sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Um poema de Lorena Martins


a noite no sofá
é pele
cascata
que não alcança
a janela.

as tardes
se trancafiam
nos cantos da sala:

desperto
meu bonde abandono
a mão no parapeito
e minha garganta

que voa.


Lorena Martins

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Yôga

De pé.
Tire um pé do chão.
Agora o outro.

Lucas Viriato


quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Às vezes , ócio

 
às vezes choro,
pois no choro lavo a alma.

ás vezes, oro,
pois a fé me acalma.

às vezes, calmo,
em profundo silêncio,
não preciso falar a vivalma,
apenas viver meu ócio.


Giovani Miguez

terça-feira, 1 de outubro de 2024

Um poema de Paulo D'Auria

Feito um menino que levantasse a lona do circo,
espiava debaixo da linha do horizonte.
Aprendeu a dar risada do destino.

Paulo D'Auria


segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Vilarejo

Pessoas apenas passam
Assim como os ventos
No vilarejo
Do esquecimento

Arnoldo Pimentel

domingo, 29 de setembro de 2024

Vozes do cerrado

brasília, brasília,
onde estás
que não respondes?!

em que bloco,
em que superquadra
tu te escondes?!

Nicolas Behr

sábado, 28 de setembro de 2024

Fósforo

Breve pedaço de madeira,
em atrito contra a superfície áspera,
dura, impassível.
Não ceder, mas romper-se, incandescente.
O fogo, o lume,
que súbito se apaga.

Paloma Roriz

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

A DANÇA DOS TEMPOS POSSÍVEIS

O passado não dorme
nem jazz.

Recusa a quietude
da memória
mas sem me chamar
para dançar.

Gira mudo e sozinho, sozinho,
entrecruzando meus caminhos
presentes, lançando ao ar
o perfume em torvelinho
de passados outros, e presentes, e futuros
que poderiam ser, e ter sido, e contudo...

Thássio Ferreira

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Um poema de Danilo Diógenes

[...]

digamos
que todo poema
é aquilo que sobra
de uma pessoa;
almoçar, então, ao lado deste poema
é almoçar ao lado de qualquer pessoa
é construir as rampas que nos guiam para o alto
e as escadas que nos levam para baixo

Danilo Diógenes


quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Shopping Trem Tudo


Ilustres passageiros,
Chegou o passatempo
para a sua viagem!
Pastilha de eucalipto
Cura sua garganta e
Refresca o seu hálito
Uma é vinte, "seis é real".
Pilha, esponja, "super bond"
Barra de cereal.
Isqueiros, calculadoras
Dois "cotonete" é real.
Bananada é dez.
Paçoquita é dez. 
A SALVAÇÃO É JESUS!
Dois amendoins é cinquenta
Laranja com acerola é cinquenta
Dez tempero é real
Cinco batom é real
"PRÓXIMA PARADA: ESTAÇÃO DE SÃO CRISTÓVÃO.
DESEMBARQUEM PELO LADO ESQUERDO".
A SALVAÇÃO É JESUS!
Novalgina é real
Dipirona é real
Sabão pra piolho é real
Skol lata é real 
SÓ JESUS PODE SALVÁ-LO DESSE MUNDO DE PECADO.
"Salvou-o O RHUM CREOSOTADO".

Solange Valeriano Pinto

terça-feira, 24 de setembro de 2024

poesia

a minha poesia é lírica

tem a beleza bucólica
do voo de uma andorinha

tem o latido melancólico
de um cachorro campestre

tem a solidão jururu
de uma galinha ciscando

mas o que ela queria mesmo
era ter...

a força do tigre
a astúcia do coiote
a agilidade do jaguar
e o mistério do morcego

Jovino Machado

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

"shakespeare"

se nós escrevêssemos
tudo o que sentíssemos
estaríamos sempre sós
e para sempre ocupados
porém não tão infelizes.

Leonardo Marona

domingo, 22 de setembro de 2024

DESPEDIDA

Quando eu morrer,
filhinho, não se
esqueça de colocar água
com açúcar no potinho.
Te visitarei disfarçado
de beija-flor.

Daniel Viana

sábado, 21 de setembro de 2024

AUTREMENT

ecos do dia
num caleidoscópio
movem-se lentas larvas
entre palavras e coisas

In other words:
ninguém sonha em prosa.

Patrícia Lavelle

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

easy come easy go

me despedaço
esta manhã 

              será que alguém escutou?

Pedro Tostes

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Um poema de Nicolas Behr

o poema
é área pública
invadida
pela imaginação

Nicolas Behr

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

CADA VEZ MAIS

com o tempo
minhas dúvidas se tornam
pétalas.

Beatriz Bastos

terça-feira, 17 de setembro de 2024

Viento ligero

Un viento de recuerdos
atravesó mis sueños,
ha traído su olor
rojo, sin dueños.

Mi dejarte
sola, embarazada
de calidez y libertad.

Jade Prata

segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Destino

Eu sou um trem de ferro
Que leva minérios
No coração.

Eu sou um trem de ferro
Que traz histórias
No vagão.

Eu sou um trem de ferro,
Seguindo os trilhos
Da palma da minha mão.

Petrônio Souza Gonçalves

domingo, 15 de setembro de 2024

A LENDA

Pouco se sabe dos Passarinhos Verdes.

Apenas que eles nos procuram
para se alimentar das surpresas.

Pousam em galhos discretos
e se escutam:

— Olha! Um pass...

Voam para longe, felizes por
terem completado seu destino.

Pedro Lago

sábado, 14 de setembro de 2024

PERDEU-SE

dançarina baiana perdeu o rebolado nas areias de copacabana. quem encontrá-lo, é favor devolvê-lo.

muito mais que monetário, ele é de inestimável valor afetivo para sua dona.

mary saravá
7407-0198

Letícia Féres

sexta-feira, 13 de setembro de 2024

contração do fim de um mundo

No opositor me encontro,
encontro eu, você e a fera.

No opositor me escondo,
escondo eu, você e a fera.

No opositor penso que penso,
mas na verdade é fera, fera e fera.

Luiz Fernando Priamo

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Hemingway e os lugares seus


Gabriel García Márquez diz em sua crônica “Meu Hemingway Pessoal” de 1981 - fácil de encontrar online - que só teve a oportunidade de ver Hemingway uma única vez, este já Nobel e nos finalmentes desta existência. Foi em Paris quando ainda não era o Gabo Nobel de Literatura.

Gabriel traz neste texto, dentre outras coisas, a ideia de que todos os instantes vividos por Hemingway, continuaram a lhe pertencer para sempre porque ele tinha um “inexorável poder de apropriação”, ou seja, que ele tinha a capacidade de tomar posse de certos lugares simplesmente por frequentá-los e mencioná-los em seus textos, pela força da sua passagem por eles. Deixava sua marca.

No entanto, essa ideia contradiz uma das minhas passagens favoritas do próprio Gabo no livro “Doze Contos Peregrinos” de 1992, um dos meus favoritos. No texto, ele diz que, inevitavelmente, depois de um tempo os lugares que haviam sido seus e sustentavam suas nostalgias eram outros e alheios. Gabo, 10 anos após o 1º texto, acha que até Hemingway está sujeito a isso.

Pensei nisso enquanto andava pelas ruas de Havana e fui aos bares que Hemingway mais frequentava na cidade quando morava em Cuba. Os famosos “Bodeguita del Medio” e “La Floridita”, onde ele gostava de tomar mojito e daiquiri, respectivamente, bares estes que foram também visitados por Gabo. Atualmente as biroscas não são mais biroscas e estão lotadas de turistas, grupos tocando “Guantanamera” e Buena Vista Social Club, cobrando preços acima da média nos drinks e celulares tirando fotos de tudo (o meu também, assumo).

E talvez esses lugares não sejam mais de Hemingway mesmo. Mas é realmente maravilhoso pensar no que ele fazia por ali enquanto tomava todas e fumava um charuto Cohiba, quais ideias teve, que contos iniciou e quantos rasgou naquelas mesas. Pensei nisso e acredito que, no final das contas, prefiro pensar como o Gabo mais novo, que talvez fosse menos amargo:
“Na realidade, Hemingway continua a estar onde menos se imagina 20 anos depois de morto, tão persistente e ao mesmo tempo tão fugaz como naquela manhã, que talvez fosse de maio, em q me disse adeus, amigo, da outra calçada do boulevard Saint-Michel.”

Afinal, como disse Hemingway: “o homem não foi feito para a derrota, pode ser destruído, mas não derrotado".


Eduardo Moraes

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

No vício


trago
a cortina de fumaça que tu leva
em cada frase
sem matéria
na nuvem de não-ditos
que nos rodeia.
é meu pulmão que bate por ti.
que arde em todo toque seu
e vira cinzas no ponto final
em vermelho fogo
que pende dos seus lábios
entreabertos
no fim da noite.

Gabriel Silveira

terça-feira, 10 de setembro de 2024

Perguntas


"No que você pensa quando olha p/ mim?"

"Qual o centro do mundo p/ você?"

"Você não pensa que é o centro do mundo, pensa?"

"Pode morrer sem ternura?"


Franklin Alves Dassie

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Um poema de Otávio Campos

como se chama
esse lugar
que existe
depois que
a noite
termina?

Otávio Campos

domingo, 8 de setembro de 2024

Cantada


Quero ficar morandinho no teu abraço,
E em nenhum outro lugar.
Quero ficar dormindinho no teu ombro,
Até a noite terminar.
Quero ficar sonhandinho com você
Aonde quer que eu vá.


Thais Vicente

sábado, 7 de setembro de 2024

Alarme


Seu despertador é um choque elétrico?
Você acorda todo queimado?


Augusto de Guimaraens Cavalcanti

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Um poema de Naaman


Uma vez me disseram
Que das "verdades"
Nada se deve tirar:
Levei a sério.


Naaman

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

Um poema de Flávia Muniz Cirilo

Apresento-te o tempo,
o tempo grande das coisas mínimas.
O sol cabível no grão,
o chão do lugar onde pisas,
o presente de estar em tuas mãos,
soberano amor eterno,
luz infinita manifesta em mim.

Flávia Muniz Cirilo

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Um poema de Otávio Campos


as pálpebras da cidade
quando pesam
fecham-se madeira ou metal
da direita para a esquerda
trancas e taramelas


Otávio Campos

terça-feira, 3 de setembro de 2024

Ao machismo

minha gatinha,
não me interessa
o que vem
da sua cabeça,
mas o que tem 
na sua calcinha...

meu gatinho,
quero saber
o que ganho de fato,
para conhecer
o tamanho exato
do seu pintinho...


Gringo Carioca

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Um poema de Amanda Bruno

ela tinha os olhos de ressaca
não era capitu, era cachaça
morava no centro da cidade
ardia de suor e fumaça
ia e vinha como uma onda
sem lua

ela era metade gente
e a outra não era peixe

mas ela cantava, iemanjá
e eu me afogava

Amanda Bruno

domingo, 1 de setembro de 2024

Pernambucano paulistano

cada são paulo a que retorno
toca tanto que é ruim

na marginal eu quase choro
só porque me sinto vir

pernambucano paulistano
como tantos por aqui

tenho-a minha toda e tanto
que não a posso possuir

Frederico Barbosa

sábado, 31 de agosto de 2024

ELÁSTICOS

Cada vez mais os elásticos cedem.
Nós também.

Franklin Alves Dassie

sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Um poema de Wanda Monteiro

sonharás com o rio

tuas ausências
irão penetrar como lâminas
nos tímpanos do sonho

o rio falará contigo
irás chorar

tua dor caberá no rio
e o rio caberá em tua lágrima

Wanda Monteiro

quinta-feira, 29 de agosto de 2024

NOITE ALTA

A noite vai alta.
No quarto, o luar
acende o retrato
de um menino. O mar

conta velhos contos
de morrer e amar
e o menino o escuta
no retrato ao luar.

[...]

Ruy Espinheira Filho

quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Mente

Hoje rodei o planeta na rede de minha varanda.
Antes de rir, me entenda um segundo:

minha cabeça, meu mundo.

Rodrigo Raro

terça-feira, 27 de agosto de 2024

COGUMELOS

Quando o coração se inflama
incendiado pela paixão
esse fogo não ilumina;
é como o cogumelo venenoso
que brota durante a noite úmida:
não alimenta, queima, apenas queima
o organismo, e alucina.

Renato Rezende

segunda-feira, 26 de agosto de 2024

SÚBITA

viver é hoje, tão prosaico
e em prosa tudo segue, lento
mas eis que de repente irrompe
uma ideia simples, você

tão pequenina pulsação
fruto brotado nesta folha
vela e revela, mostra e guarda
o que está além da prosa, em verso

Henrique Rodrigues

domingo, 25 de agosto de 2024

paz

fiz as pazes comigo mesmo
de hoje em diante
seremos bons inimigos.

Braulio Coelho e Breno Coelho

sábado, 24 de agosto de 2024

Um poema de Daniel Valentim Mansur

a voz é cigana,
estrangeira ao que se amontoa: 
          beleza
sobre beleza
sobre beleza,
na agricultura da ordem pela novidade.

a voz é pássaro recolhido
enquanto chuva, ruína e arado.

Daniel Valentim Mansur

sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Devoras

minha alma tua 
nua
devorada
pedaço a pedaço

deglutinação
de cada espaço em branco
do papel
a carne poema

digerido
permaneço 
em ti

Pedro Tostes

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Um poema de Luciana Tonelli

a falta de lugar
ocupa todos os cantos
o não estar estando viva
é a causa do meu espanto

Luciana Tonelli

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Um poema de Carlos Orfeu

no
bambuzal

brisa
faca
afia

o som
das folhas
ásperas

impertinentes
em voos
suicidas

Carlos Orfeu

terça-feira, 20 de agosto de 2024

Um poema de Lorena Martins

planetárias
as pupilas deletam
o céu

Lorena Martins

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

BEM QUE SE KISS

Bem que esse seu beijo
podia ser inteiro
e não metade
Durar um ano inteiro
e não uma tarde.

Hudson Pereira

domingo, 18 de agosto de 2024

PRECONCEITO, um poema de Tuca Muniz


I

É uma senhora
que anda sempre enfeitada.
Tem um grande defeito. 
Quando vê um grupo de pessoas
Pobres e pretas conversando, 
nem passa perto. 
Acha que são bandidos. 

II

Ela foi ao shopping...
Olha daqui, olha de lá.
De repente vê um rapaz negro ao lado. 
Leva um choque, 
pensa que é um ladrão.

III

Segura a bolsa, e com olhos arregalados, 
Corre pra perto de três pessoas
                     que se assustam com ela 
e correm 
De longe a chamam de louca. 

IV

Aí ela fica parada, e vê um guarda de costas. 
Põe a mão nas costas dele.
Ele vira.
É um guarda preto.
-O que houve, minha senhora?
-Aquele homem. Estou com medo dele. 
                           Parece um ladrão.
-Não, minha senhora! É um professor.

Tuca Muniz

sábado, 17 de agosto de 2024

Um poema de Dado Amaral

fumaça de incenso
o mínimo minuto
revela-se imenso

Dado Amaral

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

Um poema de Roberta Lahmeyer

Aquele cadeira
na sua plenitude imovél
parece iluminada
por uma certeza tranquila

Aquela cadeira desconhece-nos

Roberta Lahmeyer


quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Uma écfrase para Morro da Favela, de Tarsila do Amaral, por Kamily Durval

 

(Morro da Favela, Tarsila do Amaral, 1924)


Uma família reunida,
sem pensar na comida.
O tempo é ocioso:
e traz quase um milagre!
Uma paisagem bela, repleta de cor:
esse é o cenário da favela moderna.
Plantas desérticas, cachorro satisfeito…
Até me esqueço da realidade
que não foi pauta de toda Modernidade.
Eu nunca vi e…
Ainda não vejo uma favela assim.
Será que a Modernidade não chegou para mim?

Kamily Durval 

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

POEMINHA ASTRAL #21

boêmio como a cachaça de minas
manso como um queijo minas.
e energético 
   como
o minério 
   férrico feérico
de minas.

Matheus José Mineiro

terça-feira, 13 de agosto de 2024

Um poema de Rogério Snatus

meu voo rasante
em seu ventre
joguei faíscas de sonhos
após saltar sem pára-quedas
sobre o hálito dos desejos

Rogério Snatus

segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Disforia Genealógica — Fotomontagem e prosa poética de Maria Júlia Barroca

 Imagem: MANJUU

Como eu posso deixar você ir se o ar que eu respiro são as suas raízes que cresceram na minha medula?

Tenho medo do meu corpo. Ele é opaco a mim, uma sombra do tempo presente. Ao outro, ele é translúcido, uma extensão de um passado que não me pertence. 

Tenho medo de quem a essa couraça pertence. 

Tenho medo da dor.

Eu sei que a dor é maior do que a psiquê consegue carregar e do que a carne sustentará, mas até quando a carne é o fardo do ser de ser humano?

Enfim, tenho medo da minha dor. 

Maria Júlia Barroca 

domingo, 11 de agosto de 2024

origami

com a mesma
precisão
que corto meus
lábios
faço origamis
de ventania.
dobro um boneco de neve, um barco, uma língua.
seco meus cortes
com origami
e saliva.

Ana Tereza Salek

sábado, 10 de agosto de 2024

A última sessão de análise

afundar na lama
areia movediça
uma pedra podre
uma falsa cortiça

uma triste musa
atrás da treliça
um amor insone
que morre de preguiça

um ateu que xinga
que não vai à missa
um fogo frio
que a cinza atiça

Marcelo Dolabela 

sexta-feira, 9 de agosto de 2024

Um poema de André Giusti

Resistir,
feito
aquele
resto de
poeira
entre a
pá e a
vassoura.

André Giusti

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

Alice

o sonho é uma pedra
arremessada no poço

sua turbulência
moldando o dia.

Sergio Cohn

quarta-feira, 7 de agosto de 2024

Carta inédita de Zé Celso Martinez Corrêa para Oswald de Andrade

Evoé Ozwald de Andrade! 

A partyr da leytura da sua obra, tudo o que fyz foy ynfluencyado por você! Você foy meu Shakespeare, meu Goethe, me trouxe a chave para toda a cultura brazyleyra! Você entendeu que o mundo acabarya por se tornar um lugar movydo pela antropofagya. Tudo que ze chama de myx, tudo o que ze vê de ymygração que contorna cydadez e devora a cultura ocydental, é a próprya cultura, que eztá comendo e vay comer o mundo. Oz povoz devoram e vomytam o moralysmo, a noção do bem e do mal, da cultura purytana, az utopyaz, az ygrejaz. A coyza não é mayz zer zocyalyzta ou yr para o céu. Não exyzte mezzyaz, zó devoração! Bebo na zua fonte de pós-modernyzta, com a zabedorya de que a Europa já não é mayz o centro do mundo. Contra todoz oz ymportadorez de conzcyêncya enlatada! O centro do mundo deve ser forjado na memórya doz grandez genocýdyoz da modernydade: o yndýgena e a dyázpora negra.

O “Rey da Vela” foy uma forma que você noz deu de tentar aprender, atravéz de sua conscyêncya revolucyonárya, uma realydade que era e é o opozto de todaz az revoluçõez. O texto foy uma revolução de forma e conteúdo para exprymyr uma não-revolução. Uma modernydade abzoluta de Ozwald de Andrade! Ou uma eztagnação da realydade nacyonal. Ou zenylydade mental nozza. Em 1967, o Teatro Ofycyna Uzyna montou “O Rey da Vela”, e, enquanto dyretor, adaptey-o lyvremente à cena. Uma montagem fyel ao texto zerya um contrazzenzo, conzyderando o poder cryatyvo anárquyco dezze texto oswaldyano. A partyr dezza montagem, aprofundamoz a preocupação com o gezto e com o corpo, a partyr de laboratóryos de estudoz do corpo. O corpo é tydo como uma máquina dezejante, uma produção dezejante, é a superfýcye para o regyztro de toda produção de dezejo. Eram ymportantez oz depoymentoz pezzoayz bazeadoz no geztual: querýamoz eztudar oz geztoz fundamentayz que az pezzoaz adquyrem em função de zeuz ofýcyoz, ou zeja, o gezto doz bancáryoz, doz polýtycoz, doz médycoz, doz eztudantez. Havya nezzez laboratóryoz uma fonte fantáztyca de aprendyzado! Quantas coyzaz poderýamoz entender atravéz do corpo! Numa noyte, zentadoz no Bar Cervantez, obzervey todoz oz homenz que entravam, e ao subyr o degrau, davam uma ajeytada no saco. Concluý que ajeytar o zaco era uma verdadeyra obzezzão mazculyna. Mays tarde ezze gezto foy eztylyzado e uzado, em momentoz precyzoz, peloz pryncypayz perzonagenz de “O Rey da Vela”. E atravéz do corpo e do coro, embebydoz pelo saber antropofágyco, codyfycamoz o zeu texto em cena.

Com a montagem de “O Rey da Vela”,  o Ofycyna entra na revolução cultural de dezcolonyzação completa do Brasyl, retomando a Antropofagya da Cultura doz Ýndyoz Caetéz que comeram o Byzpo Portuguêz Zardynha que ya à Europa buzcar mulherez brancaz para cruzarem com oz colonoz portuguezez. Devoramoz o teatro do Hemyzféryo Norte, comydoz pelaz culturaz que azzumymoz em nozzo corpo: a doz ýndyoz, doz ezcravoz afrycanoz, doz emygrantez que cozynharam a mazza da meztyçagem doz Bayxoz do Brazyl. Em cena, adoto o nú! O nú de coztaz, de lado, frontal!  O que atropela a verdade é a roupa, o ympermeável entre o mundo ynteryor e o exteryor. Eztar nú em cena é uma reação contra o homem veztydo, veztydo à la colonyalydade!  

Em homenagem a você e aoz 50 anoz do Teatro Ofycyna, montamoz o ezpetáculo Macumba Antropófaga em 2011, a partyr da leytura do Manyfezto Antropófago de 1928. A Revolução Caraýba ze tranzformou num ato, em um rytual cênyco, onde oz artiztaz-dançarynoz tornaram-ze “Tupynambáz e Aymoréz”, oz corpoz e o coro preenchendo o ezpaço cênyco. Todo o ezpaço ze torna um ezpaço cênyco no Ofycyna, daz ruaz do bayrro da Bexyga até a próprya  eztrutura do teatro. O Ofycyna é um terreyro eletrônyco! Em cena: todoz - artyztaz, técnycoz, e públyco numa yntegração (devoração) antropofágyca. Só a antropofagya noz une! É a ley do homem, a únyca ley do mundo. E azzym, fazemoz contato com o Brazyl Caraýba, com o ynztynto Caraýba.

Ao dylema hamletyano do mundo ocydental cryztão “to be or not to be” você rezpondeu: “YEZ, TUPY” e, atravéz do Teatro Ofycyna, retornamoz ao mundo bárbaro amerycano, azyátyco, afrycano. A mynha antena do mundo é Ozwald de Andrade! O meu coração zegue uma pulzão dyonysýaca! O meu ezpýryto ze materyalyza no corpo atravéz do teatro… experymento Deuz atravéz do corpo! Teatro como reztytuyção do tezão pelo próxymo! Teatro como centro orgyástyco! Te-ato! Como ato. Teatro como uma vyda ao avezzo: morte ynycyátyca atravéz da antropofagya! Fuga de dycotomyaz e purytanyzmoz!  Um poder tranzumano! Uma zagração! Antropofócyo! Antropoforgya!  

Evoé!,

ZÉ CELZO, O CAVALO OZWALDYANO DA CULTURA BRAZYLEYRA

Recebido por Maria Luísa Brito

terça-feira, 6 de agosto de 2024

Um poema de Patrícia Del Rey

Estranha, estéril. Muda.
Nenhuma linha sequer.

Patrícia Del Rey

segunda-feira, 5 de agosto de 2024

ZOOM

O importante da fotografia
É o click da máquina que
Abre a boca da câmera
E devora o instante

Rosália Milsztajn 


domingo, 4 de agosto de 2024

Teresa: Minha Igreja — Fotomontagem e poema de Luciana Bezerra

 

Minha igreja
Meu farol
Meu norte
Meu descanso
Minha certeza de morada
Namorada onde esteja
Abrigo do meu viajante.
Nunca mais você, Teresa
Nunca mais dormi a noite
Nunca mais sorri por dias
Nem tomei a comunhão
Mas farei meu carnaval
E afinal vou te encontrar
Pra me perder em suas pernas.

Luciana Bezerra


sábado, 3 de agosto de 2024

Um poema de Thiago de Freitas Peixoto

As pessoas perfeitas
têm muitos defeitos em comum.

Thiago de Freitas Peixoto

sexta-feira, 2 de agosto de 2024

Um poema de Cesar Kiraly

nem vontade
ou mesmo sorte
o norte e
nem sorte
o corte 

Cesar Kiraly

quinta-feira, 1 de agosto de 2024

SONHO

cito: 

esse amor
— o que você recebe —
no fim é igual
àquele amor
— o que você dá

— e a poesia
está pronta

Larissa Andrioli

quarta-feira, 31 de julho de 2024

plac, poema de Jorge Salomão

POR TODO LADO DESTRUIÇÃO
NO MEIO DISSO TEUS OLHOS
IMENSOS SOFRIDOS SEM DIREÇÃO
ENQUANTO A ALMA QUEIMA
ESTALA PLAC E PEDE MAIS... 

Jorge Salomão 

segunda-feira, 29 de julho de 2024

fábrica do poema

na linha de montagem
recebo um corte
e passo adiante

Gabriel Silveira

domingo, 28 de julho de 2024

para Emily Dickinson


quando o mundo todo é uma ruína
e meu corpo quer apenas descanso 
penso nas palavras escritas
por uma mulher que deitou-se ao sol
em paz por olhar o que é belo
sem temer ser olhada de volta 

Marcella Mahara 

sábado, 27 de julho de 2024

Eu queria fazer um poema pra você


Numa ocasião em que eu estava
(como das outras vezes) prestes
a me naufragar no abismo do delírio,
houve um sorriso de dentes postiços.

Mas eu já não queria mais cair
na cilada do amor fugaz e preferia
estar quieto e fugir para longe do
alcance de uma outra decepção.

Então eu me internei num hospício
e amarrei as minhas mãos ao pé
de uma árvore frutífera de onde
eu poderia escavar o chão de barro.

Ao fim do terceiro dia de psicopatia
veio a diretora dizer que eu deveria
partir para um lugar que não sabia
e me deram um endereço e o contato.

Era um lugar acolhedor e distante
coberto de grama e cerca de arame
mas quando fui atravessar a ponte
um cão vampiro me atacou de noite.

Sobrevivi como alguém que se esqueceu
da longa noite passada e caminha como
se o dia estivesse amanhecendo de novo,
apesar do rastro de sangue e a boca seca.

Havia uma casa deserta e eu pensei em
largar tudo o que eu não nunca tive e
vir morar aqui no meio dos bichos que
comunicam-se através de sinais e apitos.

Lembro de uma escada pintada de verde
e uma mulher bonita que veio me atender
com as mãos estendidas e um sorriso
encorajador para que eu dissesse tudo.

Não havia o que contar além do fato
de eu ter andado distante e perdido
e que, nesse período, eu havia criado
enredos irreais para me manter vivo.

Tudo era então uma simples questão
de fechar os olhos para os pássaros e viver
tranquilo como os homens banidos de si
e que se refugiam no labirinto do amor.

Ai que delícia que é poder acordar e dizer
que estou vivo, mesmo não tendo nada
ao redor a não ser o microfone em que
digo isso e acompanhar o seu eco no abismo.


Milton Rezende

sexta-feira, 26 de julho de 2024

O intruso


caras e bocas e
ouvidos atentos e brincos
que pendem pros ombros desnudos
e braços tão finos com mãos
que se apertam e olhos
que veem seus amigos de infância
e os lábios que riem dizem sobrenomes
narizes pra cima que testam sua classe
e rostos que viram quando você passa
no meio dos passos
do salão em festa


Gabriel Silveira

quinta-feira, 25 de julho de 2024

Alforje, de Otávio Campos


Tenho trazido cabelos à altura
dos ombros porque acredito 
na força das coisas mortas

quarta-feira, 24 de julho de 2024

Um poema de Thássio Ferreira

como
através de uma brasa
—a própria língua —
aprender a sangrar
                                   uma voz

que em sua dança de relance
alcance dizer em pânico
palavra que valha a pena

como
pólen de pensamento
gozo desajustado
lampejo doce
                        delirância

Thássio Ferreira

terça-feira, 23 de julho de 2024

Epígrafe

sempre achei que os livros
fossem feitos de terra e
as palavras
                            sementes


João Lima

domingo, 21 de julho de 2024

Com carinho, de Beatriz Arantes

Estou escrevendo na cozinha. O ambiente mais estreito da minha casa e onde todo dia de manhã tento consolidar uma rotina. O ambiente que menos mudou nos meus poucos vinte anos de idade. E talvez menos ainda nos vinte anos anteriores que minha mãe viveu aqui. Queria ter uma máquina de escrever, que nem ela já teve. Um costume antiquado, vintage, retrô, seja lá qual for o termo adequado. Mas imagino que seja mais propício a esse cômodo e a essa iluminação calorosa do que meu computador desproporcional, de coloração cinza metálica, que se assemelha mais a uma espaçonave do que a um objeto cotidiano. Se bem que hoje em dia tudo é cinza mesmo, tal qual um rio poluído. E, assim mesmo, somente serve para refletir nossa imagem.

Estou escrevendo agora porque sonhei. Sonhei com um escritor dizendo-me o que escrever. Devo ser a maior piada do feminismo contemporâneo: uma jovem artista, sempre independente em todas suas formas criativas, resolve seguir estritamente o que um homem, fiel de uma única arte, tem a lhe dizer sobre como criar. Mas o conselho era bom, melhor do que os da vida real. De qualquer forma, não há dissonância cognitiva alguma: ainda que personificado na figura de um homem, o conteúdo provém inteiramente do meu eu onírico. Inconscientemente eu, mas, ainda sim, eu mesma.

Escreva com carinho. Foi esse o conselho revolucionário que ouvi da minha mente sonhadora esta noite. Simples, mas, sobretudo, efetivo. Acordei com um impulso acalentador sem igual, uma ternura materna digna de criador com sua criação. Não havia nada sobre o que escrever, senão sobre isto. A escrita como conteúdo e o carinho como forma.

Mas ainda que aquele escritor de pouca coisa sabia, seu personagem onírico me provocou um desafio e tanto. Apesar da minha determinação, me deparei com um impasse prático: como se escreve com carinho? Tudo que eu tenho produzido até então — pouca coisa, de fato, mas isto não vem ao caso — jorra a partir de uma nascente de sofrimento inesgotável, formando um rio de águas turvas de alívio a partir do momento em que é posto no papel. Como posso atrelar esta dor a algo tão tenro quanto o carinho? Seria puro mau gosto da minha parte me colocar nesta posição quando genuinamente esta não me pertence.

Mas será que de fato não me pertence? Ou será que apenas não permito pertencer a mim?  Deve haver alguma correnteza de carinho no meio desta tromba d'água que chamo de sofrimento. Afinal, se tal mensagem do escritor em mim despertou tamanha ternura, talvez eu seja capaz de canalizar esse sentimento em palavras. Criar uma nova nascente, mais esperançosa e vivaz do que a anterior.

E ao redor de toda nova nascente, ganha-se vida. Vida como nunca antes vista. A mata ciliar se firma naquele solo fértil e produtivo; populações ribeirinhas se sustentam da fluida diversidade jorrada; e uma fauna perigosamente bela perambula pelas árvores recém esverdeadas. É um futuro tão próspero que me cego diante da sua visão. Digna dos meus melhores sonhos, fruto da minha melhor versão.

Esboço um sorriso perante este fluxo de imagens intrometidas, metidas a tomarem conta do meu pretenso curso. Escreva com carinho, claro, escreverei, meu bem. É o que me resta para desaguar no plácido oceano de equilíbrio que me foi predestinado.

Entretanto, o meu sorriso logo se desmancha e meu lábio apreensivo prende-se sobre meus dentes. A trajetória de um rio é sempre sinuosa, permeada por declives e vales. Pedras diversas surgirão pelo meu percurso, quiçá montanhas inteiras. Estarei disposta a enfrentar tudo com carinho? Minha respiração se encurta e minhas mãos desesperadas agarram-se à frágil mesa enquanto tonteio-me diante o despedaçar daquilo que considerava ser meu coração. Já consigo me ver afogando em um redemoinho de sofrimento, apegando-me às escassas correntes de carinho que uma vez julguei potentes o suficiente para me sustentarem. Assumo a desilusão completa, sou apenas um ser terrestre buscando me aventurar por essas palavras inquietas.

Aqui jaz lamentosa minha tentativa desesperada de fazer jorrar carinho, encharcando com minhas lágrimas caridosas estas páginas embranquecidas por uma luz artificial e este cinza metálico computacional porcamente reluzente.  Talvez as nascentes só…surjam, tento me convencer em meio aos soluços. Não se pode forçar um solo a jorrar aquilo que ele não queira. Mesmo que o homem dos seus sonhos lhe diga o contrário.

Enxugo relutante meu choro afluente e retomo inebriada a minha rotina de dormir, como sempre faço após uma longa sessão de escrita. Ou após uma longa dose de vida. Sim, são cinco da tarde ainda, mas é tudo a que posso recorrer. Recolhendo-me sobre as cobertas, acesso os meus mais vívidos sonhos, prestes a descobrir uma nascente de carinho genuíno por mim mesma. Enfim, guardo a esperança de, em um solo fértil, uma nova safra de mim florescer.

Beatriz Arantes

sábado, 20 de julho de 2024

Fumaça, de Miriam Alves

Estou a toque de máquina
corro, louca, voo, suo
a fumaça sou eu

Estou a toque de nada
vivo, ando
como a comida envenenada
e o comido sou eu

Estou a toque de selva
os ferros torcidos, sacudidos
dentro de uma marmita
e a marmita sou eu

Nego, mas vivo dizendo
Sim
a tudo que me dói na cabeça
e o doido sou eu

Paro, mas estou sempre correndo
doem as pernas, os pés
e este corpo é o meu

Amanhã me encontra acordada
como a noite deixou
e o insone sou eu

Indago, mas não estou escutando
a pergunta anda solta
e ninguém explicou
que a resposta sou eu

Miriam Alves


Este poema antológico de Miriam Alves foi publicado pela primeira vez em "Cadernos Negros". n. 5,  São Paulo: Quilombhoje, 1982.


sexta-feira, 19 de julho de 2024

Ao fantástico sr. H., repórter de manchetes

Precisas da desgraça por perícia,
Do sensacionalismo da Baixada,
Do bicheiro, do jogo, da milícia,
E da estação Central superlotada
Na hora em que a praia está uma delícia!

E quando a circunstância te é propícia,
Exaltas os bandidos e a empregada,
Ou a mão da lei na forma da polícia;
Ao passo que te serve a dor roubada
Como convém ao mote da notícia!

Enalteces na glória ou na miséria
Frivolidades típicas de um lorde,
Ou o espetáculo em guerra na Libéria;
E não careces que ninguém concorde,
Desde que venda e a capa seja séria!

Que sangre onde haja sangue por pilhéria
Pois trazes se em África ou num Fiorde
Ipso facto, a verdade deletéria!
E havendo sangue então que se transborde,
Meu amigo, consegues a matéria!

Guilherme Ottoni

quinta-feira, 18 de julho de 2024

Um poema de Larissa Lins


perdão se ignoro o sol se sigo em pranto
sigo réstias para a luz eu cega sigo o canto


Larissa Lins

quarta-feira, 17 de julho de 2024

Cafés torrados, de Eduardo Moraes

Um dia, tomando um café na rua sozinho e meio entediado, fiquei prestando atenção na conversa de duas mulheres. Todo entediado é meio fofoqueiro. O papo não era nada interessante: Thomas estava com problemas na escola e Julinha não queria mais ir ao balé. Do outro lado fiquei sabendo que Mauro tinha rompido o ligamento cruzado e que estava querendo mudar de emprego. Até que a mãe de Thomas e Júlia, depois de tomar um gole do café e fazer uma cara feia, falou uma frase que me instigou:

”Menina… Não me acostumo com esses cafés especiais. Acho até ruim! Sei que aquele que tomo em casa é super torrado e que nem café puro é, mas já me acostumei com aquele gostinho, é até familiar.”

As mudanças, ainda que para melhor, costumam ter um gosto estranho e ser incômodas e difíceis de digerir.

Ela sentiu saudade do café ruim. A nostalgia bateu. Lembrou só dos seus pontos positivos. Será que só porque era familiar que era bom? E as novidades trazidas pelo especial criaram resistência e repulsa. Até as qualidades viram defeitos.

É caindo nessa que voltamos à estaca zero ou descemos um degrau. Muitas vezes escolhemos substituir o café ruim por outro ruim ou pior. Ou vivemos o estranho vazio que se auto completa ao sentir a ausência do negativo que se foi. Que não sabemos se é cômodo ou incômodo. E nos fechamos. Degradamos. Encolhemos. Criamos casca. E o especial vai perdendo espaço, se afastando e se deixando afastar. E vamos caindo nas peças que nossas cabeças nos pregam fechando os olhos para os bons ventos que podem estar por vir.

Mudar dói, dá frio na barriga e te faz questionar muitas coisas, mas é bom demais completar um vazio deixado por algo ruim com algo que realmente faz sentido, que foi trabalhado e pensado para o seu próprio bem. Certamente a saudade do super torrado vai bater quando você menos esperar, o estranhamento pelo especial também, mas um dia você acorda e, sem perceber, seu paladar mudou e seu sarrafo foi levantado.

Que aprendamos a evitar os cafés super torrados, e, é claro, a viver e sentir muitos incômodos (dos bons), ainda que saibamos que não será fácil se acostumar com eles.

Eduardo Moraes

terça-feira, 16 de julho de 2024

Um poema de Beatriz Bastos


Desde que nasci
te escrevo
estas palavras
seus olhos, algo seu, algo meu,
que ao escrever
te prendo, te liberto,
para sempre
na minha pele
como em palavras
nuas.


Beatriz Bastos

segunda-feira, 15 de julho de 2024

Flor da idade


Homem que chora vira
florzinha — gritou o pai.
Joaquim abaixou a cabeça,
sentiu brotar dentro dele
uma flor de delicadeza.
Acabou chorando


Daniel Viana

domingo, 14 de julho de 2024

Poema escrito na orelha de um livro


Gosto da palavra — regozijo.
Tem o sabor de uma manhã
primaveril.
Nos limites da folha de papel
o poeta é uma criança
preocupada com o tempo
alvoroçada com a noite.

E o poema um copo
de leite 
tomando com a mesma ânsia 
de um menino que tem
o dia inteiro
até o anoitecer. 


João Lima

sábado, 13 de julho de 2024

Pura manha


Essa manha não irá triunfar!
Da sua esperteza
já sou amigo de longa data.
Tente,
mas não descanse.
Quem sabe um dia
Você toma o meu lugar.


Márcio Kozlowski

sexta-feira, 12 de julho de 2024

1ª edição do Prêmio Caminhos de Literatura!





Iniciativa de Henrique Rodrigues, escritor e gestor cultural, o Caminhos de Literatura terá sua primeira edição este ano. O prêmio busca dar oportunidades para autores iniciantes na cena literária brasileira e, nesta primeira edição, terá como foco romances inéditos. A obra vencedora será publicada pela editora Dublinense, com adiantamento de direitos autorais de R$ 5 mil, além de uma tutoria sobre mercado editorial com o curador e gestor do projeto e participação em eventos literários. O edital está no site: www.premiocaminhos.com.br.

quinta-feira, 11 de julho de 2024

Programa Noturno


No silêncio sepulcral desta noite
abro a janela
e recebo a visita do demônio.
Juntos travamos um pequeno diálogo
acerca da destruição do mundo.

Depois percorremos os cemitérios
e os ninhos dos pássaros agourentos,
respiramos o hálito da morte
e compactuamos da miséria dos homens.

A noite era fria e indiferente
aos nossos propósitos de celebração.
Com dedos trêmulos cavamos o altar
de nosso macabro ritual.

Antes, porém do sacrifício final
fomos resgatar a memória dos corpos
e garantir a permanência dos zumbis
sobre a face andrajosa do planeta.

Abrimos um caixão e uma brisa vaporosa,
que era ao mesmo tempo fúnebre e sensual,
despertou nossos instintos de espécie
e pouco depois e para sempre estava
consumado o ato lascivo e sagrado.

Chegamos depois ao altar fatídico,
e sob asquerosos protestos de ódio
à vida social e fútil dos vivos,
pegamos os punhais do sacrifício
e nos entregamos ao suplício eterno.


Milton Rezende

quarta-feira, 10 de julho de 2024

poeta


se você fosse caro
em vez de ser tão raro
eu deixaria de ser poeta tanto assim
pra ser puta no bairro bonfim
e com o suor sagrado do meu trabalho
compraria você todo pra mim


Ana Elisa Ribeiro

terça-feira, 9 de julho de 2024

da terra sob os peitos e outros castigos pelos feitos de eva


milena esconda essas vergonhas
limpe dos olhos dos pios a presença na casa

                 escórias
                 o sujo

paredes molhadas
de cheiro vivo

guarde no armário a presença na casa milena
guarde nas gavetas
debaixo das roupas proibidas
que roçam na umidade

sobras à beira do canal
              dobras
na ponta dos dedos

               é suja a presença na casa

a terra sob os peitos qual serpente
e outros castigos pelos feitos de eva

maçã vermelho-sangue salivando gêneses


Milena Martins Moura

segunda-feira, 8 de julho de 2024

Walter Benjamin


Beija Walter
Beija o beija mim

Beija o cinema
Como arte Superior

Mas não aguento
O Eisenstein

E a falta de som
No vácuo d'eu


Rodrigo de Souza Leão

domingo, 7 de julho de 2024

Bagatela - IV, de Paulo Henriques Britto


Vida sempre rascunho, folha sem pauta,
pasto de lacunas e rasuras,
risco sobre risco, pré-
-texto de nada.


Paulo Henriques Britto

sábado, 6 de julho de 2024

Janus

 
a garça encorujou-se no flamboyant
e por trás do vermelho
o pescoço em S distendia
brancos ataques às rolinhas
que ao seu lado pousavam
pensando na paz...
encorujar-se
nem sempre um verbo triste.


Lasana Lukata

sexta-feira, 5 de julho de 2024

Esquinas

 
há um céu que se divide
entre azul e cinza e nuvem

há carneirinhos em seus cabelos
e lésbicas rodando bolsinha

na manhã de minha sopa quente
há barbitúricos e cocaína

no clitóris da paisagem
há uma engrenagem nuance

entre azul e cinza e nuvem
há um céu que se divide


Rodrigo de Souza Leão

quinta-feira, 4 de julho de 2024

Sobre o caiçara, de Carlos Andreas

 
O mar entre dois versos

se alarga e transborda em versos
os versos a soluçar se exilam;

o caiçara sem versos para viver
abandona a estrofe

e tudo vira mar


Carlos Andreas

quarta-feira, 3 de julho de 2024

Anúncio, de Luiza Mussnich

 
Procura-se
uma relação que dure
mais de quinze hematomas
seis viagens a Itacaré
incontáveis gozos
três copos quebrados
telefone para contato
3672-4832
(dor aguda)


Luiza Mussnich

terça-feira, 2 de julho de 2024

O filtro


entardecia
quando você displicentemente bagunçou os cabelos
no meio da fala apressada
com um sorriso brincando
nos cantos dos lábios.
no fundo dos seus olhos luzia
uma cor inominável.
castanho talvez, mas com a suavidade do rosa
desabrochando no calor rubro
em faísca.
de repente, a mesa parecia um tom mais viva
o chão estendia-se em cor de sonho
e a brisa que soprava com calma
coloria o ar
que nos envolvia.


Gabriel Silveira


segunda-feira, 1 de julho de 2024

Julho, um poema de Alexandre Bruno Tinelli

Hoje a noite é tênue
e diante do golfo iluminado do teu corpo
o mar se reencontra com o ar.
Você dorme. E meu coração sente
uma necessidade rouca
de tecer novas relações com a luz.
Súbito se anulam os impulsos
que fazem da vida um ritmo constante
de erros. Não é hora de despedidas.
Tampouco se alargam as margens
do que era plano e era sonho.
Um corcel negro cavalga meu peito
rumo ao incêndio onde agora me deito.

Alexandre Bruno Tinelli

domingo, 30 de junho de 2024

cinturão, de Milena Martins Moura


tenho uma dobra vermelha na pele do rosto
como um corte

          entranha

você viu

a marca vermelha da cama no meu corpo
branco
onde dói o sol

você viu
os meus sinais em coleção
imitando a pose ereta de órion

ombro em rigel pé em betelgeuse

as partes proibidas à mostra
faz calor

e eu tenho sede

todos os tabus desnudados
         constelações

e eu ariadne corpo celeste
vindo jantar nos escombros

as pontas dos seus dedos mastigando os meus contornos

         entranha

todos os lábios
mordendo
a fraqueza da carne


Milena Martins Moura

sábado, 29 de junho de 2024

Lei do retorno


Minha mente anda tão perturbada,
Quanto meu coração,
Deixando o instinto me levar,
À loucura da sensação.

Agora,
Irei te ter no controle.
Após, fica por conta do destino.

Eu lírico,
Dia memorável,
Vontade imperdível,
Olhar sexy,
Toque leve,
Felicidade breve,
Vida fugaz,
Um dia iremos nos encontrar, novamente.


Monique Nix

sexta-feira, 28 de junho de 2024

Tragicômico


o tempo passa
eu acho graça
vamos sorrir
nossa desgraça


Lucas Viriato

quinta-feira, 27 de junho de 2024

Chuva

Nítida goteira
a me esvaziar
a concentração
Água, raios, trovão...
boxe no peito da noite altiva.
A luz em meu cérebro
Ilumina a certeza:
atrás da máscara da chuva
a via-láctea está viva.


Edison Veoca

quarta-feira, 26 de junho de 2024

Tirando sangue da cantiga


não há quem não se zangue
ao olhar para esse mundo
vê-lo qual um bang bang
muda esse nome para imundo
parece suco de tang
mas o que do corpo escorre
é o vermelhão do sangue
que também tanto escorre
dentro da água e da mata
pois árvores e animais
também não podem ter a paz
pois o homem mata, desmata e se mata.
mundo imundo bang bang


Matheus José Mineiro

terça-feira, 25 de junho de 2024

Ponheta


poeta, amigo, que dizes
à noite na mesa em roda
qual livro que lês
qual vinho que bebes,
que belo detalhe
observais

no mínimo mini
pequeno menino que olha pra fora
do prédio com grades
que olha pro umbigo
e o canta tão belo

que ornas singelo
o detalhe irrisório
que ri tão gostoso
do verso de troça
que troca palavras com ares de graça

que entra de graça na roda da mesa
e fala tão calmo
de nada com nada.


Gabriel Silveira

segunda-feira, 24 de junho de 2024

ARQUIVOS EM CONFRONTO, Marília Rothier Cardoso


Nos meados do século XX, a teoria da literatura, empenhada em afastar-se dos fundamentos da tradição crítica, questionou o valor da intencionalidade autoral e passou a trabalhar com as noções de “texto” e “escritura”, cujo estatuto supunha a autonomia da linguagem, como lugar de produção do sentido. Foi um momento de estratégica violência afirmativa em que Roland Barthes, tendo anunciado a “morte do autor”, cuidou de definir o estatuto da textualidade. Ainda está bem presente a lembrança de suas palavras: “a escritura é a destruição de toda voz, de toda origem (...) é esse neutro, esse composto, esse oblíquo aonde foge o nosso sujeito, o branco e preto onde vem se perder toda identidade, a começar pela do corpo que escreve” (BARTHES, 1988, p. 65).

Hoje, com décadas de exercício de interpretação textual, os conceitos propostos por Barthes e seus contemporâneos perderam a radicalidade. Não é o caso de recuperar- se a autoridade do escritor, mas tem-se procurado rastrear as marcas de seu corpo, inscritas no texto, como índice da inserção histórica do mesmo. Quando se atenta para essa dimensão, fica patente que os traços datados do trabalho da escritura transportam, em seu deslizamento pela página, o conjunto de saberes e valores coletivos da cultura. Assim, longe de apresentar-se neutro, o texto testemunha o conflito acirrado de forças históricas, presentes na sua construção e desdobradas nos acasos de sua divulgação.

Se, ainda nos anos sessenta, a lição de Bakhtin veio somar-se às considerações 
barthesianas, desenvolveram-se, nas décadas seguintes, de um lado, a chamada crítica genética, e, de outro, os estudos culturais. A primeira alargou os domínios da textualidade literária para abarcar as notas de leitura, os rascunhos, os manuscritos rasurados, a coleta de dados, a correspondência, os diários, enfim, tudo que restou, nas gavetas privadas do escritor, depois que sua obra tornou-se pública. O interesse por
esses arquivos levou ao destaque do processo da escritura e relativizou a importância da versão definitiva, trazendo, como conseqüência, um tipo de enfraquecimento dos cânones, pela desatualização do conceito de obra prima. Já os estudos culturais trouxeram a literatura – como as demais artes – para o amplo e complexo domínio da cultura, inserindo a tarefa interpretativa na rede interdisciplinar, que enfoca o objeto em todas as etapas de seu desenvolvimento, desde a construção, na oficina íntima do autor, até o mercado com suas regras, onde a obra se disponibiliza para a leitura e entra no circuito da recepção. Ao longo desse trajeto intrincado, consideram-se as trocas intertextuais, o intercâmbio entre as subjetividades, bem como a interferência das mais variadas atividades sociais nos movimentos artísticos.

A linha de pesquisa literária, que combina o conhecimento dos arquivos com a perspectiva cultural, tem procurado desenvolver uma vertente muito específica de crítica biográfica. Trata-se da tentativa de rastrear um trabalho de construção identitária, onde o processo de subjetivação acha-se imbricado no jogo intertextual produtor da escritura, ambos – processo e jogo – permeáveis, em diferentes graus, às forças sociais suas contemporâneas. Pretende-se, como resultado, o encaminhamento da interpretação do texto, nas várias dimensões de sua historicidade: o estágio de desenvolvimento da língua e do gosto estético, a trajetória de vida do escritor dentro de seu círculo social e a ordem da cultura, que engloba as demais, interferindo nas mesmas, à medida que vai-se deixando transformar por influência delas. Nessa linha é que se pretende considerar aspectos de dois arquivos de escritores, dos mais ricos dentre os acervos brasileiros – o de Guimarães Rosa e o de Pedro Nava. Vale registrar que, conforme a terminologia usada por Almuth Grésillon, os manuscritos de ambos classificam-se como “escritura de programa” (GRÉSILLON, 1994, p. 102). Um exame, mesmo apressado, dos arquivos de Rosa e Nava mostra que esses escritores jamais se lançavam à aventura de deixar que a mão deslizasse livre sobre o papel. Ao contrário, o enorme volume de documentos de trabalho arquivados atesta que seus escritos resultaram de laboriosa pesquisa, seguida de mais de uma etapa de organização e articulação do material, cuja versão redigida ainda sofreu numerosas rasuras e reelaborações.

As obras desses dois escritores legitimaram-se por fortunas críticas bem distintas, foram produzidas e publicadas em datas e circunstâncias diversas; no entanto, seus autores evocam traços equivalentes da educação mineira tradicional, tendo-se formado literariamente, com certeza, enquanto freqüentavam a mesma faculdade de medicina, na Belo Horizonte dos anos vinte. O conjunto de traços identitários, que singulariza seja a assinatura, seja o tecido textual de Guimarães Rosa (1908 – 1967) e de Pedro Nava (1903 – 1984) remete ao contexto histórico da modernização da sociedade brasileira, conforme o modelo ocidental capitalista, baseado na urbanização e industrialização. Como ponto de partida para esta leitura interpretativa de obra e arquivo, parece interessante observar o grau de proximidade ou distância que as notas, rascunhos, recortes e publicações guardam em relação àquele modelo.

A questão – qual o campo de pesquisas dos dois escritores? – serve de ponto de partida para o exame dos acervos. No Arquivo Guimarães Rosa, sob a guarda do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, encontram-se cadernetas de viagem , cartas-questionários a parentes e amigos, cadernos de anotações de leitura, além de numerosos conjuntos (em cadernos ou folhas datilografadas) de “estudos para a obra”. Por seu turno, o Arquivo Pedro Nava, conservado no Arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Fundação-Casa de Rui Barbosa, revela o processo de composição do texto das Memórias, através de documentos reunidos conforme três etapas: as numerosíssimas fichas de levantamento de dados, os “bonecos”, onde se esquematizam os capítulos, e os “originais” datilografados, com muitas rasuras, alguns acréscimos e, ainda, desenhos e figuras, colados à direita do texto. Nos dois casos, as demais seções do arquivo – correspondência, documentos pessoais, recortes e iconografia – têm muitos pontos de intersecção com os manuscritos diretamente responsáveis pela composição da obra. Quando se analisam os registros de pesquisa (de gabinete ou de campo), já se localiza uma diferença paradigmática entre o trabalho de Rosa e o de Nava. Este, voltado para o memorialismo, anota suas próprias lembranças e as respostas de companheiros de geração às suas perguntas. Seu fichário compõe-se, em sua maior parte, de recortes de jornais e revistas e de depoimentos da experiência individual de profissionais liberais, bem situados na hierarquia social das principais cidades brasileiras. Aquele, dedicado à restauração da narrativa épica, anota suas leituras dos relatos tradicionais clássicos e dos livros de viagens pelo Brasil, além de preencher cadernetas de campo, referentes às suas excursões pelo sertão. Seus informantes não são intelectuais mas, predominantemente, vaqueiros ou, pelo menos, fazendeiros e comerciantes, ligados ao mundo rural. Tais informantes transmitem uma experiência antes coletiva que particular.

Como ponto de partida para um comentário comparativo entre aspectos dos dois arquivos, vale lembrar as preciosas considerações de Jacques Derrida em seu esforço de reconceituação contemporânea de “arquivo”. O arquivo é o suplemento artificial da memória, a estratégia mental ou a providência prática de registro dos fatos, passíveis de se apagarem. Conforme a teoria freudiana, que fundamenta as reflexões de Derrida, a economia psíquica equilibra-se entre o “princípio do prazer” ou da preservação – a força dos arkhai – e a “pulsão destruidora”, a força do esquecimento. Daí o estatuto necessariamente fragmentário e lacunar de todo arquivo, que já supõe, como origem, a inevitável “amnésia” (DERRIDA, 2001, p. 22,23). Dedicando-se à escrita de sua vida, Nava interrompe freqüentemente o relato para tecer considerações sobre os mecanismos da memória; paralelamente, o acervo de seus documentos – organizado e doado por ele mesmo à Casa de Rui Barbosa -- pode ser considerado paradigmático da condição paradoxal do arquivo. Qualquer estudioso de Nava percebe, de imediato, a característica, ao mesmo tempo, excessiva e lacunar do acervo. O processo de composição dos seis volumes publicados das Memórias acha-se cuidadosamente documentado nas três etapas, acima referidas: fichário de notas, “boneco” e texto revisto (anterior à datilografia definitiva, encaminhada à editora). As notas são numeradas, em vermelho, de modo que é possível acompanhar sua inserção na feitura dos bonecos, que,
por sua vez, prefiguram a ordem da matéria na versão redigida. No entanto, o arquivo só guarda o registro completo dessas etapas nas seções referentes aos quatro últimos volumes. Como registra o próprio autor, grande parte do tarefa inicial de levantamento de dados e rascunho foi destruída, quando do término do trabalho de redação. Em uma das etiquetas classificadoras do material lê-se:

Fichas como as usadas na parte escrita sobre Torres Homem. Apenas o modelo pois foram inutilizadas milhares de outras fichas à medida que se escrevia, tal qual foi feito com as de Baú de ossos e Balão cativo, até que veio o conselho de Drummond: guardar tudo, jogar nada fora.(AMLB-FCRB)
 
As seções preservadas do arquivo – o conselho do poeta parece ter sido seguido à risca – apresentam-se,  como que por compensação, entulhadas de documentos. Muitas notas se repetem, cada tópico traz diversos desdobramentos, os capítulos, esquematizados compondo os bonecos, têm duas ou três versões, com pequenas diferenças e acréscimos. Mais sugestiva, contudo, é a evidência de que a escritura de Nava funcionou, predominantemente, como work in progress, impulsionada pelo desejo de englobar todas as lembranças -- as próprias e as alheias, as confirmadas e as discutíveis --, de modo que a busca não terminasse nunca e um volume pudesse, sempre, engendrar o seguinte. Quando se consultam as caixas enormes, onde estão guardados os “originais” dos volumes, e se observam, como fez Flora Süssekind, as caricaturas, mapas e recortes da “página ao lado” do texto (SÜSSEKIND, 1993, p. 253- 259), percebe-se que a etapa de pesquisa, que deveria restringir-se ao fichário, invade todas as demais, na tentativa persistente de resgatar o vivido da voragem do esquecimento. Se cada página de Nava paga tributo a Proust, é porque o brasileiro queria também explorar a possibilidade de desdobramento infinito do “acontecimento lembrado”, transformado, assim, numa "chave para tudo que veio antes e depois” (BENJAMIN, 1985, p. 37). Empenhando-se em conservar a herança da família, os presentes dos amigos, as impressões retidas na própria memória e até mesmo as aparições fantasmagóricas das noites insones, Pedro Nava tipifica, à maneira hiperbólica que lhe é peculiar, o “mal de arquivo”. O que o move é a paixão de registrar tudo, recuar às origens mais remotas -- tarefa fadada ao fracasso e, por isso mesmo, irresistivelmente sedutora. Se os leitores das Memórias deixam-se contaminar por essa febre, os estudiosos de seu arquivo são muito mais afetados por tal doença tão incômoda quanto produtiva.

Adquirido pelo IEB, em 1973, seis anos após a morte do escritor, o arquivo de 
Guimarães Rosa, embora contendo os originais das obras de juventude (inclusive os preciosos originais de Sezão que, revisto e amputado de alguns de seus contos, publicou-se com o título de Sagarana), concentra-se, tendo em  vista a documentação do processo escritural, no período de maturidade, quando o médico e diplomata se profissionaliza na carreira literária. Pelos meados dos anos quarenta, quando já havia contemplado os principais monumentos da Europa culta – e registrado, com croquis e descrições pormenorizadas, seus trajetos de turista e de visitante contumaz dos museus e galerias --, Guimarães Rosa começa a trabalhar, sistematicamente, encaminhando, em definitivo, sua obra na direção do resgate da tradição épica. Ana Luiza Martins Costa (COSTA, 2002), boa conhecedora do arquivo, enfoca paralelamente os dois rumos da pesquisa do escritor: o de leitura cuidadosa da epopéia antiga, registrada nos poemas eruditos (Ilíada, Odisséia, Divina comédia), e o de levantamento da narratologia sertaneja, tanto estudando os relatos de viajantes, quanto procedendo à busca etnográfica do saber oral dos vaqueiros de Minas, do Pantanal e da Bahia. Essas duas vertentes da preparação para os grandes livros de 1956, Corpo de baile e Grande sertão: veredas, responsáveis, também, pelos volumes de contos posteriores, acham-se representadas, no arquivo, sob a forma primeira de cadernetas de campo e de cadernos com notas de leitura. Correspondendo a uma segunda elaboração do material, encontram-se numerosos “estudos para a obra”, que consistem num exercício de passar a limpo as anotações, buscando, certamente, incorporá-las à memória pessoal e imprimindo nelas o selo estético da assinatura do autor. Esses estudos revelam um paciente manuseio reflexivo, pois estão marcados com lápis de cor, com classificação de assunto ou indicação do texto que devem compor. Alguns das cadernetas mereceram mais de uma reelaboração, como é o caso daquelas onde se registrou a viagem de 1952, quando Rosa seguiu, durante dez dias, a comitiva do vaqueiro Manuelzão, conduzindo um gado da fazenda da Sirga até a de São Francisco. Conforme a classificação do IEB, há quatro pastas (E-26, E-27, E-28, E-29), de retranscrições e comentários, sob o título “Boiada”. Trata-se de um dos elos mais importantes da gênese do Grande sertãotambém das sete novelas de Corpo de baile.

A descrição, acima, de parte dos documentos do acervo rosiano, mostra-os tão excessivos quanto os de Nava. Os dois escritores precisaram de uma montanha de papel e de inumeráveis horas do exercício físico de escrever como estratégia para a produção de seus textos. Nesse sentido, o arquivo desromantiza a criação, evidenciando uma atividade monótona e cansativa de repetição de frases (e também de desenhos, mapas e perfis, especialmente no caso de Nava), onde as interferências inventivas vão-se revelando, de detalhe em detalhe, e onde as dívidas com a memória cultural acham-se devidamente contabilizadas, nas longas listas de citações, pastiches de textos, apropriações de falas e cruzamentos de referências. O aspecto corriqueiro dos documentos composicionais, no entanto, preserva certo segredo da construção literária. Se, nos papéis de Nava, apesar de incompletos, tem-se a ilusão de acompanhar, passo a passo, os mecanismos da memória (espontânea e artificial) concretizando-se no relato escrito, não é possível rastrear a passagem entre os numerosos rascunhos de Rosa e a configuração da narrativa dada por pronta. O arquivo de Guimarães Rosa não contém nada que se aproxime dos “bonecos”. A trajetória do texto perde-se no mistério das lacunas imponderáveis, entre a profusão dos estudos e o rigor dos “originais”, revistos na versão publicada.

Em seu estudo mais recente, Pedro Nava: o risco da memória, Eneida Maria de Souza considera a produção naviana como memória de “um Brasil moderno”. Os antecedentes familiares -- reconstituídos a partir de documentos, como a contabilidade do alemão Halfeld, fundador de Juiz de Fora, onde se superpõem a história pública e a privada --, os anos de formação do autor-narrador e, nos dois últimos volumes (já narrados em terceira pessoa), o início da carreira profissional e o convívio com os companheiros de geração, recém-ingressos na política, toda a trajetória apresentada funciona como espelho onde a classe dirigente brasileira pode encarar-se, no momento decisivo em que seus intelectuais traçam os rumos para o processo de modernização. Se resenharmos o teor do conteúdo do arquivo, que respaldou a construção desse edifício literário, teremos indícios seguros das referências identitárias da geração burguesa, formada nos anos vinte, sob a égide das vanguardas. Tais referências é que explicam as escolhas do escritor em relação ao tipo de escrita escolhido e o ponto de vista adotado.

O dossiê arquivístico de Beira-mar, volume que registra o contato dos inquietos estudantes mineiros com os mentores do movimento modernista, é o espaço mais adequado para a caracterização do tipo de material selecionado e reunido pelo colecionador-autor. No fichário e no boneco desse quarto volume das Memórias, além das anotações e esquemas, dos recortes, desenhos e mapas, encontra-se outro tipo de documento, resgatado ou produzido por iniciativa do memorialista: questionários enviados por Nava a seus companheiros de geração (Drummond, Emílio Moura, Alberto Campos, entre outros) e respondidos pelos mesmos, depoimentos espontâneos de colegas (como o de Pedro Salles, contemporâneo na Faculdade de Medicina) e correspondência familiar da época de que trata o texto. Esses papéis vêm somar outras vozes à do memorialista, dando maior abrangência à visão autobiográfica da narrativa. Mas é preciso observar que as vozes conjuradas pelo escritor são sempre de iguais, isto é, de indivíduos de seu meio social, com valores e interesses equivalentes aos seus próprios, o que pluraliza as posições marcadas pelo relato, mas nunca o desloca do espaço restrito do mesmo. É claro que o memorialista não é ingênuo e, ao longo da pesquisa, busca complexificar sua perspectiva histórica, inserindo fragmentos do saber de outras classes, como os ditos populares colhidos alhures e croquis de personagens marginais, distribuídos entre suas notas. Entretanto, tal abertura do espectro social tem a função restrita de fornecer moldura ao retrato da “boa sociedade”, que se vai desenhando.

Se os depoentes e entrevistados são portadores de sobrenomes tradicionais, o cenário, onde os mesmos movimentam-se enquanto personagens e tornam-se objeto de pequenas biografias, é composto pelos quarteirões principais da cidade, com seus bares, livrarias, cinemas e até cabarés – mas freqüentados pelos filhos-família. No acervo correspondente à construção de Beira-mar, a maioria do material verbal e iconográfico concentra-se no “Bar do Ponto”, centro nervoso da capital mineira. As primeiras páginas do boneco, por exemplo, resultam da observação de postais dessa área de Belo Horizonte, postais reunidos ao longo das décadas para testemunhar as mudanças e respaldar, com a beleza das imagens dos anos vinte, a nostalgia do narrador. Pode-se perceber, assim, através da coleção de lembranças instrumentalizada pelo escritor, que a memória do Brasil moderno, que, aí, se delineia, privilegia o espaço urbano burguês e seus valores letrados e (relativamente) progressistas. Ainda que representada caricaturalmente, para denunciar a agressividade de suas relações, a tradicional família mineira toma conta da cena narrativa.

Contemporâneo de Pedro Nava no curso médico, como já assinalado acima, Guimarães Rosa teria sido um dos possíveis destinatários das consultas expedidas pelo memorialista, caso não tivesse morrido cedo, em 1967, antes, portanto, que Nava iniciasse a pesquisa para seu trabalho. No entanto, Rosa não é sequer mencionado em Beira-mar, nem tampouco consta das listas de conhecidos e amigos, quase onipresentes, nos prototextos do volume sobre a geração modernista mineira. Trata-se de um indício de que o futuro autor de Sagarana não fez vida literária em Belo Horizonte, não tendo estabelecido nenhum contato com Mário de Andrade ou qualquer dos integrantes da “caravana paulista”, que, em 1924, instigaram os “rapazes da Rua da Bahia” a integrar as hostes da vanguarda. Prova disso é que não há nenhum texto de Guimarães Rosa em A Revista – bela iniciativa de Drummond e Martins de Almeida, que canalizou a produção dos novos. E, se o próprio Drummond, Emílio Moura, João Alphonsus e Nava integraram todas as demais iniciativas revolucionárias da cultura (e, secundariamente, da política) mineira, Rosa está ausente das mesmas, tanto quanto do amplo dossiê do memorialista de sua geração.

Quando se enfoca o arquivo de Guimarães Rosa, encontra-se a contrapartida de sua ausência nas rodas do Café Estrela. Sua estréia como contista, nos anos 1929 e 1930, deu-se por via muitíssimo diversa daquela, sofisticadamente experimental, escolhida por Drummond e seu grupo. Certamente ainda um leitor convencional da literatura européia de suspense, Rosa enviava suas narrativas góticas para o concurso literário da revista popular, O Cruzeiro. Lá é que ficaram registrados seus primeiros exercícios ficcionais: “O mistério de Highmore Hall”, “Chronos kai anagke” e “Caçadores de camurças”. Se observarmos, também, os contos descartados de Sezão (estes já dos meados da década de trinta), veremos que, aí – e praticamente só aí – rastreiam-se referências autobiográficas aos tempos de estudante. Mas estas denotam apenas interesse médico e curiosidade científica.

A via de acesso à literatura, no caso de Rosa, -- tal como se apresenta enquanto lacuna no arquivo de Nava e como registro em seu próprio acervo – fez-se por razões e acasos, que o afastaram da trajetória majoritária dos de sua geração. A temática do volume Sezão e, mais tarde, da versão publicada, Sagarana, ao lado dos depoimentos recentes de amigos da época, indica a tradição oral coletiva como a poderosa memória de infância, que se foi combinando, na juventude e na maturidade, primeiro com o atrativo dos gêneros de massa, depois com a sedução das estórias sertanejas. Ao contrário de seus contemporâneos, Guimarães Rosa não se deixou impressionar pelo ritmo moderno da recém-construída capital de Minas. As referências estéticas estáveis, oferecidas pelas linhagens épicas clássica e local, marcaram sua produção literária -- do primeiro livro publicado em 1946 a Tutaméia – por uma rigorosa distância crítica diante das vanguardas poéticas e do progressismo sócio-econômico. Tendo incorporado, gradativamente, as conquistas da linguagem experimental, encaminhou suas pesquisas para o resgate de valores capazes de preservar os velhos saberes interioranos e, assim, interferir saudavelmente na configuração da cultura brasileira, nos meados do século XX.

O paralelo entre os arquivos de Nava e de Rosa mostra os dois procedimentos diferentes presidindo a escolha do assunto e da orientação estético-política da obra. Na construção memorialística, onde predomina a perspectiva individual, vimos que o levantamento dos dados segue o modelo (auto)biográfico e que os entrevistados pertencem ao mesmo espaço do autor-entrevistador, pois devem corroborar uma visão burguesa e moderna da história cultural enfocada. De outro lado, para aquele que se deseja o guardião do relato épico, é a tradição coletiva que conta, seja resgatada dos antigos, seja colhida da sabedoria oral do povo. Por isso mesmo, as entrevistas, a correspondência familiar, o registro da própria vivência do memorialista são substituídos pelas cadernetas de campo, onde o autor faz-se etnógrafo para recolher as falas de vaqueiros, pequenos lavradores, rezadeiras, velhos e bobos, agregados das fazendas. O acervo de Guimarães Rosa — cujo documento emblemático pode ser considerado o caderno de quadrinhas de Zito, o cozinheiro da boiada — compõe-se, prioritariamente, de inscrições do saber do outro, isto é, de quem habita as margens da cultura hegemônica. É interessante observar que a própria correspondência de parentes e amigos, de que o escritor se apropria no processamento de sua literatura, define a constituição peculiar do arquivo de Rosa. As cartas, anotadas por ele e incluídas em seus “estudos para a obra”, são dirigidas à recolha da cultura popular. Destaca-se, nesse item, a já famosa carta em que seu amigo Pedro Barbosa, de Paraopeba, responde ao questionário, proposto pelo escritor, com o objetivo de conhecer melhor um bobo, acolhido como tratador de porcos na fazenda. Como se sabe, as respostas do fazendeiro Barbosa transformaram-se no conto “Mechéu”, incluído em Tutaméia. O principal interlocutor epistolar de Guimarães Rosa foi, entretanto, seu pai, Florduardo Pinto Rosa, constantemente solicitado pelo filho, não a dar notícias ou narrar episódios da vida doméstica, mas a deixar registrados os casos do sertão, protagonizados em caçadas ou ouvidos de vaqueiros, num balcão de armazém próximo à estação de embarque das boiadas.

Os prototextos da obra de Guimarães Rosa, incluindo a etapa de pesquisa e as etapas de elaboração do material, caracterizam-se pela presença da sigla m%, precedendo palavras, frases ou expressões. Conforme os estudiosos do arquivo, trata-se do índice de interferência do autor no objeto de sua apropriação. m% - flor-de-todos / flor-de-todo-o mundo [V. Saint Hilaire: “flor de toda gente, dont les corolles blanches embaumaient l’air de leur doux parfum (...) . No descer dos carrascos. Arbustos de 6 a 10 pés, muito juntos, seus ramos se confundindo). Chama-se a isso: carrasquinho. m% - terras da paróquia “traíras, lambaris, piamparas, curimatãs, timburés” m% - Piampara (lugar) m% - onde o belo rio corre entre a caatinga morta (AMLB-FCRB) Á medida que, através do trabalho de cópia, o escritor erudito incorporava, a seu acervo, a tradição popular, a repetição da fala do outro ia ganhando, gradativamente, a marca própria (e experimental) do herdeiro – marca que, no entanto, não limita o texto aos contornos do indivíduo, mas literatiza o discurso através da combinação tensa de diferentes linhagens populares. Ao lado das cadernetas do sertão estão as da Europa; os “cadernos de estudo” registram informes geográficos, históricos, botânicos e zoológicos; às listas de metáforas homéricas somam-se as listas de toponímicos tupis. As coleções de dados componentes do acervo de Rosa fazem deste uma “biblioteca de Babel”. Com a especificidade, hoje, destacável, de tratar-se de uma típica Babel pós-colonial, onde confrontam-se, em equilíbrio tenso, o cânone do ocidente e os saberes “subalternos”.

A dimensão cultural, que abre perspectivas produtivas para os estudos literários, ao fazer ressurgir o corpo do autor, através do exame crítico das impressões deixadas em seus manuscritos, percebe que a escritura – em diferença com o que pensava Barthes – não traz o apagamento da identidade. Ao contrário, quando interpretado em contraponto com seus rascunhos, todo texto permite que se recupere seu processo complexo de construção identitária. Não se trata, é evidente, do estabelecimento de uma identidade plena e fechada, que limite o sentido das palavras à circunstância de vida de seu autor. Trata se, sim, de desentranhar do trabalho escritural – desenhado entre as lacunas e riquezas do arquivo – um perfil composto de valores culturais, que responde pelos sentidos a serem produzidos e pela força de interferência a ser exercida sobre a sociedade, ao longo da carreira de divulgação do texto.