quarta-feira, 30 de abril de 2025

Jenipapo


Vem cá, desculpa! Vamos esquecer tudo o que aconteceu ontem à noite. Eu não entendi o que você quis dizer e você não entendeu o que eu falei. Tudo não passou de um mal-entendido. Apaga da mente e do coração. Temos vivido lindos dias juntos, não vamos deixar que uma noite estrague tudo. Hoje é um novo dia, vamos fazer dele o melhor!

Nada de ressentimentos. Senti minha cabeça girar e logo respondi: vamos! Escolhemos ir à praia das Flores. Enquanto estendia minha canga na sombra, Paulo corria para o mar. O vento estava agradável. Deitei e, olhando as folhas verdes da amendoeira, meus olhos começaram a fechar. Aos poucos fui lembrando do que tinha acontecido na noite anterior.

Estávamos felizes pelo festival de forró. Animados, paramos na primeira barraca. Eu sempre pedia o mesmo; licor de jenipapo!

— O mesmo Betina? Não quer experimentar outro?

Mais um copo de licor, dois, três...

— Oi, Paulo! — André era um amigo local de Paulo. Fomos apresentados. André nos olhava de um jeito como se quisesse perguntar algo.

Depois de algumas rodadas, por fim, o último copo de licor. Seguimos para a próxima barraca.

— Betina quer tapioca com o quê?

— Banana com coco queimado!- Percebi que Paulo teve a intenção de perguntar: coco queimado? Mas desistiu.

— Betina, você é linda. - Agradeci com um sorriso.

Vamos! Mais um licor. Lá vem! Era o trio de forró. Seguimos felizes como se estivéssemos no carnaval. Paulo era tímido e não sabia dançar, mas bastava beber que a timidez ia embora. O trio parou na praça— Agora sim! Vem dançar Betina.— Apesar de estarmos bêbados, eu conseguia perceber as pessoas apontando em nossa direção e rindo.

Despertei às gargalhadas só em lembrar da cena. Olhei para o mar e lá estava Paulo me chamando para ir para a água. Mas tudo o que eu conseguia era rir ainda mais. De cansada voltei a deitar na tentativa de lembrar do fato principal, mas tudo o que vinha em minha memória eram “flashes". Depois de algumas horas dançando fomos até o bar do coqueiro, local em que todos vão depois que acaba a festa.

— Linda, essa é a última rodada de licor, depois vamos embora. — Paulo foi ao banheiro enquanto eu o aguardava. Foi tudo tão rápido que quando percebi uma pequena confusão já se formava. Aos gritos tentei puxar Paulo. Depois de muito consegui levá-lo a uma rua menos movimentada. Tento lembrar o motivo da confusão, mas não consigo. Só lembro que nesta rua menos movimentada nós desabamos. Não sei se pelo efeito do licor ou... Choramos. Senti as gotas rolarem pelo meu corpo.

— Betina?

— Oi! Nem percebi você voltar do mar. Está me molhando!

— São gotas de água salgada. Estava sonhando acordada?


Indira Kupfer

terça-feira, 29 de abril de 2025

Um poema de Nadiá Paulo Ferreira


No teu aparecer antecipado
vieste príncipe imaculado

Cadáver apodrecido vivo
tornas-te sonho ruivo
dos meus gemidos fátuos

Corpo sem face
és puro regresso
dos meus pontos cegos


Nadiá Paulo Ferreira

segunda-feira, 28 de abril de 2025

A costura da passagem, texto inédito de Melina Galete


Ontem retornei ao cemitério pela primeira vez desde aquele dia, há duas semanas. Planejei a lápide, escolhi a cor. Estávamos mesmo em fase de redecoração da casa. Era um dos nossos planos para janeiro. Não me esqueci das Relíquias da Morte. E uma foto bem bonita, com o que Niterói tem de melhor. E um poema, claro. E meu nome, porque sempre fui ciumenta com ela e é importante marcar o território. Sei que lá é só o corpo, é só matéria. Agora tirei a roupa, estou no banho. Olho para baixo. Vejo o bico do meu peito direito diferente do esquerdo, moldados nos três anos e meio de amamentação. Vejo a minha barriga, disforme e com estrias, e no canto esquerdo uma elevação diferente, que não parece fazer sentido. Um pé. Na trigésima nona semana, o corpo, sempre tão pequeno fora da barriga, não cabia mais ali. Ela esticou e imprimiu no meu corpo a sua pele, marcando também o território. O corpo, tão pequeno em vida e grande na barriga, agora se desfaz atrás da lápide que eu escolhi. Sei que lá é só o corpo, é só matéria. Mas é um corpo saído deste corpo, que ainda carrega a costura da passagem.


Melina Galete

domingo, 27 de abril de 2025

Palavras sublinhadas


somos naufragos da noite
somos a palavra sublinhada
no interior de algum livro
este laço frágil
lágrima que perpassa
o tempo entre as horas
atravessa
dilacera

somos palavras precárias
petrificadas no hiato cósmico do agora
versos malditos
no caminho já perdido das insônias

entre as pedras da cidade
há um muro de carne
que impele
implode
impera
somos o discurso mudo de mãos entrelaçadas
somos o rumor poético das palavras redescobertas
somos o furor dos passos 


Salvador Passos

sábado, 26 de abril de 2025

Pornorganicotube


filme pornô bom de se ver 
                      era a árvore junto com o oxigênio
a natureza a se lamber.


Matheus José Mineiro

sexta-feira, 25 de abril de 2025

Um poema de Gyzelle Góes


o meu coração
paralisa 
nas mãos 
das palavras: 

decoram 
o estrangulamento


Gyzelle Góes

quinta-feira, 24 de abril de 2025

Rosa desfigurada


carícias matinais
quando não dizias
que me amavas 
com todos os gestos
o sorriso
abrias
pétala por pétala
eu que antes
em mim
habitava
agora
em ti
deságuo


Beatriz Bastos

quarta-feira, 23 de abril de 2025

O caçador, o encantador e o colecionador


O caçador é aquele que escolhe a sua presa e depois de usá-la abandona os despojos.

O encantador é aquele que pega a sua presa e a encanta com pequenos gestos de encantamento, como um bombom Sonho de Valsa, um botão de rosa, um vasinho de violeta, um cinema ou um teatro e assim por diante.

O colecionador é aquele que pega suas presas e vai agrupando-as tal como um harém e por vezes trocando-as por outras.

Agora, existe também o vice-versa. Quando isso acontece, as mulheres têm que tomar muito cuidado e, assim como os escoteiros, permanecerem sempre alertas.


Marina V. Medeiros

terça-feira, 22 de abril de 2025

VALA DE INDIGENTE


Tenho em mim o desejo profundo de ao menos uma vez na vida morrer uma morte de mulher pagã. Mas não quero jogar-me de um prédio ou na frente de trem, meter a cabeça em forno, afogar-me com pedras esquecidas no bolso, nem suicidar-me com um tiro por amor a ninguém. Não tenho muito de Ana Kariênina em mim. Talvez de Ofélia eu tenha um pouco mais. De Ofélia, sim. Também serei enterrada como indigente. Quero morrer em meio às flores, num delírio controlado. Ao menos uma vez. Minha tristeza será tão feliz quando meu único dever for o de deitar-me na relva ao relento e esperar a morte. E na espera, talvez, viver o silêncio. E no silêncio, com certeza, sentir o tempo. Os insetos me atravessam sem devorar-me, pois eles sabem que eu já devoro a mim mesma. A cobra rasteja por entre minhas pernas, sem se perceber, a onça me usa de travesseiro. E meus cabelos se desprendem em tufos que são presentes para os pássaros. De pouquinho em pouquinho eles me convidam para dentro de seus ninhos. E eu entro. Tão linda é essa minha morte. Peço para que nunca termine. E rezo, pois as mulheres pagãs também rezam. E Deus me atende. Meu sangue é doce néctar para as abelhas e morcegos que me prolificam. Também em mim respira toda uma floresta. E quando seco, petrifico. Por toda extensão de minha pele, então, o verde vai consumindo. É o musgo que finge me preencher e me esconde do restante do mundo. E eu não sinto mais nem fome, nem frio, nem sede... não, sede sim. Eu bebo dessa sede. Mas não medo e não nada. É tempo de morrer e eu sei muito bem como fazer isso.


Giovanna Ramundo

segunda-feira, 21 de abril de 2025

Em fim


Cremado o amor inconsútil, ela jogou as
cinzas da Ponte J.K Voaram sobre o
lago com o vento seco de Brasília. À
tardinha, assentaram não se sabe onde.

O que é leve em algum lugar pousa.
O que pousa em algum momento pesa.


Noélia Ribeiro

domingo, 20 de abril de 2025

+ um dia -


Terei o hábito de conversar com putas
Que doa-te meus humilhantes grãos de sal
Jamais fui Virgílio nem pertenceria
À Glória
Homérica solidão de tantos, os homens,
Brancos e límpidos de pecaminoses
Sem doenças além do ser, aquém d'si
Alguns de nós são os mesmos daqueles versos
Para Briseida
O espólio desfigurado das palavras
É só o que eu tenho para conversar.


Bruno Nöthlich

sábado, 19 de abril de 2025

Problema geográfico


no microestado
da poesia carioca
canônicos e marginais duelam
no mesmo cep

fora da zona sul
penso:
somos todos apátridas


Gabriel Silveira

sexta-feira, 18 de abril de 2025

Gramática


Na paixão por tempos verbais, não sabia que
os indicativos me apontavam regências tão
difíceis. Mesmo traiçoeiros, o vós e os subjun-
tivos me divertiam. Adulta, tenho medo do
nós. Em caneta permanente, o futuro d o pre-
térito fez-se em mim dolorido. Quero Ganhar 
futuros de presente


Luiza Mussnich

quinta-feira, 17 de abril de 2025

Coração fogoso


Um bar de uma única mesa
É o meu coração
Um bordel gótico
De deusas lésbicas
Príncipes gays
E virgens taradas
Esse é o meu coração
Um copo de vinho
Um bêbado bebe sozinho
Esse é o meu coração
Seco,vertical,colorido
Um fundo preto definitivo
É o meu coração
Levado e saboroso
É o meu coração fogoso
Quem dele provar,jamais esquecerá
Sala parisiense
Com flores pequenas
Esse é o meu coração grego
Lareiras,fundas e macias
Poltronas,quadros com telas
Pintadas de verdes
É o meu coração
Renda branca na toalha 
De mesa
É o meu coração
De porcelana chinesa
Um verso sublinhado
Num livro aberto
Ao lado
É o meu coração
De janelas fechadas
Noite amanhecida
Sem versos
É o meu coração
Revelado o segredo
É o meu coração
Desvendando o pudor do mundo
Dentro de mim
Brota o sol.....
Por poucos segundos
De êxtase
Dispo-me do sofrimento
Da solidão que explode
Na escuridão
É o meu coração!


Mery Onírica

quarta-feira, 16 de abril de 2025

Memorial ao morto imaginário


Nublei os meus olhos
na alba da alma dispersa...
Imaginei-me morto.
O silêncio partido
de quem conheci vivo
e amei ensandecido
girou tardo e líquido
em minha inconsciência
de carrossel iluminado.
O mistério do desaparecido
terrenal
é intrigante e numinoso:
fica-se etéreo,
vulnerável,
à mercê da lembrança alheia.
Estar é não estar
horizontal na vertical
ou vertical na horizontal,
combustão passageira de sonho
na memória desfeita.


Diego Mendes Sousa

terça-feira, 15 de abril de 2025

, a palavra que eu reúno em pequenas embarcações ,


,   o anonimato pode ser a pele macia de que se precisa   ,   ser um desconhecido e não ter compromisso com a fama pode ser ótimo   ,   quem está aí?   ,   perguntou o ciclope   ,   foi astúcia de Odisseu responder: ninguém   ,   salvou-lhe a pele definir-se assim   ,   eu visto o anonimato como uma pele que acaricia   ,   aproveito a pele do anonimato para isolar um ambiente interno que insiste em escapulir   ,   as escapulidas nem sempre são fáceis  de  administrar   ,   um dia o Pachá me perguntou se eu não ia publicar e eu   ,  com seriedade experimentei a ideia de não querer   ,   encontrei uma verdadeira intenção de esperar   , anonimamente arranco com firmeza   ,   apenas visto essa pele macia   ,   talvez como Odisseu eu esteja esperando o mar aberto para gritar para o ciclope meu nome   ,


Valéria Grassi


(Este é um trecho do livro Intermitências apenas, publicado pela editora Cambucá, e segue a diagramação proposta pela autora)

Homenagem a Mário Cesariny, amanhã!


 

segunda-feira, 14 de abril de 2025

Mate, texto de Raquel Naveira



Faz parte de nossa tradição tomar mate. Chimarrão é o mate cevado, sem açúcar, regado a água quente. Tereré é o refresco, bem gelado. De acordo com o clima, passa-se do chimarrão ao tereré.

Para tomar mate é necessário adquirir uma cuia, morena e matuta, uma bomba ou bombilha e a erva moída, fina ou grossa, nativa ou pura folha defumada.  Tudo fica semelhante a “um coração verde com uma artéria de prata”, conforme poema do gaúcho Aparício Silva Rillo.

O ideal é tomá-lo numa grande roda, sob um laranjal. Ajuda a fazer e solidificar amizades.

Se houver os serviços de alguém disposto a “carregar mate”, ótimo. “Carregar mate” significa segurar a chaleira, passar a cuia de uma mão para outra, de uma boca para outra, respeitando a vez de cada um, a animação da prosa e o ritmo dos sorvos. Levar a chaleira lá dentro para esquentar de novo no fogão, quando a água começar a esfriar, para não azedar o mate.

É bom que haja no céu um sol bem vermelho e uma poeira cor-de-tijolo envolvendo tudo.

Se for na hora do quiriri e algumas estrelas perfurarem a tarde com suas pontas de lata, a conversa será mais lenta.

Se alguém falar alguma frase, alguma palavra em guarani, como “che-kambá” ou” cunhataí”, dará mais sabor à erva.

Importante mesmo é que haja um clima de comunhão, de cachimbo da paz, tudo muito morno e quente.

Tomo mate toda tarde com meu amigo, antes do sol se pôr, antes de acendermos as luzes, no lusco fusco. Encho a cuia, derramo erva verde num canto, coloco galhos floridos de marcela. Gosto daquela cuia enfeitada de pedras vermelhas, preciosas como as daqueles anéis que a  gente comprava nos bolichos da estrada. Depois vem a água quente, escaldante, saindo da chaleira de louça verde esmaltada, vinda do Paraguai.  Meu amigo se anima, conta histórias, enquanto o mate amargo conforta seu coração. Quando meu amigo toma mate e eu tomo mate com ele, nós nos fazemos companhia. É como se um manso regato escorregasse aos nossos pés.

Melhor que mate, só a serenidade e a constância, no coração.


Raquel Naveira

domingo, 13 de abril de 2025

(i) lógica


a teleologia 
hesitantemente
epistemologizando.

o relativismo
peremptoriamente
hermeneuticando.


Bianka de Andrade


sábado, 12 de abril de 2025

As bonecas só falam "mamãe", de Eduardo Moraes


Depois de uma hora e quinze no busão, Danilo chegou em casa da escola. Largou a mochila em cima da mesa — o terror de Perla: “trazendo sujeira da rua para a mesa em que a gente come, meu filho” — e foi para o quarto depois de mais um simulado para o ENEM. Ele tinha ido muito mal e sabia que seria salvo apenas pela redação e pela química. A primeira, pelo tanto que gostava de ler e escrever, a segunda, por tudo que aprendeu com a mãe, que tinha estudado só para ensinar a ele. 

A pressa era tanta que nem reparou que no sofá, Perla estava prostrada, imóvel, mirando a televisão desligada.

Depois de duas horas de sono, o garoto acorda pelas 19h e a encontra na mesma posição, da qual não saíra desde às 14h. Ainda meio sonolento e sem notar os olhos vermelhos da mãe, Danilo deita em seu colo, sem dizer uma palavra. A mãe afaga seu cabelo, mas não consegue sustentar o momento carinhoso. Não chorou porque já estava seca, depois de ter ficado aos prantos desde as 4h da manhã, quando foi buscar uma água na cozinha de madrugada e olhou para as covardes palavras que, em resumo, diziam: “Não volto mais”. 

O garoto finalmente percebe a cara da mãe, e ela, só com o olhar, suplica o seu silêncio. Danilo, que voltou a aguçar a sua sensibilidade, abraça a mãe bem forte, que o afasta pelo simples fato de seu toque ser idêntico ao do progenitor que não mais voltaria a ver. O adolescente entende, mesmo sem saber o motivo, e se recolhe. Sai em busca do pai, que não terá nome nesta história, por não merecer e por ter escolhido riscar o seu nome da vida de Perla e Danilo. O garoto não o encontra, achando que seria mais um episódio de bebedeira e briga no bar da esquina. 

Mas desta vez a atitude, igualmente frouxa, tinha sido outra. Ele suspeita quando vê a sua gaveta do armário vazia, mas confirma quando abre a portinhola sob a imagem da Nossa Senhora de Fátima da sala e descobre que as suas economias não estavam mais ali. Faltava pouco para inteirar o valor da primeira visita de avião do menino e da mãe ao avô em Fortaleza. As notas e moedas, que eram os trocos de lanches e das contas pagas na lotérica, agora estavam na mão do homem que apenas o colocara no mundo.

E lembrou da história da professora, que o marido deixou com três crianças pequenas para ficar com a amante e nunca mais voltou. Do seu melhor amigo da sala, que o pai desprezava porque era gay. Da sua namorada, cujo pai pagava uma pensão miserável e um jantar por mês para calar a sua boca, enquanto os filhos do segundo casamento viajavam para Angra dos Reis e tinham um ótimo plano de saúde. E de outros colegas com pais que bebiam e sumiam ou bebiam e batiam, que traíam sem dó, pais ausentes, apesar de residentes na mesma casa.

O menino, quando olhava à sua volta, com tantos exemplos claros, inclusive o seu, notou que, nas histórias de abandono, eram as mães que ficavam. Quase sempre.

Danilo percebeu que, ainda nos tempos atuais, seguia muito fácil ser pai.

Pela primeira vez, aos 16 anos de idade, pensou no quanto dá trabalho pensar no cotidiano de uma criança, desde o momento em que acorda até quando vai dormir. E também perguntar o que chateia, buscar na escola, levar ao médico, dar carinho e tudo mais que envolve o dia a dia de uma criança. E que isso parecia ser um extra aos pais, e não a obrigação que era às mães.
Deve ser por isso que as bonecas só falam “mamãe”. 

Danilo notou que aos pais que tinha como referência, quando encheram o saco de ser pai, ou melhor, de ser o que se convencionou ser tarefa primordial da mãe, bastou inventar uma desculpa qualquer e seguir sua vida, por algum motivo banal dito com tom de prioridade máxima. O fim do amor, o início de outro, a carreira, a incompatibilidade da vida paterna com a vida escolhida ou o desejo de liberdade. Não importa: pais abandonaram ou foram embora esquecendo o pedaço de si que deixaram no mundo para outra pessoa cuidar. Outra pessoa não. Para a mãe cuidar. Perlas, Marias, Tânias, Adrianas, Simones, Júlias.

O menino, instantaneamente mais cascudo, conseguiu convencer sua mãe a tomar um banho, ligou para sua amiga do trabalho explicando a situação e a colocou para dormir.

Acabou seu dia tentando acreditar que ainda podia ser amado. Tentando não pensar que a culpa era dele. E recuperar a confiança. E colocar na cabeça que não deveria ficar tentando recuperar a atenção e o amor do pai. Já que o amor nunca existiu do lado de lá.

Antes de pegar no sono, sem chorar um minuto sequer, cravou uma profecia a si mesmo: se um dia concretizasse o sonho de ter um filho, não seria pai.

Danilo queria ser mãe.



Eduardo Moraes

sexta-feira, 11 de abril de 2025

quinta-feira, 10 de abril de 2025

Paragens


lugares…
pra conhecer
sentir
amar

lugares…
pra felicidade
recordar
cantar

lugares…
pra inventar
chorar
esquecer

lugares…
pra abraçar
ser criança
voar

lugares…
pra navegar
jogar âncora
quando desejar


Jurema Rangel

quarta-feira, 9 de abril de 2025

Armandinho


Nas noites das sextas-feiras, 45 minutos depois da hora marcada, o sorriso engravatado surgia na esquina. Nem um minuto a mais ou a menos. Chegava sem pressa, sapato bicolor, chapéu de palha, um vape no canto da boca. À sua espera, a dama toda de branco, obrigada a reconhecer a única qualidade daquele homem. Armandinho era pontual nos seus atrasos!


Teresa Garbayo

terça-feira, 8 de abril de 2025

Oração a dois Senhores


Ave Senhor de todos os senhores,
Ave Senhor em que a alma capitula!
Ave Senhor dos títulos, penhores,
Ave Senhor daquele que acumula!

Ave Senhor do brût de investidores,
Ave Senhor daquele que especula!
Ave Senhor da bolsa de valores,
Ave Senhor com que o ego confabula!

Ave Senhor da dívida e do aporte
Ave Senhor da ação que se reveza
Ave Senhor do herdeiro que tem sorte!

Ave Senhor que o juro não despreza
E ave Senhor que aqui no caixa-forte,
Tens o lucro e os ativos desta reza!

Guilherme Ottoni

segunda-feira, 7 de abril de 2025

DIA-DE-SEMANA


Salto do trem.
Estação Glória.
Agarro a bolsa com a mão direita.
Com mais força, a esquerda segura o livro.
Rua do Russel, coração mil beats:
podem me assaltar tudo
menos a literatura.


Laura Liuzzi

domingo, 6 de abril de 2025

Técnica singular para inflar balões


O primeiro sai algo banana ou salsicha. Outro toma forma de um camelo, duas corcovas oblongas. Ora, sim, um zepelim um tanto tímido. Murcho como uma fruta. Disforme feito um sonho. Os meninos também acionam pistolas de água, como ensaiando a ejaculação. E atiram dardos ao centro do alvo, sempre um orifício escuro. Empinam pipas com longas caudas, seus espermatozoides no céu. “Oi”, a prima e seu sorriso, surgindo à porta. Os olhos dele são a contrapartida de dois seios completos.


Perce Polegatto

sábado, 5 de abril de 2025

Clivagem


Canto pra renascer
na pedra
com a semente que o mar
roubou dos náufragos; canto
para repartir com a brisa
a lúdica sesmaria da palavra.

Um atlas abriu seus galhos
para acolher meus reinos:
uma geometria de farrapos;
um tigre com o sol entre as patas.

E sigo esse rio de letras
como se chão em chamas:
a poesia me despiu
para explodir com astros.


Salgado Maranhão 

sexta-feira, 4 de abril de 2025

Pressão e neblina


anúncio tela rede social mensagem
trabalhar até tarde sono cansaço
rede social tela mensagem anúncio
urgente urgente trabalho sono
sonhos distantes emergência preços altos
pulsão de morte solidão amigos distantes
trabalho extenuante sono sono sono
tela mensagem anúncio rede social
alguém disse um disparate
deve ser verdade tela urgente anúncio
trabalho exaustão cansaço sono
tela mensagem anúncio rede
rede rede eu me rendo


Ẹgrium Tạdrel

quinta-feira, 3 de abril de 2025

EU SÓ FARIA LAVA-PÉS EM PÉS DE GALINHA


negue meu nome três vezes
na quarta não tenha voz
é difícil o querer das castanheiras:
produzir a carne que se come:
brutalidade do que apenas o que é belo tem
desmente,
Cobra Cecília,
desmente!
diz que não foi a carne minha que tu comeu,
diz que não foram as minhas mãos que lavaram as tuas e,
agora
lava tua barriga
prepara teu próprio lava-pés
contenta-te com o silêncio das salas católicas
nunca poderia eu
nem por amor
nem por ódio
todos os suspiros que dou são
de amor
ou de ódio
quase tudo era imenso
afago afogo atropelo
perdizes,
eu só faria lava-pés em pés de galinha
sou feita da mesma matéria
das plantas rasteiras que queimam
isso é tudo que tenho a ver com pés
escarra na boca
tranque a porta
cata na faca o meu novo nome:
eu sou o fio da navalha


Ágatha Kreisler

quarta-feira, 2 de abril de 2025

Um poema de Paulo D'Auria


a palavra é exata
e vã
a palavra é sagrada
e pagã
palavra é mulher
e homem
criança
e anciã


Paulo D'Auria

terça-feira, 1 de abril de 2025

1° de abril


Não sei de ontem,
ainda não tinha nascido.
Nasço todo dia de hoje,
mas ontem rebrota na memória,
pequeno cacto sobre escombros.
Querem tirar o cacto,
fantasiá-lo e dizer que é margarida.
— Não! O cacto é real,
e está aqui,
memória viva que fere hoje:

— golpe!


Jade Prata

Vers de Circonstance


I. imunidade de rebanho


A estupidez é sua própria recompensa.
Graças a ela, o mundo faz sentido,
um só, que é fácil de identificar.
E só o fácil satisfaz a quem não pensa.

Pensar é coisa trabalhosa. A ignorância
é o sumo bem dos cidadãos de bem,
é a verdadeira marca dos eleitos.
Ter sucesso é não ter que saber. Saber cansa,

e o objetivo central de qualquer existência
só pode ser não se cansar. Olhai
as vacas do campo: não lhes faz falta a ciência,

pastam em plena bem-aventurança,
sem que nenhuma antevisão do matadouro
perturbe a santa paz da ruminança.

II. Zeitgeist


Se te falta competência 
pra amar, mas queres na vida 
o condimento da paixão, 
resta uma saída. 
 
Pra quem nos duros embates 
do amor jamais subiu ao pódio, 
há um prémio de consolação 
bem fácil: o ódio. 
 
O ódio dispensa a razão 
e seus meandros sutilíssimos, 
a lógica, a estética, a ética; 
só requer o fígado. 
 
O ódio leva a emoção 
a seu mais extremo ápice 
sem amante e sem amigo: 
basta-lhe um cúmplice. 
 
Abraça com força teu ódio, 
faz dele um belo romance. 
Eis uma vera paixão 
a teu alcance. 


Paulo Henriques Britto