terça-feira, 30 de setembro de 2014

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Pássaros


Que me dizem, pássaros?
Esse leve balançar que nos cedemos
é desencontro ou só
um longo outono sem mar?

Esqueci de voar esses dias,
minhas asas encontram-se
tão tímidas! Esquálidas,
sem o que amar.

Nosso vôo, queridos pássaros,
é ternura suspensa, algo como
três séculos de tristeza, quiçá?

Dos edifícios que entorpecem
as mentes, os corpos, derretem.
Somos pedras tentando voar?

João Daniel de Carvalho

sábado, 27 de setembro de 2014

"Por..."


Por um papa negro,
Por um prof funkeiro,
Por um Buda magro,
Por um Jesus viado,

Pelo tráfico de tabaco;
Pela overdose de álcool;

Pelo filho do aborto;
Da mãe que se envolveu com outro;

Pelos crimes impunes;
Pelos Sambas e batuques;

Pelo povo analfabeto;
Pelo cidadão sem teto;

Por futebol sem bola;
E o pirralho a cheirar cola;

Qual é sua raça?
Sua raça é humana, por incrível que pareça a mesma do povo sem grana.

Está tudo errado!
Está tudo falho!
Tenho medo do Acaso...
Do Descaso...

Naiara Raposo

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Fractal de Mandelbrot

(Prêmio Paulo Britto - 3o lugar - Prosa)

Certo dia — um dia comum, sem nenhuma característica especial —, andando sem rumo por ruas e portas, entrou sem motivo em uma livraria qualquer. Andava lentamente, observando sem interesse a vastidão de livros expostos. Um muito particular, entretanto, chamou-lhe a atenção. Chamava-se Fractal de Mandelbrot. Um nome incomum para um livro, especialmente naquela livraria qualquer. Não conseguindo resistir à curiosidade, pegou-o e, após o encarar demoradamente, buscou a primeira página e começou a ler.

“Certo dia — um dia comum, sem nenhuma característica especial”, começava. Por muito tempo leu, talvez para sempre, ou quem sabe durante apenas um instante. “Imaginava as possibilidades, mas tentava, sobretudo, entender.” A narrativa, enfim, terminava.

Ao fechar o livro pensativo, continuou muito tempo parado, distante, antes de devolvê-lo ao seu lugar em uma estante qualquer. Mas não conseguira abandonar as dúvidas com a obra. Imaginava as possibilidades, mas tentava, sobretudo, entender.

Leonardo Ferrari

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

heróico

(Prêmio Paulo Britto - 3o lugar - Poesia)


não um homem de Homero – plano –
mas um Aedo a cantar meus feitos
não ter Musas, ter desenganos
ter direito ao que está no peito
não importa ser de guerreiro
importa que seja de humano

ser um homem mais mundano
amar eu mesmo do meu jeito
buscar em mim o próprio plano
plano que é meu – só meu – direito
recusando de Zeus o trejeito
recusando todo o inumano

viver – construindo meus defeitos
morrer – destruindo meus enganos

Alexandre Bruno Tinelli

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Dormir pra quê?


Se o viver, o sentir, o estar, o criar
falam tão mais alto...

Gritam!
Exaltam!

E por fim, no cansaço
renunciam às próprias vontades.
Se depois de cumpridas suas funções,
já tranqüilos,
acabam por adormecer
mesmo inconscientemente
se entregando ao sono, a Somnia;

Porém, cuidado: Inconstâncias hão de aparecer no caminho dos sonhos

João Duarte

um teste

(Prêmio Paulo Britto  - 2o lugar - Poesia)

ontem à noite comecei a ler o livro novo da marília garcia
um teste de resistores
comecei a ler pelo último poema
a poesia é uma forma de resistores?
comecei a ler pelo último poema porque já tinha ouvido uma versão dele
lida pela marília na casa de leitura dirce côrtes
no humaitá
e tinha vontade de ouvir de novo
acontece que quando li o último poema
a poesia é uma forma de resistores?
não era a minha voz na minha cabeça
que lia o poema
era a voz da marília nos encontros
da casa de leitura dirce côrtes
e hoje no ônibus quando comecei o primeiro
poema e o que vem logo depois dele
ainda era a voz da marília na minha cabeça
fiquei fascinado pela ideia de ler com uma voz e um ritmo
tão diferentes do meu
fiquei fascinado e imaginei que todo o livro seria isso

desci do ônibus pensando com aquele ritmo aquela voz e escrevendo com eles
também
passei o dia assim

ao contrário do que eu esperava
conforme avançava
no anfiteatro da puc
em outros dois ônibus
a voz na minha cabeça foi se tornando um híbrido
entre a da marília e a minha
ora era como eu e quase só eu
lendo
ora era a marília
mas na maior parte
um dueto

escrevo com algum medo de que soe uma tentativa
de imitar texto tão vivo
ainda assim escrevo
num híbrido algo tosco
de vozes
porque acho bonito
muito bonito
quando uma coisa dessas
um ataque direto do poema no corpo
feito bactéria
acontece

Thiago Gallego

sábado, 20 de setembro de 2014

aos teus pés


Existe coisa mais de menina, que tirar foto dos pés? Aqueles dedinhos fininhos, enfileirados, salientes; as pernas e a coxa de moça em formação vão se afinando lá embaixo, sugerindo o infinito. A fibra rija de fruta da estação se perdendo na penumbra da distância da mudança de foco. As lentes digitais não captam, mas eu bem sei aqueles micro-pelinhos loiros, cobrindo toda a pele como um jardim sutil. Nem a Canon nem a Nikon registram seu cheiro seco de flor ressecada entre páginas de um caderno. Ou aquele dos saches perfumados do seu armário. Nada disso sai. Então, por que será que me lembro tanto de você vendo esses mini-dedinhos lá no fundo do fim da foto? Eu intuo de você tudo, a partir dessas duas pernas, desses dez dedos. Tudo que não está lá. Eu não tenho dimensão do seu tamanho. Não sei a distância que a fibra percorre do quadril à sola. Não sei quanto você calça. Seus pés não são reais, são dois, barrocos e consoladores, insinuando paz onde há só guerra. São um alento religioso. É isso: eu tenho fé; eu tenho fé nos teus dedos de moça. Nas unhas pintadas do pé, que eu sempre achei uma futilidade. Sou pura fé e entrega e estou sempre estive a teus pés.

César Sampaio

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

O vendedor

(Prêmio Paulo Britto  - 2o lugar - Prosa)


Começou por vendê-las na praia, anunciando-as bem alto, com seu pregão seco e rouco: CACETADAS! Vendo cacetadas. E causava estranhamento na reserva do recreio. Como era de se esperar, não vendeu nada no primeiro dia, nem no segundo, tampouco no terceiro... mas no quarto dia, ao cair da tarde, hora em que as pessoas de bem começam a retornar às suas casas, energizadas de sol, ouviu o chamado, em um carregado sotaque lusitano: dai-me uma gajo, mas desejo recebê-la entre as nádegas, de modo que o som chegue estalado aos meus ouvidos, pois é assim que a aprecio. E abaixou a sunga, deixando à mostra as bandas embranquecidas. O caceteiro aproximou-se do cliente e com ares de digno profissional cravou-lhe uma bofetada. Serviço prestado, o homem estendeu a mão e disse “são 10 reais”. O galego olhou-o surpreso, procurando intenções libidinosas, e quando não as encontrou enfureceu-se! Ora seu paspalho, então és louco, é isso que és? Estás a vender cacetadas como se fossem queijo coalho e por isso queres recompensa? Ora vai-te a ver se estou lá na esquina! O caceteiro suspirou profundo, como se pensasse “mais um caloteiro”, e replicou monocórdio: eu vendo um produto de qualidade, sou um profissional dedicado e lhe ofereci a melhor cacetada do mercado. Ou recebo meus 10 reais ou chamo a polícia. O galego perscrutou o vendedor dos pés à cabeça. Em fração de segundos, sondou-lhe o vigor físico, caso escolhesse a violência como saída, e analisou-lhe o semblante, procurando traços de loucura que justificassem o comportamento inusitado. O caceteiro era forte, mas não aparentava loucura alguma, e o português, ainda irritado por ver frustrados seus impulsos carnais, resolveu levar o impasse às mãos da justiça: “chamemos a polícia”. Pararam a viatura, desceu o policial. Bom dia “cidadões”, em que posso servi-los? O caceteiro abriu a boca, mas o galego tomou-lhe a frente. Este gajo ensandecido esta a vender cacetadas em plena praia. Sim, e esse senhor as comprou, mas não quer pagar. Ora pois, mas que não pago mesmo, onde já se viu pagar para levar cacetes. Se não gosta do produto não comprasse. Tu és um louco, demente e... “peraê, peraê”, vamos com calma, interrompeu o policial, não “tô” entendendo nada, porra. Fala um de cada vez.

 O caceteiro ergueu a mão e com tal autoridade que o bravo lusitano se calou. Então, expôs assim seus argumentos: senhor policial, sou um humilde vendedor autônomo, cegamente respeitador da lei e da ordem, que acordou às 4h da manha para chegar aqui, tomou um ônibus, um trem e uma van e está desde cedo na labuta. Este senhor comprou o meu produto e, após tê-lo consumido, recusou-se a pagar. E o policial perguntou: e que produto você vende, rapaz? Vendo boas cacetadas. Como, rapaz? Cacetadas, cacetadas de vários tipos: estaladas, em concha, cascudinhos; fortes, médias e fracas; uma, duas, ou a sessão. Cacetadas... , murmurou o policial, sei..., e por acaso o cidadão tem licença para vender tais cacetadas? Como tenente? Vou repetir, cidadão, POR ACASO O SENHOR É CADASTRADO PELA PREFEITURA, LICENCIADO PELO ESTADO, QUERO DIZER: O SENHOR TEM ALGUM DOCUMENTO DANDO PERMISSÃO PARA VENDER CACETADAS NESTA PRAIA? Nã, não senhor, na verdade eu não sabia que tinha que ter licença pra... Então o cidadão se diz um profissional autônomo, arrota profissionalismo, mas vende seu produto na ilegalidade? O português fazia uma força tremenda para manter o silêncio, enquanto se deleitava com a situação difícil em que se encontrava o caceteiro, até que, não conseguindo mais se conter, destilou o lusitano veneno: prenda logo este gajo safado, seu policial, não vês que não passa de um matungo, um sacripanta, um velhaco da pior espécie, a vender produtos que ninguém em sã consciência venderia e a extorquir vultosas somas de dinheiro de pessoas de bem!?

E foi assim que, sem que o galego se desse conta, suas palavras salvaram o caceteiro, funcionando como um taser paralisante descarregado sobre o homem da lei: “vultosas somas de dinheiro, extorquir pessoas de bem, produto que ninguém vende”, e as palavras ressoavam como um mantra girando em torno à cabeça do tenente, que olhando os próprios olhos, de dentro para fora, percebia aquela faísca de luz que conhecia muito bem... e indagou ao caceteiro: quanto custa exatamente a cacetada? Bem, senhor, depende da modalidade. Mas, grosso modo, cobro 10 reais se for uma cacetada única, 20 se for dupla, e 30 a sessão completa. Hummm, resmungou o policial, e quanto você imagina que poderia cobrar por uma cacetada com um porrete legítimo de um homem da lei? Bem, capitão..., tenente, retrucou o oficial, mas com essa eficiência chegará em um instante a capitão, sorriu o caceteiro (e o tenente, pela primeira vez, sorriu de volta), bem, como eu dizia, creio que uma cacetada bem dada com um material de qualidade como o do senhor, artigo raro no mercado das cacetadas, poderia chegar a uns... 50 reais por nádega!

 O policial refletiu, refletiu e com ar austero sentenciou: olha, caceteiro, num primeiro momento pensei que o senhor fosse um desses que acha que pode exercer seu trabalho da forma como quiser, fora dos regulamentos da ordem e da lei, e minha intenção era conduzi-lo à delegacia para averiguação. Só que, durante nossa conversa, percebi que o cidadão é um profissional competente, que conhece profundamente seu metiê e, por isso, merece uma segunda chance. Afinal de contas, que policial seria eu, se não garantisse ao homem de bem a chance de ganhar o pão da família com o suor de seu rosto, não é mesmo? Portanto, tenho uma proposta justa a fazer à sua pessoa: darei permissão ao senhor para vender suas cacetadas aqui na minha praia, além disso, garantirei sua proteção, a exclusividade de vendas em toda a reserva e, ainda por cima, emprestarei meu cassetete para que o senhor trabalhe durante a madrugada, contanto que esteja pontualmente aqui às 5h da manhã, já que a revista da tropa é às 6h e eu preciso me apresentar ao batalhão com meu cassetete nas calças. Por fim, em troca de todos esses favores que prestarei ao senhor, o caceteiro dividirá comigo os ganhos da sua atividade, 50% a 50%, pagamento semanal, que aceitarei apenas para não fazer desfeita à sua demonstração de gratidão. Espero, sinceramente, que o senhor compreenda a generosidade de minha proposta, arrematou o valente soldado, dando leves pancadas com o bastonete na palma da própria mão. O senhor compreende, não compreende, cidadão?


Claro coronel, claro que sim, podemos começar agora mesmo essa promissora parceria, o senhor só terá de me ensinar como usar o cassetete, pois não tenho experiência com tal ferramenta de trabalho e, atento que sou à qualidade de meu serviço, necessito saber utilizá-la com a maior proficiência técnica possível. Nisso, o português, que contrariado com o rumo da conversa preparava-se para partir, levantou-se subitamente da pedra em que se sentara e, quase aos berros, intrometeu-se no diálogo dos dois homens: se os senhores acharem de bom alvitre, posso servir-lhes de cobaia para os testes, desta feita colaboro, a um só tempo, com a lei e a educação deste país, que tão bem soube me dar e receber! E enquanto discursava já se foi aproximando da viatura, abaixando a sunga e deixando à mostra a bunda alvíssima, algo carnuda, que mais parecia um pequeno urso polar de pelúcia. O policial, então, de imediato, sem sequer agradecer-lhe o oferecimento, tira o cassetete das calças, ergue-o perpendicularmente às nadegas do português e desfere uma pancada no felizardo que, a esta hora, já estava devidamente de quatro, com as mãos apoiadas no veículo, os braços esticados para a frente, a sunga arriada nos joelhos e o bumbum empinado para a lua (a qual, por sinal, brilhava cheia e sorridente como a bunda do galego). O tenente, ofegante, com uma centelha faisquenta entre as pupilas, recupera a muito custo o autocontrole e transmite o bastão ao caceteiro, agora casseteiro, que, apropriando-se da ferramenta e com o semblante impassível de um cirurgião suíço, imita com precisão, dessa vez na nádega direita do patrício, o golpe certeiro que havia apreendido com o novo sócio. Ambos, então, satisfeitíssimos com a promissora sociedade e, poder-se-ia mesmo dizer, empolgadíssimos com a perspectiva de ganhos futuros, apertam-se as mãos com a firmeza dos empreendedores, enquanto que o português, ainda em estado de transe, com rosto e tronco estatelados sobre a viatura, repete, como que numa prece, a enfadonha ladainha: oh minha senhora dos cacetes, abençoe esta terrinha benfazeja, ô terrinha; oh minha senhora dos cacetes, abençoe esta terrinha benfazeja, ô terrinha... oh minha senhora dos cacetes, abençoe esta terrinha benfazeja, ô terrinha...

Gustavo Sant'Anna

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Os matadores

(Prêmio Paulo Britto  - 1o lugar - Prosa)


Esse tipo de briga era comum na Escola Munro. Um garoto deu em cima da namorada de outro garoto, que veio tomar satisfações com o primeiro. Naquele tempo os conflitos ainda eram resolvidos no braço. Na hora da saída juntava uma penca de estudantes na pracinha para assistir ao combate. Às vezes vinha até gente de fora. Chegava mesmo a rolar uma banca de apostas.
                A coisa estava feia para o lado de Rico D’Ambrosio. Cinco atletas da equipe de futebol se apresentaram para prestar solidariedade ao capitão do time. Mas Rico, o tal primeiro garoto, era abusado. Nos poucos intervalos do massacre ele buscava ânimo, não se sabe de onde, para lançar, assim, meio de perfil, um sorriso amassado para Alice, valioso objeto em disputa. A menina correspondia discreta enquanto os mini gangsteres voltavam à carga, cada vez com mais disposição.
                Giovanni “Grandalhão” Santini não tolerava covardia. Ao presenciar o magrelo encarando o grupo inimigo sem titubear, resolveu comprar o barulho e equilibrar a balança. Juntos conseguiram derrotar os oponentes, botando os meninos para correr. Desde então, se tornaram um só (e seria assim por muitos anos ainda). Rico, a cabeça, Grandalhão, o muque, e Alice, o coração.
                Moravam todos no mesmo bairro, ao norte do município. Os rapazes iam se virando do jeito que dava. Pequenos delitos aqui e ali os apresentaram a uma variedade de reformatórios. Aos poucos a dupla foi conquistando respeito, se enterrando alegremente no submundo local.

Ela costumava ficar de frente para o espelho saboreando as provas do vestido reformado, que fora da mãe e antes disso da avó, enquanto repetia incansável em voz alta: Alice D’Ambrosio, Alice D’Ambrosio. Era tempo de substituir o Lofredo original pelo outro, que julgava sonoro, ao menos mais elegante que o surrado nome de família. Grandalhão foi o padrinho.
Engravidou na primavera. A espera pelo herdeiro encheu de alegria e entusiasmo a casa recém comprada, fruto dos lucros que começavam a nascer das atividades do companheiro na organização. Foi nesse período, talvez um pouco antes, que o marido passou a ser chamado de Rico Três Olhos. O apelido fazia referência à assinatura profissional: Mandava suas vítimas para o inferno com um único tiro, certeiro, bem no meio da testa.
Grandes sacos pretos, recheados de folhas secas, ficavam esquecidos no fundo do quintal. Foi ali que Rico jogou o trenzinho de madeira, presente de boas-vindas para o rebento, ao sair batendo o portão. Não se deu ao trabalho de nem mesmo desembrulhar. Recolheu de volta ao regressar para casa de madrugada e trancou no armário do sótão. O novo enxoval, comprado às pressas pela avó, também não combinava com a decoração, trabalhada em diferentes tons de azul, que o pai preferiu manter. Alice acostumou-se a testemunhar solitária as gracinhas que a bebê a cada dia lhe ofertava sorrindo, enquanto Três Olhos se envolvia mais e mais com o trabalho e as distrações da rua.
Havia um assunto delicado que precisava ser resolvido na região próxima à zona portuária. Uma família, responsável por outra área da cidade, vinha fazendo seus negócios por ali. Eles bancavam os surdos, apesar dos conselhos encaminhados, e, certamente, buscavam aumentar sua fatia do bolo. Prenúncio de guerra. Como se dizia naquela época, os soldados estavam armando os colchonetes. O velho par Três Olhos-Grandalhão foi, mais uma vez, convocado para a linha de frente.
A missão era apagar um bem colocado membro da facção adversária. Depois de horas de tocaia o alvo surgiu no beco, como previsto. Acontece que algo deu errado e Três Olhos acabou preso. Tudo indicava se tratar de uma emboscada. Alguém abriu o bico e isso não era coisa que se perdoasse. Grandalhão observava impotente toda a cena, de uma distância segura.
O acordo com o promotor previa o seguinte: Rico entregaria todo o esquema da corporação em troca de liberdade. Seus comparsas foram caindo um a um. Só o Grandalhão fora poupado.

O letreiro piscava torto o nome do estabelecimento: NEST’S. O E e o R iniciais haviam caído há tanto tempo que os moradores da vizinhança já tinham se acostumado a chamá-lo assim. A garçonete limpava o extenso balcão do bar como se não tivesse mais nada para fazer. Era tarde quando os dois forasteiros entraram fazendo a porta ranger, jeito peculiar de anunciar uma chegada.
Bom dia, rapazes! – disse a funcionária ultra animada.
Bom dia? Tá escuro ainda. – um dos homens, o jovem, respondeu mal humorado.
Passou da meia noite já deixou de ser ontem, não te ensinaram isso na escola, não?
Bom dia. Tem como você ver dois cafés para nós? Meus ossos congelaram com esse vento lá fora. – esse tinha um jeitão de chefe.
Café... ô, Grandalhão, vamos executar logo o serviço. Se a gente se apressa ainda dá pra pegar o almoço na cantina do Luigi.
Calma, garoto, você é muito afoito. Podemos muito bem saborear as delícias locais antes de amanhecer. Ainda mais servidos por questa bella ragazza. Na vida tudo tem seu tempo.
Tá certo, tá certo. Diz aí, Gatinha, qual é o seu nome mesmo?
Ricarda.
Ricarda? Isso lá é nome que se apresente? Parece que seus pais não gostavam muito de você, acertei? Mas, peraí um pouquinho. Não é isso que tá escrito aí no crachá, não.
Maria é meu primeiro nome, homenagem à nonna. E se você já tinha lido, perguntou por quê?
Estava só puxando conversa.
Vocês vêm de onde?
Da capital, ora essa.
Sabia! Têm pinta mesmo de cidade grande. Meu sonho é sair desse buraco.
O namorado vai chiar, hein, Gatinha.
Vai não. Aqui só tem caipira.
E os nossos cafés? Tira para nós, por gentileza. Aproveita e traz também uma fatia daquela torta ali, ó. Quer também, Rato?
Já disse pra não me chamar assim.
Ôôô... esqueceu de com quem você está falando?
Com todo respeito, Sr. Santini, é que eu não gosto que me chamem dessa maneira.
Tudo bem, Rato, tudo bem. Não precisa se borrar, o quê que a mocinha vai pensar de mim?
Que barulho é esse lá dentro? – o ruído assustou o rato.
Ah, é o Charlie! Ele pensa que me engana, mas toda noite tira um cochilo no estoque.
Chama ele lá para nós. Diz que um cliente quer lhe falar. O Rato vai com você para ter certeza de que não vai se perder.
Tem mais alguém malocado nessa espelunca, ô Preto Velho? – Rato chacoalhava o homem pelo avental.
O que o meu colega quer saber é se não há mais algum funcionário na casa.
Não, senhor. Aqui só tem eu e a moça.
Você conhece um tal Rico D’Ambrosio?
Não tem ninguém com esse nome aqui por essas bandas, não senhor.
Ora, Rato, é claro que hoje ele usa outro nome. O amigo por acaso sabe de algum italiano metido a galã? Ele costumava andar assim, ó, meio de lado. Gingando feito malandro das antigas.
Ah, esse é o Tony! Só pode ser o Tony. Ele é velha guarda assim que nem você?
Bom, menina, acho que sim. Pode-se dizer que sim. Isso, velha guarda.
Então, eu não disse? Tony Fratello!
Vamos na casa dele, Sr. Santini. A gente executa o serviço e sai logo desse fim de mundo.
Você me leva junto?
Ficou maluca, Gatinha?
Leva, Ratinho, você não vai se arrepender. Eu nasci para rodar o mundo! Quero conhecer o mundo, sacou? E então, leva?
Tá certo, tá certo, levo sim. Garanto. Você vai se amarrar, Gatinha. Eu conheço tudo na cidade grande. Pode contar comigo pra te apresentar o mundo.
Ele vem aqui todo dia.
Menina...
Ah, Charlie, não enche! Ele vem sim, toda manhã.
E a que horas mais ou menos?
Sete. Ele chega sempre às sete horas.
E não tem erro isso, amigo?
Senhor, eu trabalho aqui há dezessete anos e nunca, nunquinha mesmo, ele chegou sequer atrasado. Dá até para acertar o relógio por ele.
Ótimo. Não é por nada, mas é que fomos compagno d’armi por toda uma vida, acho que por tempo demais até, e gostaríamos de lhe fazer uma surpresinha. Você entende, não é mesmo?
Então é melhor se apressar! Está quase na hora já, daqui a pouquinho ele deve estar estourando por aí. – ela disse, dando uma espiada pela vidraça.
Até que enfim um bocado de ação nesse cafofo. Como é que a gente faz, Sr. Santini?
Não sei, não sei. Me deixa pensar um minuto.
Tem o quartinho dos mantimentos.
Como é que é?
O quartinho. Podem esperar por lá enquanto o amigo de vocês não chega. Aí, no momento certo, é só sair e matar as saudades.
Você tá pensando que eu sou otário, Gatinha? Deu pra dar defeito agora, é? E se você tranca a gente e sai pra avisar alguém?
Cala a boca, Rato. A ideia é boa sim. Aliás, é perfeita, até porque ela vai estar lá dentro com a gente, certo, mia cara? E eu tenho certeza de que o amigo ali vai fazer tudo direitinho, não vai?

O som abafado de dois estampidos quase não se percebeu. Rica deixou a despensa saltando por cima dos corpos. Cada um deles tinha agora um olho a mais. Ela dá uma piscadela discreta para Charlie ao passar para o outro lado do balcão. Já podia ocupar a mesa de sempre para o tradicional café da manhã com o pai.

Carlos Eduardo Pereira

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Knaus 11:11

(Prêmio Paulo Britto - 1o Lugar - Poesia)


porque sempre que chegas derramo o café
e meu barco de madeira cai da estante
quando escondo tudo
pra que não leias nada
do que tenho escrito

parece —
que o capitão haddock já se cansou de ser de plástico
e te detesta tanto quanto eu agora
mas se te detesto tanto
porque passo o tempo todo pensando
precisamente sobre isso?

it seems they were all cheated of some marvelous experience
which is not going to go wasted on me
which is why i'm telling you about

as cascas de pistache
a luz neon do posto
e o tempo que certas têmporas perfeitamente concha-acústicas levam tentando decidir se deveriam ou não

entrar,
dormir no sofá
ou se mudar pra berlim

aposto –
que faríamos sucesso tocando dominguinhos
e a medida obsoleta das verstas,
idem.


Catarina Lins


Vencedores do Prêmio Paulo Britto de Poesia & Prosa

Segue a lista com os nomes dos vencedores do Prêmio Paulo Britto de Poesia & Prosa:



PROSA
1º Lugar: Carlos Eduardo Pereira
2ºLugar: Gustavo Sant'Anna de Souza
3º Lugar: Leonardo Henrique Caldeira Pires Ferreira

POESIA
1º Lugar: Catarina Oliveira
2º Lugar: Thiago Gallego
3º Lugar: Alexandre Bruno Tinelli



segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Resultado do Concurso Inverso do Avesso


É com muita alegria que viemos a divulgar o resultado do concurso Inverso do Avesso, realizado pelo Jornal Plástico Bolha e pela Poeme-se; segue abaixo a lista dos vencedores:

1º lugar

não tire
teus dedos
de mim

baby,
o amor
é touchscreen

Germana Zanettini - São Leopoldo/RS


2º lugar

Tenho em mim
um dicionário de silêncios.

Luciana Chardelli - Rio de Janeiro/RJ


3º lugar

haicai é igual
saia de bailarina
pouco vê, MUITO IMAGINA

Jordano Souza - São Gotardo/MG


4º lugar

SOUVENIR

Estive no inferno
lembrei de você

Marcos M. Casadore- Assis/SP


5º lugar

Em mim
há dois seres

— não sou
nenhum deles

André Foltran - São José do Rio Preto/SP

6º lugar

tomamos nossos cafés por e-mail
matamos nossas saudades por e-mail
os fins justificam os e-mails

Josette Lassance - Belém/PA


7º lugar

é de paz
o coração
mas bate forte
Marcelo da Veiga - Rio de Janeiro/RJ


8º lugar

Existo!
Logo penso:
A vida tem que ser escrita
Por extenso.

Paulo Soares - Crato/CE


9º lugar

MIOPIA

Teu corpo
é um poema
pra perto

Matheus Rocha - Garanhuns/PE


10º lugar

A gente nunca erra
quando faz da paz
nossa arma de guerra

Alvaro Posselt - Curitiba/PR

11º lugar

poligamia,
meus dedos
trepados
nos seus

Bruno Bossolan - Capivari/SP


12º lugar

Ser humano é contar
grãos de areia e imaginar-se
colecionador de estrelas

Lucas Lisboa - Rio de Janeiro/RJ


13º lugar

Estava tão sozinho
que liguei pra mim mesmo
... ninguém atendeu

Pacífico - Brasília/DF


14º lugar

Qualquer dias destes

quando você parar na minha frente
independente do sol e da lua
o eclipse arrebentará  de dentro da gente

Matheus Jose dos Santos - Petrópolis/RJ


15º lugar

Eu

Sou
poeta:
dos males o menor

Francisco Nunes - São Caetano do Sul/SP

16º lugar

Futuro Blue

Sorte daquele
que de amor já foi
doador e pedinte
e mesmo aos quarenta
não se acovarda e ama
como tivesse vinte.

Elimacuxi - Boa Vista/RR


17º lugar

apartar 
o beijo da boca 
é cortar as asas 
da língua.

Reynaldo Bessa - São Paulo/SP


18º lugar

ser é nó
sereno

Malí Steling - Rio de Janeiro/RJ


19º lugar

Fofoca

Me conta
Não creio
Cê jura
Bobagem
Besteira
Nem ligo
Será
Me explica
Menina
Que coisa
Que coisa
Que coisa

Thais Lancman - São Paulo/SP

20º lugar

Batatinha quando nasce
Se esparrama pelo chão
Amor, hoje é só alface
Batata tem mais não.

Rodrigo Torrero - Rio de Janeiro/RJ



Foram aproximadamente 700 inscritos de todas as partes do Brasil e do mundo, que fizeram desta 1a edição do concurso Inverso do Avesso um sucesso absoluto! Parabéns aos premiados e muito obrigado a todos os participantes, organizadores e jurados!

Eu, o cuspe e a flor


Cuspo no chão
na esperança que uma flor
                nasça
por entre pernas e
                saias
regada pela saliva úmida
mas ela não nasce
ela é dura, José!                                                                                     

Extremamente salgada,
talvez seja isso.
Com a boca mordida
e o sangue nutrido
cuspo de
                novo
mas o asfalto é quente e negro

Meio dia na Bahia
não é hora de cuspir
as bocas não mais se cospem
alguns nunca cuspiram,
e o cuspe evapora
no chão que ferve os pés descalços.

E após vários cuspes
a secura é presente
a língua tem câimbra
a boca se fecha
os dentes se mordem
e nem sinal de flor.

O cuspe elaborado ainda não há
a flor é exigente
exige dos seus o tempo que for
o cuspe é
                necessário
mas não suficiente
a vida não basta
não basta o cuspe e a esperança de flor

é preciso mais
talvez mais fome
talvez mais dor
talvez mais        
                eu.



Renan Leal


quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Águas Calmas


O ódio, a mágoa, a trégua;
ser humano, a liberdade árdua.
O sonho perdendo-se na névoa,
a vida impura poluindo a água.

É chocante o voo que nos guia,
rasgando os céus com esta mágoa;
um choro, uma tristeza esguia,
um riso limpo que tudo enxágua,

enxaguando o passado em seu ódio,
quem sabe um dia, a realidade tátil.
Será esta a conquista mais árdua,
a paz, infinita e frágil?

Sigo assim buscando trégua,
de cada dia, o nosso desafio,
enxergando através da névoa
a água calma a fluir no rio.

Flavia Rocha Loures


quarta-feira, 10 de setembro de 2014

raissa


na folha,
seu nome escrito
não tem olhos castanhos
não gosta de amoras
não adormece

mas a remete
tão capaz quanto ao silêncio de antes

- dita no avesso do mundo.

seu nome
precedido por agora
de mãos dadas à isoldas
pilares
rosas

artifício por outros fogos

acenderá no seu
também outros
nomes mudos

- o bem dito se desapercebe dizendo.

seu nome escrito
à flor da pele (ou da folha)
uma multidão de vezes (ou de vozes)
lido, traça trajetos:
um resguardo
do próprio verbo guardar.

resta ao poeta,
e todo amante,
mais do que amar:
  
a conversão do amor falado

no próprio amor falante.


domingo, 7 de setembro de 2014

2 poeminhos de Malí Steling


1. deixa os sapatos na porta da frente
pouco importa a cama torta
a coberta curta, a perna aberta

aperta, entorta, liberta, transborda
alaga, alonga, apaga, prolonga
pega os sapatos indiferente

2. presa na barra
no fundo do bolso
solta na noite

escondida num canto
agarrada no trago
debaixo da lua

dentro da calça
amarrada no peito
no cheiro do fumo

se você for

eu vou junto


Malí Steling


sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Espera


A primavera vai voltar
e logo virá o natal e depois
o ano novo e o cheiro de mato seco
vai invadir a casa.

As horas vão passar;
a vida viaja em ciclos
eu vou envelhecer
e as horas vão passar –
dia após dia
semana após semana
mês após mês –
mais um ano vai passar.

A primavera vai voltar
e com ela as cores o calor
um ligeiro cheiro de mato seco;
e quando o verão chegar o cheiro
vai invadir a casa.

Circunstâncias mudam de lugar
mas certos discos sempre vão tocar e eu
vou esperar ao som de Tom Jobim.

Mais uma primavera
está de volta e só você não volta
pra mim.


Fernanda Tinoco Ramos


quarta-feira, 3 de setembro de 2014

O Coração e a Flor


Existe uma flor no campo
Mais bonita que qualquer outra
Existe um coração aos prantos
Afogado na amargura

O coração é vermelho que nem rubi
A flor amarela como por do sol
O coração pulsa forte ensaiando explodir
Enquanto a flor dança como se já fosse carnaval

O coração chora toda noite que tem luar
A flor admira o céu e canta Tom Jobim
O coração tem vergonha de chorar
Enquanto a flor vive o momento como se fosse o fim

Eles se encontram numa tarde de sexta feira
O coração triste como quem nunca sorri
A flor que não entende o porque de tanta tristeza
Cantarola musicas felizes pro coração ouvir

Aos poucos o coração se sente melhor
E a flor já exausta e sem ar prevê o seu próprio fim
Então quando lhe espanta toda a angustia e dor
Pétalas se esparramam por todo jardim.

Claudio Vinicius


terça-feira, 2 de setembro de 2014

Querubim


Quando eu nasci
Pai Ogum me disse
Vá à Quixeramobim
Confira os sucessos
Os sons de Chico

Ventos vão visitar suas vistas
Vozes voarão aos seus ouvidos
Pessoas empoeiradas te alimentarão
A secura do teu coração
Vai voar com os sopros dos sussurros
Ou virar lama lavada por tuas lágrimas

Leve seu bandolim
de tocar com cabelo de cavalo
Expresse suas mazelas
Agite um fado
Não seja chinfrim

Antes de chegar ao fim

Maicon Marçaneiro

Quanto tempo cabe num maço de cigarros

alguém me explique como pode
um dia

e
s
c
o
r
r
e
r

feito mel
tão
devagar

como pode num punhado de horas caber
vinte cigarros
todo o tédio do mundo
e meu corpo que cai
num buraco sem fundo

como pode o dia tão lento
se os anos vão tão depressa

da janela do escritório vejo
carros avançando sinais
um homem atropelado

a fumaça do meu cigarro se desfaz no vento
o sonho da minha vida se desfaz no tempo

Yuri Riccaldone