensaístico de crítica — como os que Eneida Maria de Souza vem sugerindo e desenvolvendo – onde a reflexão se apoie num encontro imaginário entre o sertanejo cosmopolita e o europeu moderno capaz de especular com a herança alegórica do narrador arcaico. Tal encontro dar-se-ia (quem sabe?) numa espécie de pós-Babel, local do cruzamento de esforços tradutórios. Apegados à materialidade do som das falas, tanto familiares quanto exóticas, e da forma das escrituras (fonéticas e ideogrâmicas), Benjamin e Rosa não se surpreenderiam com os “impasses de mágica”, desencadeados por sua conversa. Imediatamente, perceberiam a possibilidade de compartilhar as artes da astrologia e da cabala, mais um conhecimento oblíquo de velhas religiões orientais, sem perderem pé nas urgências político-econômicas da contemporaneidade e sem compromisso com dogmas ou constrangimentos de ordem epistemológica. Logo, estariam trocando seus cadernos de notas e, enquanto o brasileiro transcrevesse, para seu uso, algumas citações sobre o flâneur parisiense, Benjamin, por sua vez, copiaria uma quadra sertaneja, que apreende os paradoxos da cultura na própria ordem da natureza:

O bicho que tem no mato
o melhor é pássaro-preto
todo vestido de luto
assim mesmo satisfeito.


Marília Rothier Cardoso 

quarta-feira, 1 de maio de 2024

exílio, poema de Gabriel Silveira


no céu sem estrelas
a festa de fogos
anuncia a corrida
que arrasta a poeira no beco
que fecha a janela
insone.

a linha de fogo cruza
o espaço
e ressoa distante
no canto do galo.
rajada de luz que mata a noite
na prévia da aurora rubra.

antes do sol
do alarme
e do noticiário
é o exilado que desperta
em desassossego.


Gabriel Silveira

terça-feira, 30 de abril de 2024

Poema louco


o fim tão perto
clitóris ereto

afana e ufana 
belezas dúbias 

amar a morfina
ou a dor desatada

cândido no sufoco 
poema de um louco


Rodrigo de Souza Leão

segunda-feira, 29 de abril de 2024

Um poema de João Pedro Maciel


Paixão é foguinho: sopra que acende,
cospe que apaga.

João Pedro Maciel

domingo, 28 de abril de 2024

Um poema de Thais Vicente


é clichê falar de amor
isso está fora de moda
bom é ser o comedor
tudo se resume a foda


Thais Vicente

sábado, 27 de abril de 2024

brainstorm


a chuva
são ideias
caindo do céu


Lucas Viriato

sexta-feira, 26 de abril de 2024

Entrevista: Lorena Pimenta, atravessamentos pela palavra

por Anaili Sousa e Matheus Guariento


Lorena Pimenta, autora afro-brasileira de 31 anos, é formada em produção audiovisual. Publicou, em 2017, o livro de contos Juro, foi quase amor, pela Editora Transversal, e participou da coletânea Chorar de alegria, publicada pela Globo Livros. Carioca, canceriana e aberta a tudo o que a vida tem a oferecer. Gosta de observar o mundo e retratá-lo com poesia em suas histórias e textos. Nesta conversa com o Plástico Bolha, ela nos conta um pouco sobre a sua relação com a leitura e a escrita.

1) Como a literatura entrou em sua vida e como você se relaciona com ela hoje?

A literatura entrou na minha vida ainda criança quando uma vizinha, professora, me presenteou com um livro no meu aniversário. Na dedicatória escreveu que desejava que a leitura se tornasse parte indispensável da minha vida. Anos depois, emocionada, ela chorava na fila de lançamento da minha primeira obra — Juro, foi quase amor. O livro que ela me deu foi Os cavaleiros da távola redonda. Me conectei especialmente ao contexto de amores impossíveis. Aquilo me inspirou de alguma forma. Me trouxe identificação, adrenalina, paixão. De lá para cá, eu deveria ter uns 9 anos de idade, não parei mais de ler. A literatura, daquele tempo até hoje, é o modo que encontro de me entender e mergulhar no mundo. É como mapeio meu coração e dou nome aos meus sentimentos para vivê-los melhor. Muitas vezes, amadureço enquanto ser humano nas entrelinhas das obras. Aprendo com os personagens. Permito que os livros me leiam mais do que eu os leio. A literatura é uma cavidade do meu coração.

2) Dom, inspiração, trabalho, achado: nasce-se poeta ou torna-se poeta?

Acredito que a poesia está em todos, mas alguns decidem vivê-la. Falo da poesia da vida como um todo. Agora, enquanto profissão, é preciso muito mais que inclinação, dom. É preciso dedicação, estudo e disciplina. É preciso insistir e evoluir enquanto autor. Além de aprender sobre o mercado como um todo. Dizem por aí que escrever um livro é sempre mais fácil do que vendê-lo.

3) Sendo uma profissional da palavra, o seu olhar está sempre afiado, ou você consegue ser uma “leitora amadora”? Há um botão de liga/desliga? 

Ao trabalhar com livros, é impossível lê-los e não fazer determinadas análises ou pausar a leitura algumas vezes para anotar inspirações ou impressões sobre técnicas. Contudo, isso não impede que eu aproveite a obra como um todo e me entretenha com ela. Acho que é complementar. Talvez eu tenha aprendido a ler melhor ao escrever. São processos entrelaçados.

4) Você consegue separar a sua obra da sua vida? ou vice-versa? Fale um pouco sobre a sua relação de vida e obra, se elas se interligam para você ou não.

Minhas obras se interligam com minha vida por diversos motivos. Um deles é o recorte de ser uma mulher negra, lgbt+, por exemplo. Minha perspectiva sobre amor e outros sentimentos acabam tendo esse atravessamento. Assim como a construção de textos e personagens (estou trabalhando num romance agora). E na hora de compor determinados aspectos, por mais diferentes que tenham sido da realidade, não deixo de beber na fonte dos sentimentos que já experienciei ou tenho ânsia (ou medo) de experienciar.

5) Qual sua obra literária favorita?

Pergunta difícil. A mais difícil até agora (risos). Tenho algumas obras. É quase uma traição citar apenas uma. Então, deixarei três: Hibisco Roxo, de Chimamanda [Ngozi Adichie], Caderno de um ausente, de [João Anzanello] Carrascoza; e A máquina de fazer espanhóis, de Valter Hugo Mãe.

6) Lorena, sabemos do seu lindo trabalho na coletânea Chorar de alegria. Você pode nos dizer qual é o seu texto favorito do livro e por quê? Como foi escrevê-lo? O que te inspirou? E como você olha para o texto hoje em dia?

“Quando o mar virou gente”. É um texto que me traz nostalgia. Tem paixão, mas, ao mesmo tempo, é dolorido. É a descrição do processo de reconhecer o fim, o desamor e nomear sentimentos. Escrevi numa tacada só, com o peito transbordando. Foi como correr e colocar lágrimas no mundo através do suor. Me inspirei numa antiga paixão. Olho com alívio por estar vivendo um amor saudável, calmo e gostoso. E também com alegria por ter evoluído tecnicamente, mas, ainda assim, ter muito carinho por tudo o que foi escrito ali.

7) O que está lendo agora? O que indica como leitura para o momento atual?

Terminei de ler Nunca vi a chuva, do Stefano Volp, e estou no finalzinho de O quarto de Giovanni, do James Baldwin. Não sei se indicaria um livro em específico para o momento atual, mas diria para as pessoas ficarem ligadas no trabalho dos autores que estão surgindo. É importante ler clássicos, mas também é importante dar valor ao que está nascendo agora. Acredito que todo autor traz certo retrato de sua geração. E, é claro, complementaria dizendo para buscarem diversidade nas leituras. Leiam autores negros, indígenas, lgbt+. Leiam mais mulheres. Leiam mais autores latinos. Gastem realmente um tempinho na busca do que pode interessá-los em vez de seguirem sempre pelo mesmo caminho.

8) A literatura é, por vezes, considerada como escape da realidade e, outras, como forma de abrir nossos olhos para suas sutilezas. Como lida com essas percepções em sua própria escrita?

Acho interessante encontrar um meio termo. Trazer temas atuais, orientar pessoas, trazer à tona problemas sociais, mas com leveza e humanidade para que gere empatia. Assim como colocar respiros dentro das obras. Acredito que a empatia possui um poder imenso de chocar pessoas. De fazê-las pensar e mudar de um jeito mais intenso e rápido. Não existe apenas um jeito de contar determinadas histórias, sabe? O que tenho visto agora no trabalho da maior parte dos novos autores negros é justamente isso. Abordar temas importantes sem excluir outros aspectos que são tão comuns à vida de todos. Tenho buscado esse caminho no meu atual trabalho, que está em andamento.

9) Quais as qualidades de um bom leitor?

Sentir o livro. Permitir que a obra te leia em vez de apenas lê-la. Não ter pressa, mas interesse.


Esta entrevista foi realizada como parte das atividades de práticas extensionistas realizadas junto aos alunos da graduação em Letras da PUC-Rio, sob a supervisão da professora Helena Martins e com a coordenação de Suzana Macedo e Lucas Viriato. 

quinta-feira, 25 de abril de 2024

Avarandado, de Matilde Campilho


Quarta nota para
a manhã infinita:

Afinal o grande amor
Não garante nada mais
Do que as 12 graças
Desdobradas pelos
Corredores do mundo
Agora isso é mais
Do que suficiente
E apesar dos bofetões
Do tempo invertido
Apesar das visitas 
Breves do pavor
A beleza é tudo
O que permanece


Matilde Campilho

quarta-feira, 24 de abril de 2024

Um poema de Naaman


Nunca é tarde
Para curtir a tarde
Na graça do agora.

Portanto,
Caminhe.


Naaman

terça-feira, 23 de abril de 2024

para um homem comum


amanhece na sexta da paixão
e uma prece me ocorre everyman
tão doce uma fissura uma aflição
à la philip roth à la saul bellow
quantos anos mais tola fixação
fraca fístola de rimas incompletas
e manuais de poesia obsoleta
com poemas do ordinário do amor
percebe ter ido embora a paixão
sem nem ao menos vc me dizer
eu te amo mas não vingou
acontece pode acontecer tchau
vc partiu e o tempo parou
vc voltou e o tempo se suspendeu
meu ex-amigo meu ex-amante
meu everyman meu judas judeu 

Larissa Lins

segunda-feira, 22 de abril de 2024

Um poema de André Capilé


para o búfalo
impaciente
não há bússola

ainda que

fareje
ou
pressinta

a coisa

André Capilé

domingo, 21 de abril de 2024

Evangelho segundo o pecador


me quero aberta em cálice e vinho e pão
           fenda rasgada de ritos

hábito deitado à fogueira
onde abrasam as peles recém-expostas

a carne viva pulsa porque viva
porque crua porque fera e primeira mulher
            serpente e desfrute

me quero imersa corpo inteiro no indevido
lambendo o caminho desviado
         com a mesma língua
         dos cânticos

o sacro e o santo
molhados da espera
com a sede dos abstêmios
e dos crédulos em desgraça

         e eu graal sacrílego
                 estou nua e disso não me envergonho


Milena Martins Moura

sábado, 20 de abril de 2024

UMA APRENDIZAGEM TRANSCULTURAL NOS CADERNOS DE GUIMARÃES ROSA, de Marília Rothier


As páginas, que se seguem, buscam ensaiar, através do enfoque microanalítico, uma reflexão sobre a literatura, enquanto espaço possível para o estabelecimento de trocas interculturais, na contramão dos modelos hegemônicos vigentes. Como parte da tendência contemporânea de inserir a interpretação literária no âmbito complexo da cultura, a trilha escolhida foi a dos estudos latinoamericanos, onde se destacam os trabalhos de Garcia Canclini e Martin-Barbero, especializados no exame das práticas híbridas, resultantes das negociações entre as matrizes populares, as eruditas e as midiáticas, detentoras das técnicas de divulgação. Tomando, como referência, as análises do artesanato, do circo, da canção ou dos melodramas radiofônico-televisivos, desenvolvidas por esses autores, procurou-se rastrear processos de construção do literário, identificando tramas intertextuais, as mais heterogêneas, que não só desmentem o isolamento das arte erudita experimental, como também desvendam as possibilidades e os perigos de sua circulação nos meios de massa.

A aproximação do foco analítico de um fragmento-amostra — recortado do conjunto de textos publicados e de seus respectivos proto-textos (levantamentos, anotações, rascunhos) —, visa o emprego simultâneo das técnicas decifratórias aplicadas ao acervo documental de escritores, e dos métodos político-interpretativos, com que se desvendam os conflitos, adaptações e mudanças do tecido multicultural. No âmbito brasileiro, costuma-se apontar Guimarães Rosa como exemplo de escritor moderno que desenvolveu sua tarefa com base numa pesquisa etnográfica – afirmativa confirmada por seu arquivo pessoal, sob a guarda do Instituto de Estudos Brasileiros da USP. Este foi o acervo do qual se isolaram algumas seções, considerando-as enquanto fragmentos de um hipertexto – miniatura do hipertexto da cultura brasileira --, para experimentar um tipo específico de close reading, o que combina a exibição ampliada do detalhe com o confronto minucioso de suas partes componentes.

A par da figura beletrística de um Guimarães Rosa, poliglota, inventor de estilo personalíssimo, artificioso e difícil, surge, periodicamente, na mídia, a imagem quase folclórica do viajante das trilhas sertanejas, na companhia de cantadores e boiadeiros — estes, depois celebrizados como modelos para as adaptações televisivas e cinematográficas das “estórias”. Os estudiosos contemporâneos, inconformados com esses estereótipos, que anulam a força questionadora da escrita rosiana, empenham-se em investimentos interpretativos, capazes de atualizar sua fortuna crítica.

As viagens pelo sertão, registradas em foto-reportagens e romantizadas nos livros didáticos, merecem resgate, porque correspondem a um momento capital na trajetória de Rosa. Na virada dos anos quarenta para os cinqüenta, depois da publicação de Sagarana (1946), este cuidou de profissionalizar seu trabalho. Como já vinha estudando, nos livros e nos museus europeus, a tradição épica culta, lançou-se à pesquisa sistemática da mesma tradição, na linhagem popular sertaneja. A etapa decisiva dessa pesquisa aconteceu em maio de 1952, quando o escritor atravessou, durante dez dias, os gerais mineiros, acompanhando uma boiada conduzida pelo vaqueiro Manuelzão. Como registro do trajeto, compôs-se um diário minucioso, posteriormente retrabalhado sob a forma de proto-textos das estórias em preparo. Aí, o material colhido na pesquisa de campo vai-se superpondo à reserva de leituras, acumulada pelo escritor. Entre as pastas, catalogadas, no IEB, como “Estudos para a obra”, acham-se quatro [E-26, 27, 28, 29] referentes à “Boiada” e uma, contendo amplas notas de leituras feitas entre 1948 e 1950 [E-17], intitulada “Dante, Homero, La Fontaine”. Em artigo sobre esta última, Ana Luiza Martins Costa (1997-1998 e 1999-2000) localiza, nas narrativas rosianas, a apropriação adaptada da épica clássica, não só como modelo das “virtudes heróicas” mas também como alargamento de possibilidades lingüísticas, no uso de intercalações, imagens múltiplas e principalmente “epítetos sintéticos”, “transcriados” em português.

Se, como resultado da reelaboração do diário da viagem, o capataz dos vaqueiros foi transformado no protagonista de “Uma estória de amor (Festa de Manuelzão)”, é o guieiro e cozinheiro Zito que melhor duplica a figura do escritor, pois, “dado em poeta”, levava, também, um caderno, onde registrava, em quadras, os sucessos do percurso. Entre os manuscritos de Guimarães Rosa (em família, Joãozito), onde há freqüentes transcrições das falas e trovas do guieiro-vate (“Vou contar um caso / Os senhores prestem atenção: / De uma saída da boiada / Da casa do Manuelzão.”), encontra-se, preservado, o próprio “caderno de Zito”.[E-26] Se o cânone ocidental aponta Homero como o transmissor, por excelência, do saber coletivo de seu povo, o estudioso da cultura rural brasileira encontra, nessas trovas, o modelo “dos epos das boiadas” – registro ritmado da experiência atual à maneira das lendas sertanejas. Além de observador e artista, Zito era dotado de “senso-de- humor”, o que revela sua co-autoria, por exemplo, de “O recado do morro”, novela de uma viagem, em cuja trajetória, como naquela da boiada, sempre se avistava o Morro da Garça. Compondo a novela, lê-se, em tom cômico-sério, uma espécie de disputa entre saberes: de um lado, o cientista alemão admira os elementos mais corriqueiros da paisagem para espanto e galhofa dos camaradas geralistas; de outro lado, moradores bobos ou meio malucos sustentam profecias, creditadas à voz do morro, que são desconsideradas pelo padre e pelo fazendeiro. Esse tipo de narrativa, que propõe enigmas e experimenta possíveis respostas — onde se conjugam a percepção estetizante, a intuição fantasista e o raciocínio especulativo —, foi certamente aperfeiçoado na convivência do escritor culto com sertanejos como Zito. Na entrevista a Günter Lorenz, Guimarães Rosa faz questão de confessar que, quando perseguido pelas dúvidas, conversa “com alguns dos velhos vaqueiros de Minas Gerais, que são todos homens atilados” ( Coutinho, 1983: 79 ). Ao longo da obra e da variedade de documentos, que apresentam seu processo de composição, fica patente o alto conceito atribuído, pelo escritor, à cultura sertaneja. Seu maior elogio aos mestres do saber ocidental – Dante, Goethe, Dostoievski – é considerá-los nascidos no sertão ( 85 ). Em termos de hoje, pode-se dizer que, aí, se opera um tipo de transculturação, independente da hierarquia hegemônica. Nos meados do século XX, quando o Brasil – como toda a América Latina – ocupava-se das reflexões acadêmicas contra o sub-desenvolvimento e das metas governamentais progressistas, nunca é demasiado ressaltar a atitude contradiscursiva de Guimarães Rosa, que se instrumentalizou com os jogos lingüísticos da vanguarda para, reacionariamente, reinserir a enunciação coletiva da épica no espaço do romance experimental. Buscando a co-autoria dos aedos gregos e medievais, tanto quanto a dos cantadores de feira e poetas-boiadeiros do sertão, logrou “introduzir uma lacuna não-sincrônica, incomensurável, no meio do contar histórias” ( Bhanha, 1998: 227 ). A sua maneira, o escritor antecipava, assim, o diagnóstico e as alternativas para a crise da modernidade. Sua atividade de pesquisador da sabedoria anti-histórica dos mitos e provérbios não é mais interpretada, hoje, como esteticismo alienante, mas como “performance” próxima à do artesanato e do melodrama dos hispanos, que trabalham suas matrizes arcaicas, através de processos eruditos ou midiáticos, como forma de resistência cultural.

As estratégias narrativas, aprendidas e adaptadas por Guimarães Rosa, podem mostrar-se bastante surpreendentes. Enquanto combinava o ritmo das quadras de Zito com o esquema sonoro da Ilíada, ia-se familiarizando com diferentes “retratos do Brasil”, produzidos desde o tempo das expedições científicas estrangeiras até Euclides da Cunha. Simulava querer extrair, de toda essa extravagante bagagem de informações, um saber atemporal e transcendente, mas, de modo sutil, produzia uma interferência na história presente, subvertendo projetos políticos de seus contemporâneos e pondo em questão a racionalidade prática estabelecida. Observem-se, por exemplo, suas relações com o velho amigo Pedro Barbosa, fazendeiro e empresário bem sucedido.

Colegas da Faculdade de Medicina e companheiros de pensão em Belo Horizonte, Pedro Moreira Barbosa e Guimarães Rosa corresponderam-se durante trinta e três anos. Pelo assunto da maior parte das cartas, sabe-se que, à medida que ampliava suas empresas, Barbosa ia-se tornando uma espécie de conselheiro econômico do escritor, que aplaudia, num tom entre invejoso e irônico, a riqueza do amigo. Ora, Pedro Barbosa, o homem de negócios, é justamente o escolhido para fornecer material informativo para a construção literária de um bobo – tratador dos porcos na fazenda —, que, como personagem-título do conto “Mechéu”, põe em questão, com seu comportamento desconcertante, toda a lógica da propriedade lucrativa. Antes de dizer de que forma Pedro Barbosa tornou-se co-autor da estória de Tutaméia, é interessante lembrar o convite, feito por ele a Rosa, no final de 1945, para uma viagem à Fazenda das Pindaíbas, em Paraopeba. Esse convite resultou na primeira excursão de pesquisa local sistemática, descrita, pelo próprio escritor, como “oportunidade para penetrar de novo naquele interior nosso conhecido retomando contato com a terra e a gente, reavivando lembranças, reabastecendo-[se] de elementos, enfim, para outros livros.” [Carta ao pai, 6/11/1945]

No arquivo do escritor, podem-se ler, compondo a pasta E-26 – “Notas da grande excursão a Minas” —, os registros, transcritos e já em processo de reelaboração, daquela estada nas Pindaíbas, onde um certo Tio Moreira chamou a atenção do escritor, autodefinindo-se, proverbialmente: “Moreira racha mas não quebra!” A maior parte do material recolhido diz respeito ao trato com os bois e à sabedoria tradicional da região, incluindo ditos, cantigas e festas cíclicas, como o batuque e a folia de reis. Mas é possível que, em meio a sua tarefa de etnógrafo amador, Rosa tenha-se deixado fascinar pelo apego à rotina diária e pela expressão intensa e enraivecida de Mechéu. Tempos depois, preparou um verdadeiro questionário sobre a aparência, hábitos, gostos e idiossincrasias do agregado “semi-imbecil” e enviou-o ao amigo Pedro Barbosa. A partir das respostas do empresário, foi construindo – como atestam as anotações dos Cadernos de Estudo 6 e 21, guardados no arquivo – a personagem e sua trama.

Limitado e ridículo, mas dotado de incompreensível dignidade, Mechéu suscita o riso e a reflexão, pois, se repete, em relação ao Gango (outro bobo da fazenda), a mesma atitude de desprezo superior com que o tratam, acaba perdendo toda a energia quando o Gango morre. A linguagem da narrativa impregna-se do mistério, que a épica – na versão culta ou popular – tem a tradição de perscrutar, pelos caminhos do maravilhoso e do humor. Nesse caso, “Mechéu”, o conto e a personagem, aproxima-se de “O recado do morro”, que reúne sete figuras excepcionais – bobos, loucos, criança e poeta – na função de receptores e transmissores da mensagem cifrada referente à vida e à morte. Assim, a temática e os processos de composição dos textos de Guimarães Rosa concentram-se no comportamento dos indivíduos marginais, que passam mensagens, ajudando a preservar uma sabedoria ameaçada. Trata-se de uma sabedoria composta de ruínas de diferentes culturas, desqualificadas ou esquecidas. Para que o escritor moderno possa apreender esse recado híbrido, é preciso servir-se das vozes mais improváveis e contraditórias. Se o vaqueiro trovador surge como emissário direto das palavras de sua comunidade, um empresário de raízes rurais pode ser levado a comunicar, mesmo involuntariamente, saberes regionais alheios a sua atividade. A centelha do humor, que transpõe o impasse, também resgata os saberes minoritários.

Guimarães Rosa desempenha o papel do intelectual que se prepara, no ambiente do conhecimento erudito moderno, para um trabalho ousado de desconstrução dos valores hegemônicos, tanto estéticos como epistemológicos. Recorde-se que sua tática envolve memória, invenção, raciocínio lógico e fantasia intuitiva, justamente para explorar os conflitos entre esses campos de produção dos artefatos culturais. Como se trata de tarefa gigantesca, o escritor, ambicioso e arguto, usa a artimanha de convocar, informalmente, uma série de parceiros para a boa realização de seu objetivo. No resgate da multiplicidade anônima dos transmissores do legado épico, a narrativa rosiana identifica alguns sujeitos com cujo discurso vai produzindo os fios de sua trama. Cada um desses, como representante de um tipo de estória ou cantiga, tem sua figura fundida à imagem do escritor, que, assim, assume diferentes faces, simultâneas ou sucessivas – a erudita, de “ledor de Homero”; a nacional, de discípulo de Euclides da Cunha; a boiadeira, andarilha, imitada do admirável guieiro Zito; e a de observador de seres excepcionais, espertamente captada num descuido do fazendeiro-empresário Barbosa. Somando-se a essa lista, outro alter-ego exige atenção cuidadosa, pois, sendo a presença mais constante na correspondência arquivada do escritor, torna-se figurante quase imperceptível na obra publicada. Trata-se de Florduardo Rosa, o pai de Joãozito, a quem este, por meio da troca de cartas, transforma no seu principal fornecedor dos casos do sertão.

Comerciante por profissão e caçador para diversão, nem analfabeto nem culto, Florduardo ocupa o posto estratégico de mediador entre os mediadores. Pela via da familiaridade, supre o filho literato de matéria narrável, quando este não pode sair a campo para suas observações etnográficas. Torna-se, assim, uma espécie de fonte secundária, não só porque registra sua experiência por encomenda, mas porque, com pretensões a bom contador de estórias, já apresenta um texto pré-elaborado. No trato com o discurso do pai, revela-se um aspecto interessante do Rosa-filho: quando jovem, João distanciou-se do modelo paterno para tornar-se capaz de receber e gerir uma herança – exemplares da épica sertaneja, preservados por narrador experiente – cuja enorme riqueza, o pai mesmo não poderia calcular. Nas raras entrevistas, o escritor demonstra, sutil e respeitoso, sua rejeição de menino às ordens do pai; na maturidade, no entanto, com esperteza produtiva, cultivada de propósito, estreitou relações epistolares com aquele sertanejo semi-letrado, que o acaso batizou com o nome peculiar de Florduardo Pinto Rosa. Incentivando o pai a colaborar no empreendimento literário, reconhece seus dotes narrativos: “Gosto muito do jeito d[e Papai] escrever (...). Fico pensando que a minha ‘bossa’ de escritor eu herdei dele, que maneja a pena com tanta facilidade, personalidade, vivacidade e graça.” [carta ao pai, 13/09/1962] Em quase todas as cartas, há comentário sobre as notas enviadas e pedido de outras: “Apreciei, muitíssimo, as notas que o senhor me mandou, sobre os enterros na roça. Aliás, o senhor não imagina como têm valor para mim essas informações. Pena é que o senhor não mande delas freqüentemente.” [9/7/1955]

As técnicas redacionais de Florduardo são dignas de comentário. Fica patente sua preocupação em distanciar-se da linguagem oralizada, variando sinônimos, usando torneios humorísticos e maneiras de produzir realce. Quando narra o primeira dos seus “três contos do papagaio”, descreve o dono do “bichinho” treinando-o com o propósito de “auferir alguma coisa que lhe avolumasse o bolso”. Lembra um freguês beberão, que o perturbava, nos tempos de comerciante em Cordisburgo: “Ai de mim o dia que o Tio Inocêncio estava de folga ou nos azeites e que resolvia sangrar a coruja encostado no balcão!...Santo Deus!...” Se colecionava provérbios antigos, metáforas pitorescas e expressões locais, a pedido do filho literato, como atestam os exemplos anteriores, não se contentava em simplesmente empregá-los, fazia questão de montar combinações dos mesmos, deixando na frase a sua própria marca. É o que se destaca na maneira de identificar de onde os ciganos traziam seus costumes: “lá de sua terra natal, lá da Sérvia ou lá dos calcanhares onde o diabo perdeu as botas.” Mostrando-se tão cioso de seu estilo, não deixa de comentar a produção do filho, onde não lhe passa despercebida a referência discreta, com que aquele o homenageia, através de um figurante de “O recado do morro”. Na carta de 27 de junho de 1956, acusa o “recebimento dos belos volumes do Corpo de baile e de Sagarana com sua roupa nova.” Depois acrescenta: “Tenho gostado muito do novo livro, do buriti bom, do buriti grande, apesar de que você não falou no buritizinho das mulatas, etc. Você escreveu muito, botou bastante malagueta no guisado, Frei Florduardo, etc.” [Pasta 42]

A tradição narrativa de encaixar estórias, umas dentro das outras, ou de ir desenrolando o fio das associações de casos está presente nas notas de Florduardo; por exemplo, quando contrasta os ciganos antigos e os modernos, não deixa de enxertar a estória do velho “cego de um olho”; também, na narrativa de suas caçadas, um episódio emocionante sempre puxa outro, engraçado ou inacreditável. Aí, certamente, Guimarães Rosa encontrou subsídio para revitalizar aquelas técnicas ancestrais. Mas, além da técnica ou dos assuntos encomendados, o escritor deve ter assumido para si a preferência do pai pelo enfoque de personagens engraçadas e incômodas, que brigam por seus desejos, mesmo na contramão do deboche e da exploração social. A constância com que Mechéu tomava-se “por infalível noivo de toda e qualquer derradeira sacudida moça vista”, assim como a “paixão” do Catraz — um dos sandeus, que transmite “o recado do morro” — pela “moça da folhinha” correspondem a adaptações e desdobramentos da narrativa em que Florduardo acompanha os lances do namoro, que o preto Tio Inocêncio imagina manter com uma das filhas de D. Isabel, “gente simples e boa”, moradora da roça. [Pasta 42]

O escritor considera as anotações de Florduardo como objeto de trabalho constante, no processo de produzir suas próprias narrativas. É o que diz, na carta de 5 de julho de 1956, a propósito do recém-publicado Corpo de baile: “Como o senhor não deixará de ter notado, ele está cheio de coisas que o senhor me forneceu (...). Agora estou justamente relendo as mesmas e passando para um caderno, classificadas e em ordem, (...) para serem aproveitadas em futuros livros.” Reescrevendo os textos do pai, Guimarães Rosa tem oportunidade de agregar suas lembranças à memória da família e da vila de Cordisburgo e arredores. Constrói, assim, — numa operação inversa àquela que descreve no conto “O espelho” — uma imagem compósita, pois delineia seu perfil, apropriando-se de traços dos antepassados e dos vizinhos e ainda inclui, no conjunto, características dos bichos domésticos, criados na infância. No entanto, quando se acompanha a saga cosmopolita e sertaneja dos “recados” transmitidos pela escrita rosiana, fica patente que “não se escreve com as próprias lembranças, a menos que delas se faça a origem e a destinação coletivas de um povo por vir ainda enterrado em suas traições e renegações.” ( Deleuze, 1997: 14 ) O povo, cujo devir se inscreve nessas “primeiras” e “terceiras estórias”, não forma uma nação nem reivindica uma verdade regional. Sua força política é, antes, da ordem fantástica das culturas diferentes, que se chocam e se entrelaçam. Em carta de 4/12/1963 a Edoardo Bizzarri, Guimarães Rosa diz escrever “como se estivesse traduzindo de um alto original, existente alhures”; em outra carta de 25/11/1963, descreve sua atividade narrativa como trabalho “mediúnico”. Se se descontar a artimanha mistificadora, que o escritor exercita, diante dos leitores, essas afirmativas explicitam o “agenciamento coletivo da enunciação” das estórias.

A escritura assinada por Guimarães Rosa, através da participação de seus vários co-autores, fez uso experimental da língua portuguesa, ao agregar aspectos morfo-sintáticos de outras línguas e de falares regionais, num desenho verbal híbrido, para propor, há cinqüenta anos, uma forma — inventiva e humorística — de convivência entre tempos disjuntivos e diferenças culturais. Seu paralelo contemporâneo é, por exemplo, o artesanato que resiste e se desenvolve, por essa América Latina afora, adaptando, com graça e malícia, a técnica e os modelos milenares à matéria industrializada e ao gosto do mercado internacional. Artesão das palavras, Rosa desenvolvia o relato, de modo a salvar do desaparecimento iminente as contribuições de Zito, Manuelzão, Florduardo e tantos outros contadores e cantadores anônimos. Superpondo fórmulas épicas, arcaicas e recentes, a técnicas da montagem industrial moderna, produzia, por processos de harmonização do heterogêneo, objetos verbais belos mas desconcertantes. Sua assinatura personalíssima, nesses objetos-estórias, não esconde mas põe em realce as marcas autorais de seus companheiros narradores, tenham eles sido identificados em livros canônicos, em cartas familiares ou nas conversas noturnas dos boiadeiros. Através do rastreamento das etapas de pesquisa, escolha, mistura e reelaboração das estórias — etapas guardadas nos registros do arquivo do escritor —, em confronto com a obra publicada, identifica-se, para além das tramas intertextuais ordinárias, a evidência de um trabalho composicional coletivo. Assumido como programa, tal trabalho confere à literatura um desempenho de ponta na reformulação das relações interculturais.