quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Essa voz


Essa voz que é carne e vida
                que é tua e arde e linda
                que aprende qualquer língua
                e erra o timming de calar

Essa coisa quase água quase viva
                  quase o ar que alguém respira
                  quase dava pra pegar

Era canto era pranto era ainda
                era a calma que amansa briga
                era o amor que ninguém pisa
                era o susto de me levar.

Essa voz que me mastiga
               quando beija é só saliva
               faz o tipo ventania
               busca um corpo pra ficar

Ramon Ramos

terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Livre


Foi assim que começou a sentir o espaço à sua volta, alargado, imenso, onde não mais se mexia – dançava. Subia e descia dos ônibus ainda com destreza inesperada, quase como uma bailarina. Ia de lá pra cá, de cá pra lá, por ali, acolá. Em todas as paradas podia fazer baldeações, vadiar, conhecer o último beco que tinha visto passar rapidamente pela janela – agora mais que nunca – como uma arte maior – saltar e ir revelando a cidade que agora lhe pertencia.

Dona de si, dona da cidade, dona de seu cartão de gratuidade, flanava.

Esse domínio de ir e vir lhe chegou com aquilo que chamam de – idade. Sessenta e cinco anos estipularam sua velhice e pularam todo esse prazer inesperado de caminhar, de conhecer, de bailar por esses velhos novos caminhos desenhados agora pelo frescor desse aniversário. Afinal adquirira esse direito. E inesperadamente sua liberdade. Descobriu que o viver era gratuito!

Rosália Milsztajn

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Escuridão


Tal qual Alice no País das Maravilhas, estou eu aqui
A cair, cair, cair... em queda livre, numa escuridão profunda...
Diferentemente de Alice, não estou imersa em um sonho
Estou roteando em um pesadelo sem fim,
Sei que não encontrarei a chave, nem a porta...
Está tudo tão escuro aqui, e eu não sei se quero sair...
Que medo! Lá fora não há luz!
Onde estão os semi-deuses? Cansei dos deuses, dos deuses do meu país...
Hoje, os deuses decidiram que "são consideradas desproduzidas as provas produzidas, caso
 interfiram no que não devam interferir".
Os deuses do meu país me fazem rememorar que o país das Maravilhas está lá fora...
Lá fora a justiça rege!
Os deuses daqui são as moiras romanas, eles determinam o destino dos deuses e dos humanos...
E antes que eles determinem que eu acorde pra realidade
Eu não quero sair da minha escuridão, ela dói menos que acordar
Justo eu que tanto sonhei com meu país, hoje prefiro o pesadelo, a escuridão que tenho...
Só me acorde se for para adormecer de novo, e em queda livre, cair em outro país!
"Para o mundo, eu quero descer!"


Izabela Botelho

domingo, 25 de fevereiro de 2018

Poema de Camila Araújo


acordei.limpei.organizei.saí
Mas antes,
fechei janelas e porta.

Verifiquei, fora dali,
a cinco metros de distância,
se os vãos permaneceriam
in-vi-o-lá-veis.
***
Moro no térreo.
O tal prédio não me pertence,
apenas uma parte dele: uma parte mínima
que condiz
e-xa-ta-men-te
como me sinto
às vezes.
E, só, às vezes...
Eu
acordo, limpo, organizo
e, sim-ples-men-te, saio

Camila Araújo

sábado, 24 de fevereiro de 2018

Poema de Cely Pereira


O que se envolve em mim agora:
O não-saber
Não-saber antigo, vívido e vivido em mente e à cores desde os
Anos iniciais de vida
Em uma outra abordagem:
O não-saber me causa angústia, dor, sofrimento e tudo de ruim que seja possível imaginar; todos os tipos de desconfortos de vida: meu corpo só queria se esquivar de tanto sentir...
O reconhecimento do não-saber:
Meu esquecimento precoce ou inexistente
Pupilas falhas, calejadas de tantas amarras
A dor de ver outro(s), não só de ver... de estar também
E sobreviver e resistir e lutar e treinar você mesma num exercício constante, doloroso, mas constante, que nem o não-saber.
Não-saber que me move, me abraça, dolorosamente, inconstante, inesperado:
Sinto o baque, esgarço, me esvaio, e saio, parto pra um lugar confortável que eu mesma não saiba.
Mas eu vejo
Que o meu não-saber
                                   [o que chamo de não-saber
Me (des)constrói, me corrói
E isso me deixa estupidamente feliz

O não-saber de agora não é o não-saber de ontem, talvez reciclável.

Cely Pereira

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Meu Escuro


Duas pessoas que nunca se viram na vida, de repente compartilham o mesmo ônibus, o mesmo elevador e, quem sabe, o mesmo consultório médico. Duas pessoas que nunca se viram na vida, à vezes compartilham a mesma patologia, a mesma filosofia, o mesmo cinema, o mesmo filme, a mesma rede social, o mesmo sinal de wifi...

Olga Duarte

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Wishyouwerehere


So, so you think you can tell Heaven from Hell, blue skies from pain.
Can you tell a green field from a coldsteel rail? A smile from a veil?
Do you think you can tell?
(Pink Floyd)

Quando eu sai da aula de criação literária, tava apressada. Eu e meu brother A. Voamos pro carro, porque ele ia pegar o ônibus de Portão, depois de Lauro de Freitas! Já era 10 horas, e ele disse:

- Meu bairro tá barril. Essa hora é assalto, o caralho...

Meu irmãozinho é um cara lindo, quarentão, sexy, magrinho, cheinho de amor prá dar. Mas, ele tá fodido. Desempregado, cardíaco, depressivo, e, prá piorar, a mulher dele foi embora.

Eu ouvi a história dele e me lembrei da minha.

No carro, prá relaxar, botei meu CD de Pink Floyd, o álbum de 75. E perguntei:

- Cê gosta de Pink?

E ele demorou de responder, mas, quando ele falou, o rosto dele parecia que tava crescendo, crescendo, ficando deformado, a boca dele ficou estranha. Eu me lembrei que eu ralava muito prá ouvir Pink, mas, quando eu tinha 18.

- Eu nunca consegui gostar de Pink Floyd.

- E aí?

- Sei lá, eu acho esses caras... babacas prá se foder.

-Porra meu! Babaca prá se foder?

- Oh! Minha irmã, eu sou favela.

E ele continuou falando da vida dele. E eu ouvindo minha porra de meu rock. Aí, teve uma hora que eu disse:

- Se for contar cada nota de 100 pau que eu já dei prá ralar 1 puta de uma grama, Pink é babaca e a mãe dele também.

Aí, meu irmãozinho me disse:

- Mas você, não. Você não é babaca não. Mas, os elogios, eu deixo prá seu marido.
Quando ele saltou do carro, correu prá pegar o busú, que já vinha vindo, e o motorista tava envenenado.

Eu pensei: eu sou pequeno-burguesa e fodida. Mas, o que posso dizer prá meu amigo é que: “Wishyouwerehere!”

Jací Pinho Alves Lopes

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Deus exmachina


Sempre quis visitar os momentos mais importantes da história.Mas com um superpoder: saber toda a história. Saber como a minha presença poderia mudar o rumo. Ser a voz que ousou. Dizer“vá em frente” ou “não vá que é barril”. Hoje acredito está vivendo o momento mais importante da história, o mais importante porque é o meu momento.Mas no meu tempo, sou apenas uma observadora passiva. Vivo a cada dia numa sucessão de coincidências com o passado. Reproduzindo por medo de errar. Hoje eu sigo o fluxo. Uma banda que eu gosto diz: O silêncio é mais ensurdecedor. Devo estar distraída.

Mirela Souza

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

domingo, 18 de fevereiro de 2018

O que é o contemporâneo?


É entender o seu tempo sem se apegar a único instante.
É ser eu atemporal.

É ler o que se apaga na claridade.
É se perder na luz.
É se encontrar na escuridão.

É a mudança de ângulo.
É fazer isso sem sair do lugar.

É o dinâmico do estático.
É ir pra frente.
É ir pra trás.

É o passado presente.
É além do cronológico.

É viver o não-vivido.
É a busca pelo ineditismo.
É o encontro da surpresa de ver tudo e ser nada.

Mas afinal, o que é o contemporâneo?

Carolina Silva Leite

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

As linhas do contemporâneo


A busca do homem é sempre incansável
É sempre questionadora
É Sempre destruidora
É sempre renovadora...
A esperança que se cria,
Gera dentro de nós, homens-sociedade
Uma dor de parto da qual todos olham a criança
E gostariam que fossem iguais.
Crianças uniformes, crianças não disformes.
Seguindo uma linha tênue
O que sempre chamamos – ou achamos por contemporâneo
É sempre o momento do não saber exatamente o que é isso,
É quando dentro de um quarto escuro o tempo de olhos abertos
Vai revelando a nós cada canto, cada cômodo, cada item daquele momento.
É um não-saber, se baseando nas linhas limítrofes
Nas separações, nas formulações, na conceitualização
Do que não se conceitualiza estaticamente: a literatura!
Será que a sociedade que se diz tão moderna
Ainda me recriminará pelo lixo que vejo arte?
Pela fera que vejo bela? Pela parte em que vejo um todo?
Pela tinta, pelo lápis, pelo eu sempre chamo de arte?
Estética, estilo, estilística, escrita, forma de violão...
Se prefiro curvas da Estrada Santos
Ou se prefiro as buraqueiras do meu subúrbio
Se vou de alto ao baixo...
Acaso não há estilo e conteúdo?
A Lei Áurea quebrou grilhões da escravidão
E pôs os negros em outras gaiolas.
Prisão é prisão!
A literatura foi liberta de preconceitos
Mas foi posta em moldes, da qual queremos libertar
Aqui, prisão também é prisão!
Por isso, cada dia que abrimos os olhos
E vemos que nem o nascer do sol é igual
Dá-nos a certeza de que
Somos seres plurais,
Somos o livro que se abre ao mundo
Que a tinta se pôs a escrever
Que alma se pôr a ler.

Adriano Souza

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Cegueira noturna


não sou cego: 
        polícia mata preto
        empresário me explora
        políticos são corruptos;
                        disso tenho certeza.
não sou cego:
feminicídio todo dia
viados assassinados
        600 mil pretos presos por nada;
                       disso tenho certeza.
não sou cego:
        temos sempre que correr fragmentados
        enfiam no nosso cu a crise do capital
        20 milhões de desempregados;
                        disso tenho certeza.
Por que ficar dizendo q
tô mergulhado na escuridão?
é tão difícil compreender a verdade?
A história pesa nos meus ombros:
    machismo, racismo, homofobia, capitalismo
    o sangue dos meus antepassados
    vão ser transformados em discurso?
Por que então fechar os olhos
e dizer que estamos no mar do incerto?
Meu povo morre,
                               mas resiste
juntos destruiremos o Estado: 
                               revolução é inevitável.

Gabriel Carvalho

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

Minha Júlia


Minha filha Julia de cinco anos me faz um monte de perguntas(daquelas que criança faz e a gente não sabe como responder), Se ela me perguntar e eu tiver que responder sobre a divisão de tempo, passado presente e futuro , eu explicarei que ao meu ver o presente é um pouco de agora e passado, já que o tempo passa tão rápido. Acho que tudo é muito rápido para chamarmos de contemporâneo. Então eu diria ao fim da conversa, que esse nosso papo,por exemplo, já é algo do passado. Quanto a responder às outras perguntas difíceis que ela me faz, escolhendo a melhor resposta entre tantas outras, eu penso que é como o poeta contemporâneo deve se sentir em mergulhar no escuro do contemporâneo para encontrar possibilidades, desviar de tantas possibilidades e encontrar a melhor.

Lauro Araújo

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

METRÓPOLE


flutuas
entre o dia
e a noite
mas os passos
apertados
como pingos
dentro da
chuva.

Israel Azevedo 

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Texto de Nathan Queiroz Santos


Tenho certeza que você vai começar a ler esse texto por aqui, mas algum escritor famoso (não me lembro quem) escreveu em algum lugar (não me lembro onde) que não existe começo. Isso foi só um jeito que o homem criou para dar início as coisas como se fosse um pedaço do tempo... Quando se pensa em início, meio e fim. É como mudar o curso de um rio para dar a ele um “novo começo”. Portanto o começo desse texto se inicia agora, algumas linhas depois. Mas na verdade você pode começar a ler por onde quiser, como quiser e quando quiser (isso também foi um escritor famoso que disse) Mudando de assunto, preciso apresentar nesse papel o que entendo por contemporâneo, suceder aqui, uma séria de palavras que façam sentido e cheguem em uma finalidade acadêmica. Sem mais delongas, contemporâneo é tudo aquilo que está no tempo que não é seu tempo. É simples.

Vamos analisar cantores contemporâneos como Amy Winehouse. Amy sentia que nenhuma das músicas de seu tempo a representavam, nada que ela gostasse de ouvir, então Amy criou seu estilo musical totalmente “novo”. Era como ir de contra a tudo que estava sendo produzido e todos os cantores que estavam se lançando. Sabe Lady Gaga? Surgiu com um estilo musical eletrônico. Usava latinhas de cerveja como bob de cabelo e tinha um vestido de carne. Não me lembro de ninguém que fazia algo parecido naquela época. Quando questionada, Lady Gaga afirmou se sentir deslocada na chamada cultura POP. Nunca soubemos ao certo o que de fato caracteriza a indústria do POP music, mas depois que Lady Gaga foi apresentada ao mundo, uma cisão na produção de entretenimento havia sido aberta. Artistas buscavam mais e mais por algo novo e diferente. Porem ser contemporâneo não significa fazer algo novo, isso se chama mudança. Ser contemporâneo é simplesmente lançar um novo olhar a um tempo (espaço) que não parece ser o seu. Agamben afirma que cada pessoa possui o seu “contemporâneo”, ou seja, cada um desenvolve (ou não) o seu contemporâneo em seu tempo particular.

E dentro da literatura, como se desenvolve o contemporâneo? Acredito que quando um autor se arrisca em produzir algo diferente, escrever sobre temas utópicos ou até mesmo refazer algo canônico para que tenha uma nova roupagem. Pedro Gabriel, escritor brasileiro, publicou três livros de poesias, ambos escritos em pedaços de guardanapo durante um chope e outro na mesa do bar. Em sua escrita, ele brinca com a língua portuguesa e mistura sentimentos ortográficos.

Você já tocou o mar, Antônio? Parece uma imensa página líquida. Onde, imediatamente, tudo se apaga. Onde, definitivamente, nada é permanente. Os poetas mais ousados já abandonaram o papel faz tempo. Agora, usam o curso das águas para reviver suas angústias. Eu me chamo Antônio, mas poderia me chamar Esperança. Eu me chamo Antônio, mas poderia me chamar Ausência. Eu me chamo Antônio, mas poderia me chamar Saudade. Coragem. Amor. Distância. Qualquer sentimento que tenha a força para libertar minha poesia. Quem contempla o espaço tenta, na verdade, decifrar um poema que ainda não existe. Um poema que ainda espera a sua imaginação para poder realmente existir. Um poema que ainda espera os seus olhos para poder ser lido. Um poema que ainda espera as suas mãos para poder ser escrito. Escrever nada mais é do que juntar estrelas. É preciso mudar a nossa forma de enxergar o mundo. É preciso encarar o céu com a certeza de que cada estrela é uma palavra dentro de um imenso dicionário invisível ao olho humano.

Aqui eu dei o nome de fim.

Nathan Queiroz Santos

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Bicho papão


Pegue, abuse, deseje. Deseje mais um pouco, inspire, lembre-se de respirar. Sinta, mas com muita vontade de se apegar. Uma receita simples. Alguns se arriscam a dizer que até mesmo deplorável, e o que o homem pode dizer no quesito sentir? E pensava repetidamente na vontade louca de tocar e sentir. Pareciam tão antagônicos para mim a essas alturas. Não posso dizer com 100% de certeza, mas respirava esse ar de maré vazia e debruçava meu corpo numa posição dos primórdios do meu ser, a posição fetal. Sentia-me um dos milhões de grãos de areia na praia, mas definitivamente não me sentia como as ondas que iam e vinham.

Havia chegado àquele lugar ainda cedo, as horas se aproximavam das 9 da manhã. O canto dos pássaros ainda ecoava por algum lugar ao redor. Um feriado. Deveria gostar, porém, essa sensação de monotonia se mostrara oposto ao meu ser. O que fazer? Pensava eu inconformado.

Observava como um estudioso os corpos que naquela praia desfrutavam o que a sociedade autodenominou de feriado. Uma espécie de banho de sol para quem passava seis dias da semana encarcerado em qualquer que seja o seu papel social.  Eu? Me perguntava:  E eu? Nessa altura, sequer sabia onde esse pronome se encaixava no jogo do bicho. Tentava nesse exato momento surripiar o máximo de sol possível das peles das pessoas. Posso com isso me auto intitular de patético, ou ainda, me autodescrever como solitário. Nesse exato momento, estava deitado sobre a areia analisando os encontros familiares de forma ávida. Corpos, e mais corpos. Corpos maiores, corpos menores, corpos genéricos de feminino e masculinos. Eram diferentes corpos bronzeados.

Encarava intensamente, nesse instante, a sombra ensolarada dos coqueiros. E assim como os corpos, em algum momento, a desejava. Mas, insistia em me autoflagelar. Estava me punido por não aproveitar meu único dia de banho de luz por semanas. Sentia-me como um viciado querendo ser tocado pelas mãos do sol, ansiando pelo abraço da areia. E encarava profundamente minha necessidade de afeto, como copos d’água. Por isso, agora fechava os olhos e pensava no som das ondas. Pegue, sinta, respire, deseje, relaxe, goze, sinta mais uma vez, cobice, queira, amor? Fogo, água, suor, transpiração, o toque. Era minha programação. Estava estranhamente programado para a afetividade de querer e ser querido, tocar e ser tocado, devorar e ser devorado, amar e ser amado. Estava numa sensação de suspensão de atividades, mas não de pensamentos.

A maré enchia, e vazava, enchia e vazava. Imaginava nesse momento que talvez fosse um livro de capa dura que ninguém quisesse ler. E, nesse momento, fazia reflexões sobre o passado, o contínuo do contínuo, do contínuo do amanhã. E como no amanhã iria vender minha alma, e não só minha alma, como também minhas ações. Pensava que se vender ao diabo talvez fosse melhor do que se vender aos homens. E nessa mistura horrenda de pesadelos da vida real que assombra qualquer homem moderno, fui levado por aquelas ondas do invisível. Imaginava agora mais uma vez os corpos nada dóceis, enquadrados em pedaços mórbidos de panos. Visualizando peças íntimas. Todos escondiam o que todos podiam em algum momento ver. Eram corpos de sonhos e vergonhas sem sentido. Eram copos d’água vazios.

...

Eu, nesse momento me encontrava sendo cobiçado e não mais cobiçando. A presa no lugar do caçador. Fêmeas me encaravam, e como justificativa estava o fato de devolver esse apetite de curiosidade. E não só devoravam meus olhos. Devoravam minhas pernas, braços, tronco e falo.  Machos, que se diziam machos, mas seu instinto animal e fome, também me devoravam. Encontrava-me jogado aos leões. Estava próximo das 4 horas da tarde, e a ansiedade corroia por detrás dos meus pensamentos afogados.

Os machos daquele lugar eram animais muito ousados. E não pensem que era espécie diferente das fêmeas. Eramda mesma espécie, mas com desejos divergentes. Os machos transmitiam uma ferocidade de dominação. E por falar em dominação, o interessante de dominar, não é o fato de subjugar o outro, mas de se sentir soberano entre outros machos. Alguns machos não querem devorar somente a pele, querem sentir o prazer de encurralar a presa. E agora essa presa era eu. Ou era o contrário, mas logicamente quando se ouve o elogio mais constrangedor do mercado:

-Belas pernas.

Esse instinto de querer devorar se dispersa, dando espaço ao ciclo de vingança dos Tupinambás: mesmo sendo devorado, os meus irão vingar-me.Nessas alturas, quem seriam os meus? Estava eu só, só num feriado, tentando ser querido pelo sol e aparentemente pelos meus iguais.Contudo, o fato de não me deixar abater, me tornara o animal mais respeitoso naquele reino feroz. Não queriam me devorar porque me parecia com uma presa, mas sim porque queriam o prazer de saciar sua fome e saciar seus desejos. Esse ato foi nomeado pelos brancos de canibalismo.

Ao tentar entender o mecanismo de funcionamento do canibalismo, fez com que me sentisse o gentio menos importante da redondeza. O que me levou a ignorar a vozdesse caçador. Porém, as fêmeas caçavam de uma forma diferente. Essas fêmeas eram silenciosas. Eram as leoas mais perigosas do reino animal. Elas tentavam me abocanhar na cruzada de suas pernas. E eram bocas extremamente perigosas! Não existia profundidade para seu apetite. Assim como eu, elas eram antropofágicas de sentimentos.Tinham um apetite tão afetivo que procuravam por meio da antropofagia, a procriação. E, por esse apetite elas se utilizam das artimanhas mais sórdidas possíveis, como: o aroma, a pintura, o olhar. São as caçadoras mais eximes que já tinha visto. Desse modo, agora estava exausto do ato de fugir por essas selvas psicológicas.Então,também as ignorava.

O sol agora se afastava do seu cume. E nos acalentava com doces lágrimas de adeus. Corpos, corpos nada dóceis se despediam.E o desejo, vontade, querer não querendo, afago, o toque, aqui ficava. Eu era um antropofagistade afeto. Um devorador de sentimentos. Devorava os sentimentos para eles nunca morrerem, mas que se sentia acuado quando a presa demonstrava a mim, seu interesse pela minha carne para simplesmente matar sua fome. E nesse jogo de pensamento o meu primeiro caçador decidiu insistir:

- Belas pernas.

O pensamento ainda astuto se mantinha, e como resultado o corpo se mantinha indiferente exigindo a fuga como resposta. Tentava me afastar fisicamente daquele macho. O que o meu pensamento não contava era com o ditado que diz: “Quem cala consente”.

As lágrimas de despedida do sol eram muito mais frias que as minhas. E o toque da areia muito mais enfermo que o meu. Fui debruçado abruptamente sobre a areia, as ondas nesse momento, eram minhas testemunhas. Não havia percebido a estatura do meu caçador. Homem de aproximadamente 1,90m, com seus 90 kg bem torneados. Seu hálito alcoólico, sua barba por fazer e sua sunga branca cheia por prazer, sua pele que almejou o sol tanto quanto a minha pele, um canibal nato, um antropólogo branco inexperiente, um animal de aparentemente 26 anos. Com grandes e profundos olhos famintos.

A mente gritava como meu corpo. Em instantes estava despido de uma forma dolorida. O pensamento de caos me atravessava, sentia-me dolorido, envergonhado, confundia essa vergonha com a culpa de me deixar ser violado. Arfava contra vontade, a consciência se pareceu turva. O corpo não deixava de lutar, quando seu músculo rígido, forçosamente adentrou por entre minhas entranhas no mais íntimo do ego. A dor atravessava por entre minhas pernas, a dor atravessa por entre o meu eu, um eu que não mais importava uma singularidade, que não mais interessava a vida e nem a ninguém. Acreditei nesse momento rogar intensamente a Deus uma súplica de ajuda. Um Deus que não me atendeu, nem rogou por mim.Quando meus pensamentos atravessavam as minhas lágrimas e gemidos doloridos: O antropofágico de afetivo vira presa do antropólogo canibal; corposchoram, sentem e são violados. Quando fui preenchido em meio ao vazio.

...

O tempo não mais passava. Só havia a sonoridade das ondas e o respirar pesado do meu caçador. O ar pesava sobre nossos corpos, ou melhor, sobre o corpo dele e sobre mim um copo d’água vazio. Seu membro agora flácido se recolhia do aconchego do meu eu. E num movimento relativamente rápido, se lançou ao lado, arfando de cansaço, resolvendo depois de instantes, acomodar-se melhor e sentar-se de frente ao meu corpo, que estava parado e estaticamente tremulo.

O meu caçador agora estava aliviado. E agradecia aos deuses por seu desejo saciado. Quanto a mim? Envergonhado tateava o estrago que fora feito ao meu ego. Via nesse momento em minha mão uma mistura de líquidos, o esperma, o sangue e sentia a dor de estar vazio. Quando meu caçador pouco a pouco recobrara o mínimo de sanidade. Ele me encarava como se desejasse garantir o estrago. De repente, pude adivinhar o que nesse exato momento passava pela sua mente, pelo seu olhar malicioso.  Meu caçador me analisava: homem negro, ou será um adolescente com ascendência indígena? Aparentava ter 15 anos, ainda possuía o olhar de pureza e aquele ar de ousadia, deveria ter seus 1,64 m e pesar uns 61 kg. De fato esse era eu. Morava próximo àquela praia e por ter crescido naquela região, os meus pais não tinham medo de deixar-me ir à praia só.

Meu caçador demonstrava uma camaradagem de só quem é conterrâneo pode sentir. Só quem mora no mesmo país, estado, cidade e vizinhança podem sentir. Aquele macho era um amicíssimo de minha então intitulada família, era o irmão que minha mãenão tinha, ele agora era o que a racionalidade jamais deveria expressar. Ele demonstrava uma felicidade de criança pura por detrás daquele sorriso torto. Era um desejo que existia hámuito tempo e foi reprimido, era uma fome subversiva, era a vontade de quem estava cheio e queria muito mais, era a gula.

Estava petrificado, quando me atormentou uma sensação de lembrança muito nítida para isola-la. Lembro-mebem, ele esteve nas minhas festas de aniversário desde sua chegada ao meu bairro, ele ria, brincava, bebia e bradava cantigas de parabéns. Cumprimentou-me com sua família diversas vezes. Uma fêmea branca infeliz, que não sabia mais o que era ser desejada. E um filhote que muito se parecia com a mãe, embora, também fosse filhote daquele macho. Ele tinha o olhar tão triste e sofrido quanto o da mãe. Assim como eu, ele agora deveria ter 15 anos. Aquele filhote meu Deus, era brasileiro que nem eu! Ele estava vazio como estou agora, ele era apático como sou agora, ela era tudo o que em instantes me tornei.E então desmanchei por entre aquela memória, a ânsia de vomitar a minha dor era inevitável. A voz falhou novamente, me sentia imundo. Quando voltei todo meu corpo àquele macho. Fixei meu olhar para o olhar obscuro daquele animal. E assim como eu, ele teve certeza do que se passava pela minha mente.

...

Após me dar conta, um arrepio gritava por entre meu dorso. O suor tão gélido quanto podia ser, escorria. O frio das mínimas gotículas de chuva demonstrava a afetividade térmica entre minha pele e suas gotas. O sangue ainda emanava por entre minhas pernas misturado com aquele líquido branco que, agora aparentava estar mais ralo e transparente. Não tinha força para me mexer. Todo meu corpo tremia por conta da violência. Eolhando para meu caçador, senti um afeto sombrio, o tipo de afeto que só quem é violado sabe bem. O pior ainda estava por vir.

Meu caçador de forma ávida se põe sobre mim, vira-me para encara-lo bem. Roga frases tão ternas quanto uma carta sem sentido de um suicida. Com as mãos sobre meu pescoço, apertava-me de uma forma tão poética quanto aquele local: Areia alva, coqueiros um pouco acima como se anunciassem a fronteira da praia com a terra firme. Maré vazante, céu crepuscular, uma nuvem de chuva passageira que insistia em dissipar as pessoas para longe daquele local, o sol nos acalentando de um calor que só podemos comparar ao amor de uma mãe para com seu filho. E um arco-íris bem acima do meu caçador que parecia sorrir para mim por entre suas cores, como o de meu pai, dado a mim ao nascer.  E ao fundo, tocava o soneto das ondas vindo e indo. Definitivamente, não me sentia como aquelas ondas que se moviam livremente, me sentia como uma pedra estanque e sem vida. O meu caçador de forma performática recitava, escarrava o típico hino nacional que parecia falar de outroanimal.

-Você gostou viadinho! Você gostou!

Sentia por entre meu pranto, o veemente ardor que invadia o meu pulmão pela falta de ar. Tentava balbuciar palavras, mas sufocava-me pela falta de singularidade. Sentia cada toque daqueles dedos, a interseção entre o polegar e o indicadora sonegar-me a tão cobiçada liberdade, e seus dedos que almejavam tocar-mecom a mesma concretude de só quem ama pode fazer. Nesse momento, entendia o que era o amor. Ao mesmo tempo em que seus dedos me arranhavam e tinham a intenção de quebrar o meu pescoço. E, nesse momento, entendi o que era querer algo. E então peguei fortemente os braços daquele macho enquanto afundava na areia daquela praia. Mas, já nada mais podia fazer. O encarava não mais por medo. Era doloroso ser querido, era doloroso ser querido, era doloroso ser querido e não poder querer.

Eu o encarava por querer que seu ato de carinho acabasse. Pouco a pouco, senti um sono leve. O doce e peculiar aroma do nada a gritar horrores em minha mente. Larguei carinhosamente aqueles braços. Senti uma pressão enorme dentro do meu crânio, senti meus olhos estufarem, senti a dor de estar sendo amado. Meu pulmão e coração doíam de uma maneira única, jamais havia sentido tal dor. O sangue ainda escorria pelo meu orifício anal. Urinei-me como um recém-nascido que não sabia o que era urinar, chorei a última lágrima silenciosamente. Quando por fim...

...

Acordei aos prantos e berros. Minha mãe adentrou por entre meu quarto em busca de uma explicação.

- O que foi meu filho?
- Nada mamãe. Outro pesadelo!
- Você anda tendo muitos pesadelos! Também, fica nesse quarto assistindo filmes de monstros, de bicho Papão. (risos).

Calado assenti enquanto enxergava meu pai a analisar-me. O olhar era malicioso. Como em meu sonho, gostaria que esses atos de amor fossem corriqueiros. Infelizmente não era um adolescente, não podia lutar. Tinha 10 anos e, desde os meus 8 anos, papai brinca comigo de marido e mulher, segundo ele. Como dizer para mamãe que o bicho papão eu chamo todo dia de papai?

Juan Messias

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

[invencionistas]


os homens inventaram o relógio para marcar os minutos
de sua infeliz existência

como não tinham onde guardar os relógios que inventavam
nem os outros objetos que gananciosamente viriam a acumular
sob o apelido de propriedade privada
os homens inventaram o bolso

os bolsos, porém, eram pequenos pra caber tantos objetos
além do mais
como davam de esquecer a forma dos objetos
e a dimensão de sua miséria
os homens inventaram a fotografia
assim, poderiam carregar a memória no bolso
e nunca mais esquecer como são tolos seus objetos
e como seus sorrisos são falsos
e vazios.

Yuri Westermann

cordélia


lua minguante,
peito fechado sem cor.
para além dos idos de março
chega abril
e com ele a ganância de regan e goneril.

lua cheia,
peito aberto, cor rubra.
para além da palavra
que não se alcança
e da noite que não se vela,
deixa-me recostar no seio
brando de cordélia.

convocada a falar
não pode, no entanto,
o que bem entende.
somente ao que o dragão,
velho e quase insano, contente.

um terço do reino
seu pai lhe deseja ofertar
em troca de palavras graciosas 
que se diluam no ar.
mas como levar à boca o coração?

o verbo se cala
e prêmio não há.
o velho tolo arranca de si
a mais bela flor de seu jardim
cabe à natureza se rebelar.

lua nova,
peito desperto.
viagem para além dos pontos cardeais.
depois do arrependimento
na cela engradeada.
o assassinato feito pelo soldado de palavra.

vivência desfeita daquela que era,
entre todas, a mais bela.
quando a chuva parar,
deixa-me navegar
na cordialidade do
peito aberto de cordélia.

a corda cala cordélia.
de voz suave e vagarosa o coração
agora já não se pode escutar.

“ao peso desta hora triste
devemos nos curvar.
dizer o que sentimos, não
o que queremos falar.
mais do que nós jovens, coube ao
velho sofrer.
nunca teremos tanto, nem tanto
iremos viver”.

William Soares dos Santos

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Visões da Meia-Noite


Nessas ermas alturas tão sombrosas
Vaga a lua soturna que me encanta,
Tal se fosse o cadáver de uma santa
Envolvido por brumas lutuosas.

Nessas noites de trevas suspirosas,
A minh'alma — extasiada — se levanta,
Para olhar essa lua que abrilhanta,
Transmutando-se em formas curiosas.

E parece um errante cisne branco...
Embalado, perdido sobre o flanco,
Pelas águas de um lago; tão sem norte...

Vaga a lua... Tristonha senhorita!
Qual um olho envolvente que me fita,
O olho imenso e fatídico da morte!

Derek S. Castro

sábado, 3 de fevereiro de 2018

Abril


escuto o som da motosserra elétrica
que o meu peito serra
escudo de osso que a serra serra
e faz barulho.

pó no ar

devia eu escutar essa lâmina dentada
que ausculta meu coração?
minhas costas coçam mas como
irei coçá-las?

jesus na cruz

atadas as minhas mãos estão
vejo o sangue que entra e sai
a serra ausculta e vasculha
a alma dói

tudo preto

algo tilinta dentro, eles colocam
minhas costelas no lugar
algo brilha dentro e não
são os arames

escuto um vulto

uma máquina de costura costura
e eu sobre a gelada mesa de
dissecação durmo. Pombas se
acidentam na janela.

estou vivo.

Josué Ralo

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Dias cinzentos


Nos dias cinzentos me perco no caos da minha mente. Meus pensamentos são como as águas: Ora serenos, como as de um lago. Ora devastadores como um furioso mar. O que importa, de verdade, pra mim, é o cansaço mental que me leva ao sono e que, também, me tira o sono. São ideias em construção, pensamentos soltos, palavras a serem pronunciadas, dúvidas, um barco à deriva... Calmaria pra mim é tão somente o intervalo entre uma tempestade e outra. E tempestade, é a parte essencial do caos criador. A paz não cria. A paz é o momento após a criação. A paz é o descanso. O caos é o incômodo, a discordância, a ação que proporciona a criação. Penso que sabedoria é dúvida e certeza é ignorância. Penso novamente, repenso, escrevo, apago, caos, criação, certeza, dúvida, crença, descrença, desconfio. Cansei. É desgastante. Mas não importa. O que me importa, nesse momento, e tão somente agora, é o silêncio barulhento e criador da minha mente.

Tadeu Goes

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Reinvenções poéticas pelo humor


Estamos, aqui, convidados para um banquete. Recomendaram-nos ler poemas e preparar falas sobre nossas leituras. Este contraponto entre comida e palavras lembra a estratégia do filósofo Gilles Deleuze de discutir a “lógica do sentido”, explorando a dualidade corpos / linguagem. Conforme a história da filosofia, os antigos serviram-se dos elementos materiais para instrumentalizar o pensamento, prenderam-se à profundidade, onde os corpos se transformam e se afetam uns aos outros: Heráclito formulou o conceito de tempo observando o movimento da água; já Parmênides inspirou-se na terra e no fogo como causa principal na constituição do cosmos. Numa etapa mais sofisticada do ato de conhecer, quando se desejou distinguir o mythos do logos, Platão empreendeu o movimento ascensional e determinou que os significados se prendessem às ideias transcendentes, de que os corpos do mundo não passavam de cópias. Por seu turno, os sofistas – em particular, os estóicos – empreenderam aventura mais arriscada, experimentaram a superfície como espaço da operação da doação de sentido. Trataram suas elocubrações como “acontecimentos”, resultados de gestos deslizantes, na linha horizontal que limita, abaixo, os seres corpóreos, e acima, a linguagem, formada de extra-seres incorpóreos. Nessa linha estreita e instigante, é que Deleuze surpreende o “sentido”, resultado paradoxal de quase-causas que, negando as operações da profundidade (designação e manifestação) e da altura (significação), afirmam o sentido. Para tornar contemporâneo esse legado epistemológico dos antigos, Deleuze evoca poetas modernos às voltas com as “séries da oralidade”—comer / falar. De um lado, traz Artaud, preso às profundezas do corpo, escrevendo como se mastigasse as palavras. De outro, considera Lewis Carroll, que trouxe suas personagens fantásticas para a superfície do espelho. Aí, não há devoração nem transformações. O nonsense da superfície constrói-se na reversibilidade das direções e na simultaneidade dos tempos.

Imagino que os jovens poetas, reunidos neste “banquete experimental”, mesmo que não radicalizem sua relação com a tradição poética, nem se dediquem aos jogos de questionamento das significações estabelecidas, pratiquem os exercícios do humor, resistindo às agressões sombrias do presente.Vou-me arriscar propondo minha leitura de trechos escolhidos de alguns deles.

Interessado em escapar das convenções do senso comum e do bom senso, Lucas Matos também se dedica à invenção poética e performatiza a dualidade falar-comer:
                       
em pedaços
[...]
CONVIDEI UM PAR de amigos para o almoço
comprei berinjelas batatas
baroas para o purê pimentões
gengibre abóbora chegaram
enquanto eu ainda estava
na cozinha mãos de cebola e alho
ele trouxe um kiwi congelado
para suco ou sorvete os dois
ficaram na cozinha sentados
no chão ou debruçados na parede
conversando enquanto eu
terminava então fui tomar
banho depois comemos na sala
[...]
foi que ele lembrou
da história do avô de uma
amiga da amiga
que sem ter com
quem conversar telefonava
para serviços de atendimento
ao cliente para reclamar
de coisas como o aumento
do preço do pacote de pão
[...]
comemos bis e tentamos
tomar o suco de kiwi na hora
da sobremesa quando eles se
foram já estava escuro
e tinha muita louça para lavar

(Matos, junho 2017, p. 29, 30)

Não se pode dizer que a amostra dos “pedaços” de poesia, tratando de comida e conversa, seja tão atraída pelas vísceras profundas que chegue a mastigar as palavras. No entanto, sem que tenha suprimido letras ou insistido em sons guturais, o leitor do poema é captado, inevitavelmente, por sua materialidade. O corte dos versos insiste no atropelo da sintaxe e separa sujeito de verbo, adjetivo de substantivo, verbo de complemento. Aqui, a aparente experiência de tratar o banal com a solenidade da arte desenvolve o procedimento ambíguo de desafiar a gramática, mesmo usando ordem direta e obedecendo aos regimes nominais e verbais. O coloquial mais rasteiro se complexifica, em estranhamento, impedindo que o poema aconteça apenas oralmente. Sua inscrição na página torna-se obrigatória. O leitor é conduzido, até quase a vertigem (o poema é longo), do fundamento material, onde os tipos se inscrevem na página, para as alturas da significação, que os grupos de letras produzem. Em voz alta ou silenciosamente, a leitura exige saltos constantes, tornando inviável a suposta tranquilidade de uma conversa durante o almoço e demonstrando, na prática, a impossibilidade de que as relações verbais se processem inconscientemente como a digestão. Assim, revela-se, tão sub-reptíciaquanto perigosa, a distância entre o corpo e a linguagem, entre a designação e a expressão. O rigor cruel da construção do poema fica patente na justaposição dos “pedaços” de que se compõe: a conversa afável dos amigos que se visitam, trocando gentilezas, é desmentida pelo assunto de que tratam. A troca de mensagens, levando ou não a consequências positivas, só se dá em situações previstas pela lei ou pelos interesses comerciais. A escuta atenta, que se espera, ao invés  de uma tendência afetiva, vem de uma previsão mecânica num texto decorado por um profissional. Atento às tecnologias características do presente, Lucas Matos percebe que o humor negro independe de monstros violentos. Ao contrário, surge, veemente e necessário, nas circunstâncias mais comuns, nas frases mais diretas, completas e corriqueiras.

No mesmo volume 2 dos Cadernos do CEP, Ana Carolina Assis usa estratégias composicionais bem mais complicadas com o objetivo paralelo de experimentar a tensão entre os corpos e a linguagem. Com um título em feminino -- “Mariana” -- que tanto pode nomear uma menina ou uma mulher como um local no campo ou na cidade, vai traçando uma cena familiar e surreal. Seu exercício poético fascina e ameaça. É um poema “em pânico”. E foi o próprio Murilo Mendes que garantiu: “o pânico é muitas vezes necessário” (Mendes, 2010, p. 37). 

Mariana
a criança
olhos de gafanhoto
                             água às vezes deixa um cheiro de
bicho nas coisas
carne pouca pra tanto lodo
                         bicho – água que escorre dentro d’água
a garganta
groselha rala das lancheiras
                            caramelo viscoso de rio
surpresa crosta das cartilhas
                               estufado piso e farpa dos móveis
as coxas – malha puída de nova
que uma barba crespa
rasga
e carrega nos ombros

parecem bombas a mãe dizia

parecem bombas de sucção a mãe dizia
os ralos regurgitando carne e atraso pros jantares
devolvendo a gelatina das coisas
exigindo dos tijolos o que eles não tinham
parecem sangue do meu sangue a mãe dizia

(Assis, junho 2017, p.6,7)

O vocabulário escolhido para compor a cena remete, sem dúvida, à profundidade dos corpos. As frases – ora quebradas em versos muito curtos, ora encadeando-se em versos longos – indicam invasões, contaminações. Predominam elementos líquidos ou pastosos que levam ao apodrecimento, à decadência. O ambiente turvo contrasta com a (possível) vitalidade da personagem – “criança”. No entanto, seus objetos escolares (“lancheira”, “cartilhas”) estão à beira de deteriorar-se na umidade reinante. Até a proximidade entre os corpos humanos mostra-se agressiva: as “coxas”, a “malha” se rasgam em contato com a “barba crespa”. Sílabas iniciadas por gutural espalham-se pelo poema, assim como as matérias viscosas (“caramelo”, “gelatina”, “sangue”) se insinuam por entre os sólidos. Esse espaço, tanto quanto a criança que vive nele com sua família, enfrentam o perigo do atolamento ou da sucção. Em sua crueza, a vida é uma ameaça.

O atropelo das imagens, que compõem o movimento das cenas, evoca o não senso das entranhas, da profundidade. No entanto, o corte e a distribuição dos versos na página não desfiguram as expressões aí inscritas. Também, diferente do que se espera, as indicações de tempo, em conjunto, fogem a qualquer cronologia, por isso, subvertem o processo das evoluções ou involuções.Coincidem, inesperadamente, o tempo do apodrecimento das partes da casa com o tempo da rotina familiar – a ida para a escola, os “jantares” –, como se ações e paixões surgissem em ritmo de “devir louco”. O contraste, evidente, entre os movimentos no espaço e o tempo das personagens parece deslocar o poema das indistinções profundas às singularidades deslizantes da superfície. Assim, poder-se-ia captar a instauração de efeitos paradoxais que resultam em humor. O pathos trágico reverte-se em apreensão crítica.

Trabalho artístico equivalente, onde as séries da oralidade – comer / falar –,’ parecendo tendentes à predominância da primeira, acabam mostrando deslocamentos entre uma e outra, encontra-se em poema assinado por Rafael Zacca, no 1º volume dos Cadernos do CEP:

tarda
Uma barca leva uma pedra
ou um sol de flores engastadas
em poeira
sobre a pele oleosa

um aceno       
como sabão das crianças
em tardes
de primavera a primeira

apenas uma

pedra

que se abre

dura lembrança das crianças que abrem
cocos e lambuzam já não se sabe
se o queixo ou as mãos
pequenas.

Amargo é retornar
a gordura à boca

mas não seriam
amargos
os poemas de
agora postos
sobre a mesa e as conversas

meladas
como amoras
na boca.

(Zacca, maio 2017, p. 24, 25)

Tão distante da coloquialidade cotidiana quanto a escrita de Ana Carolina, esta experiência artística também se produz em certo clima solene e desconfortável. Desenha frases que se aproximam da textura incômoda dos corpos em busca do prazer eventualmente possível na prática da poesia. Embora sem polarizar os dois espaços – o que se poderia tomar como a significação sublime da arte, em oposição à designação dos corpos com suas vísceras profundas --, o poema se desloca entre um e outro, a partir da perspectiva do tempo. O emprego de uma forma verbal como título constitui procedimento incomume sugere uma leitura atenta ao que escapa às convenções. Sendo assim, a cronologia -- dependente das significações estabelecidas -- cede lugar à materialidade do vocábulo “tarda”, desencadeador de assonâncias: as vogais abertas (‘tarda’, ‘barca’, ‘leva’, ‘pedra’, ‘sol’, ‘engastadas’), que, ao longo do texto, retornam em alternância com vogais fechadas e nasais. Paralelamente, as aliterações (em dentais, bilabiais e sibilantes) compõem uma imagem sonora potente, superposta às imagens visuais propostas pela articulação – marcadamente surrealista – entre os significados do vocabulário empregado. Parece que a superposição das imagens sonoras -- reforçadas pela distribuição gráfica da página – às imagens plásticas opera o duplo movimento de descida das formas estéticas ideais e de subida dos sons e texturas pegajosas (oleosidade, ‘poeira’, consistência ‘melada’ que ‘lambuza’), instalando a escrita na superfície. Pode-se, então, perceber, na reiteração do signo “crianças” --com suas conotações de ‘jogo’ e ‘brincadeira’ -- um deslizamento, alegre e cruel, entre o gosto (amargo, gorduroso), que sobe das entranhas à boca, e as “lembranças”, “poemas” e “conversas”, lançados “sobre a mesa”. Seguindo a orientação deleuziana, para além dos efeitos trágicos ou irônicos, esse deslizamento na superfície produz o humor paradoxal. Se os efeitos desse jogo intrincado ‘tardam’, é porque se mostram extemporâneos.

Ainda no 1º volume dos Cadernos do CEP, Maria Isabel Iorio inclui uma releitura –  em homenagem? como paródia para descarte? num retorno desviante? – de um clássico drummondiano do humor modernista:

virilha

João era Teresa que era Raimundo
que era Maria que era Joaquim que era Lili
que não era ninguém.

João foi para os Estados Unidos, Teresa para as estatísticas,
Raimundo morreu de pancada, Maria ficou para a fila,
Joaquim suicidou-se e Lili ainda é chamada de
J. Pinto Fernandes como toda essa gente que não entra na
História.

(Iorio, maio, 2017, p. 19)

Apresentando-se como estratégia experimental distante de “Mariana” e “tarda” – escritas de um humor fantástico, que investe contra o real histórico por meio de um tenso contraste crítico --, “virilha” tende a aproximar-se de “em pedaços”, radicalizando o emprego do coloquial através da repetição em diferença de um texto antológico, que qualquer leitor é capaz de reconhecer. Se Drummond parodiava a lírica romântica, num gesto, que hoje nos soa como simples inversão, Maria Isabel Iorio é, possivelmente, mais séria e desabusada, pois homenageia o mestre subvertendo suas referências ético-sociais. Se, no contemporâneo, acirram-se as questões de gênero, etnia, identidade e pertencimento a uma nacionalidade, o novo poema afirma que não se trata mais de uma “quadrilha”, onde se troca de par, mas de uma virada mais complexa. O título “virilha” aponta para significados múltiplos: parte do corpo geralmente sexualizada, reversão sem objetivo definido, devir constante em lugar de metamorfose ou até mesmo (com grafia ligeiramente modificada) uma das combinações de sílabas que, a certa altura, nomearam a personagem de “Desenredo” de Guimarães Rosa, aquela que mudava de amores e se mostrava outra a cada parágrafo da estória. Enquanto as vanguardas exigiam liberdade de escolha e ampliação do conceito de arte, a violência do cotidiano atual, nos vários níveis de relações, exige que se flexibilizem os critérios de identificação e se reivindiquem serviços públicos e visibilidade para os habitantes das diferentes margens. Os traços irônicos, que eventualmente ainda restassem na “Quadrilha” moderna, foram ‘virados’ no humor cruel, onde as histórias (estórias) se confundem com a “História”.

Na Lógica do sentido, que me serviu de referência, buscam-se linhas de fuga à tradição do pensamento ocidental. Por isso mesmo, seu interesse se volta para o “humor”, distinto da “ironia”,trabalhada pela escrita dos filósofos canônicos. Em suas  três versões – socrática, clássica e romântica --, a “ironia” volta-se para as alturas transcendentes (em contraponto à profundidade dos corpos), apegada, em cada período, a uma das dimensões da proposição: significação, designação e manifestação. Escapa a esta linhagem o “sábio estóico”, que empreende a “dupla destituição da altura e da profundidade em proveito da superfície”. “[...] mais tarde e em outro contexto”, pode-se acompanhar a trajetória do Zen “—contra as profundidades bramânicas e as altitudes búdicas. Os célebres problemas-provas, as perguntas-respostas, os koan, demonstram o absurdo das significações, mostram o não-senso das designações” (Deleuze, 1974, p. 139). Companheiro do sábio estóico e do cultor do Zen, o poeta – especialmente desde Mallarmé – também empreende ascensões e descidas em direção à “superfície” da linguagem, onde acontece a “aventura do humor”.


Referências:

ASSIS, Ana Carolina de. “Mariana”. In: CHACAL, DIBLASI, I., KLIEN, J., LAMPREIA, S.  Cadernos do CEP, v. 2, Rio de Janeiro, junho de 2017.
DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, 1974.
DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1967.
IORIO, Maria Isabel. “virilha”. In: CHACAL, DIBLASI, I., KLIEN, J., LAMPREIA, S. Cadernos do CEP, v. 1, Rio de Janeiro, maio de 2017.
MATOS, Lucas. ”em pedaços”. In: CHACAL, DIBLASI, I., KLIEN, J., LAMPREIA, S. Cadernos do CEP, v. 2. Rio de Janeiro, junho de 2017.
MENDES, Murilo. In: LIMA, Jorge de. A pintura em pânico; fotomontagens. Rio de Janeiro: Caixa Cultural, 2010.
ZACCA, Rafael. “tarda”. In: CHACAL, DIBLASI, I., KLIEN, J., LAMPREIA, S. cadernos do CEP, v. 1, Rio de Janeiro, maio de 2017.