segunda-feira, 18 de março de 2024

Um poema de Clara de Góes


Quando o mar sossegar
e as ondas se cobrirem de silêncio,
restará essa tristeza de pedra,
loucura submersa
de ser.

Clara de Góes

domingo, 17 de março de 2024

A rosa do tempo


a rosa do tempo
(a palha sob os frutos)
despetalou quase tudo.

como uma flor que urina
suas próprias pétalas no final da tarde
em busca das cercanias do sonhado.

assim como um elemento casual
é fruto e sêmen para o poema.


Rogério Batalha

sábado, 16 de março de 2024

Um poema de Mariana Junqueira Pedras


Não sou poeta nem escritora
Mas já que a vovó quer presente
Venho aqui como impostora

Essa história começou a muito tempo atrás
Como se diz por aí “once upon a time”
Um vovô que ainda não era avô, mas muito audaz
Enamorou-se por uma linda jovem hoje vovó, “just in time”

Papo vai, papo vem... chegou o grande dia
Estavam todos lá ouvindo a melodia
(tocar marcha nupcial)

E numa tarde ensolarada
Na maternidade lotada
A filhinha muito esperada
Chegou para animar a primarada

A vida foi vivendo
E do Rio saíram correndo
Numa terra muito distante
Mais uma vez a vovó se fez gestante

Em terras pernambucanas
Nasceu uma menininha arretada que só
Sorridente, alegre e curiosa
Logo se tornou a gloriosa

Mas o vovô não podia ser o único a reinar
E no Figueiredo em aceleramento, veio a notícia para comemorar
Esse Natal não será no Rio! Ficaremos para o nascimento do rebento que vai chegar

O mundo gira
E uma grande oportunidade apareceu!
Morar mais perto dos bivós...
BH, aqui vamos nós!

Mas cinco ainda era pouco
Vovô e vovó queriam ser avô e avó
Quanto mais netinhos, melhor!

A primeira a nascer foi a primeira a casar
Só que demorou para se concretizar!
Mas a primeira netinha nasceu
Conforme a filhinha prometeu!

Casamento aqui, casamento acolá
Mais dois filhos a cantarolá
A música que não quer calar
(tocar a marcha nupcial)

O tempo foi passando
E nada de netos chegando.
Até que a notícia apareceu.
O segundo netinho nasceu.

E aí? Como vamos ficar?
Só dois netos para alegrar?
Que nada!!! Mais uma netinha chegando
Em terras fluminenses iluminando

A família ainda não estava completa
Vovô e Vovó precisavam de mais uma neta
E a loirinha de olhos claros nasceu!

Como aconteceu lá trás,
O netinho não podia ser o único a reinar
E fechando com chave de ouro
Mais um netinho chegou para alegrar

Agora sim, podemos dizer com certeza
Somos uma família, que fortaleza

E nesse Natal sem presente
Somos o presente e estamos presente!
Que é muito mais legal


Mariana Junqueira Pedras

sexta-feira, 15 de março de 2024

Saideira, de Guilherme Ottoni


Para o amigo Thiago

O último gole acerta a dual vontade
De quem é livre por excesso, e o atira,
Com o achincalhe caro à realidade,
Ao chão de um bar que um dia lhe servira!
Dou esse gole ao fel da honestidade
Para inebriar-me da última mentira,
Mas se por vezes o ímpeto me invade
Deixo queimar a tentação em ira!
Bebo-o. Traio meu próprio livre-arbítrio.
E depois, boiando ao acaso em meu desejo,
Mofo nas lágrimas de um olho vítreo!
Sóbrio, tal apatia não se doma,
Porquanto a Liberdade, como a vejo,
Não se busca ou se pede, só se toma!


Guilherme Ottoni


quinta-feira, 14 de março de 2024

Urgências


Urge a paciência a passos lentos
Urge a guerra na Ucrânia
Urge retroalimentar o crânio
Urge libertar o pássaro
Urge assaltar o avaro
Urgentes indigentes
Urge indiferente, desta ou daquela gente
Passa ferro na minha mente
Fulgor dos unguentos
O que urge e desagua feito onda do mar ou lágrima
Urge a saudade no peito que rebenta
Esta troça não aguento
No teu útero o meu rebento
Filho da Pátria nossa que amamento
E se conclamo a dor derradeira cavalgadura
É que esparramado feito espasmo espirro o gozo na boca tua
Urge para o bem ou para o mal o ânimo
Urge não morrer nem matar o meu irmão eslâmico
Urge em nós o sexo tântrico
Urge a lâmpada
Urge o Vagalume
Urge meu peito roçando o peito teu
Urge o urso hibernando
Urge o último relâmpago
Urge minha sina
O sinal de trânsito
A construção
Urge a infância no futuro
Urge que derrubemos das prisões os muros


Antonio Marcos Abreu de Arruda

quarta-feira, 13 de março de 2024

A noite, de Rogério Batalha


sob o esporão da noite
tu ouves a voz
da tromba d'água.
porque há em ti a noite
(em plena luz do dia).

mas se o sol ainda brilha
por que não persiste
e invade esse breu?

por que
(como um corpo
exumado)
tu não expeles
essa treva?


Rogério Batalha

terça-feira, 12 de março de 2024

para um tema recorrente em bruegel


a propósito da dor | não estavam erradas as pinturas antigas | quase nada mesmo muda | o 
sol se põe e ninguém liga | talvez com algum tempo instaure-se na memória um pouco de bolor | como geleiras que se fundem vagarosamente ao mar | talvez permaneça ainda a experiência do medo | numa confusão mental aguda | mas quase nada mesmo muda | apesar da cabeça embolorada de águas gélidas derretidas | permanece o mesmo o mar | exceto por um minúsculo ícaro alado | a morte triunfante alegre alaúde um ícaro afogado | as minhas pernas para o ar


Larissa Lins

segunda-feira, 11 de março de 2024

Um poema de Leonardo Gandolfi


Cada um, Totó,
tem o Kansas que merece
embora eu ache que
nem estejamos nele mais.

Leonardo Gandolfi

domingo, 10 de março de 2024

Oswald antropófago


como pode
tantas mulheres
todas tão fantásticas
caírem no conto
de um homem que
escreveu de tudo
menos um conto?!


Lucas Viriato 

sábado, 9 de março de 2024

CADERNOS DE GLAUBER E GUIMARÃES ROSA: APROXIMAÇÕES, de Marília Rothier


O conjunto das obras literárias e visuais — legitimadas e circulantes entre o público consumidor — integra, certamente, parte importante do patrimônio de uma cultura. No entanto, esses bens arrolados nos levantamentos imagético-bibliográficos correspondem à parte visível de um acervo muito mais amplo e complexo (responsável, em maior ou menor escala, pela própria existência das obras), acervo apenas sugerido nas fronteiras incertas dos arquivos privados. O fundamento da afirmativa é óbvio: todo produto artístico, ao constituir-se, movimenta um enorme circuito de referências, tensamente articuladas, para consolidar, como novidade digna de divulgação, apenas um número reduzido de signos. Por sua vez, esses signos, constelados em objeto-arte, retiram a intensidade de seu brilho das marcas pouco nítidas, inscritas neles, durante o processo de construção.

Visto da perspectiva descrita, o patrimônio ganha um excedente de valor e nos desafia com sua incalculada riqueza espectral. Encontramo-nos como que diante daquele personagem rosiano de “O recado do morro”, o Coletor, que, fazia crescer suas posses em fazendas e gado, à medida que ia registrando as cifras e somando-as, alucinadamente, nos muros da igreja do arraial. Quando a visada crítica sobre uma obra atravessa-a para ir rastrear as etapas de sua construção, nos proto-registros de seus planos, rascunhos e versões abandonadas, a tarefa empreendida assemelha-se aos cálculos do Coletor. Não lida com quantidades materiais, tesouros palpáveis, mas com um excesso significante fluido, que só reverte em riqueza (nos termos de Oswald de Andrade), no momento em que se deixa prender nas redes do inventário. Num momento, como este, de reunião de certo modo festiva, como foi o caso da missa antecedendo à Congada, cenário das contas desvairadas do Coletor, propõe-se um exame dessa experiência desconcertante mas rentável de compulsar fragmentos do trabalho artístico em meio à documentação de acervos pessoais. É um modo de fazer inventário conjurando fantasmas. Operação inútil, do ponto de vista pragmático, embora altamente lucrativa se o objetivo é duvidar da solidez dos haveres resguardados e buscar outros valores possíveis como lastro da arte-pensamento.

As amostras escolhidas para o exame proposto, no arquivo do escritor Guimarães Rosa, são três cadernos, guardados no Arquivo Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa, em cópia xerox, sem que haja indicação do paradeiro dos originais. Tais cadernos, indicados pelos números 2301, 2303 e 2304, correspondem, sem dúvida, a anotações de estudo, pois alternam citações com registros de palavras e frases, cunhadas pelo autor-leitor, certamente ao longo de pesquisas sobre temas de seu interesse. Pela quantidade e extensão dos trechos citados e pela insistência no experimento com a cunhagem de expressões desautomatizadoras do corriqueiro da linguagem, entende-se que o estudioso operava um levantamento consistente de material informativo e lingüístico que pudesse fundamentar seu trabalho fabulador. Como se, diante do patrimônio herdado, o escritor precisasse reservar uma cota particular para seu uso. Reduplicava, então, em cadernos manuscritos, parcelas especialmente preciosas, garimpadas na riqueza de suas
estantes.

A atividade manual de copiar, exigindo atenção e paciência, certamente o predispunha aos experimentos lingüísticos, imaginados durante a operação mecânica da escrita. Aquele que rastreia um saber, colhido na distância dos sertões, demonstra, através de seus cadernos, uma atitude alternativa à do cientista. Não é o acerto da informação que lhe interessa, mas uma transposição da mesma para outro ponto de vista: o da experiência cotidiana, que se distingue da observação eventual. Enquanto copista  e copista reflexivo  o escritor comporta-se como o ouvinte de estórias, contadas e aprendidas durante o trabalho. A arte narrativa, preparada no preenchimento gradativo das páginas dos cadernos, situa-se em lugar especial, entre o conhecimento formalizado da biblioteca e a tradição oral. Para constituir temário, léxico e sintaxe, apropriados ao mundo concreto (sensorial-afetivo) da arte, é que servem os cadernos de Guimarães Rosa. Por isso, com certeza, preparando suas próprias viagens por trilhas sertanejas ou organizando o material nelas coletado, foi que o escritor foi enchendo páginas e páginas. Assim aprimorava seu método de inventariar os bens de uma cultura em processo de esquecimento, ao mesmo tempo que inventava instrumentos de escrita capazes de manter essa cultura viva, inserindo-a no patrimônio valorizado pelo presente.

Em versão inicial de roteiro, nunca filmado, sobre “Testamento e morte de Dom Quixote”, o manuscrito de Glauber Rocha enumera animais (e partes do corpo de animais), pessoas, paisagens e edifícios (“Moinho de vento / Planície espanhola parada / Travelling aéreo da planície / Touro / Travelling aéreo sobre o palácio / Quixote / Mãos na pele do touro / No chifre do touro”) para situar a personagem, inserindo os quadros desconexos no contexto dos conflitos históricos (“As cabras / Bois / Carneiros / Cobras / Deitado e as mulheres nuas por cima dele enquanto faz os comentários / O pastor com uma camponesa dizendo um poema espanhol / Travelling que desce e sobe falando de Roma e sua decadência”). Enumerações desse tipo repetem-se em versões variadas, como que buscando um ritmo para a sucessão das imagens, que devem contar a estória. No caderno da marca Theme book, espiral, de capa vermelha  guardado, hoje, no acervo do Tempo Glauber —, o cineasta experimenta, através de listas de imagens possíveis, uma atualização do Quixote, onde o foco narrativo evidencie sua perspectiva latino-americana. Figuras estranhas e familiares devem evocar o fascínio do cavaleiro andante, sempre equivocado, em confronto com a violência do imperialismo e da Igreja inquisitorial. A anotação de elementos desencadeadores de efeito dramático, entre esboços de outros roteiros (“A serpente de sete cabeças”, “América nuestra”), projetos empresariais e contas domésticas, conserva um momento precioso do processo de produção cinematográfica, aquele em que a relação de possibilidades múltiplas, anterior ao trabalho seletivo, revela a complexidade da construção estética. É preciso enorme amplitude de dados para que o recorte e articulação final tenham consistência.

Enquanto a caligrafia nervosa de Glauber ocupa as páginas de cadernos estrangeiros, durante suas viagens em demanda de condições técnicas e políticas para condensar numa linguagem cinematográfica revolucionária a força das diferenças culturais do Terceiro Mundo, os estudos metódicos de Guimarães Rosa também se transcreveram em sua letra redonda, caprichada, indicando um processo lento e rigorosamente planejado de construção literária, desenvolvido, possivelmente dos meados dos anos quarenta até a redação dos grandes livros de 1956. Esses foram os anos de formação profissional do escritor-pesquisador das tradições épicas que, apropriadas em contraponto às experiências da vanguarda, resultaram num contradiscurso crítico aos modelos modernizadores à ocidental.

Se os bichos, enumerados no rascunho de um futuro “Testamento e morte de Dom Quixote”, só têm valor alegórico (valor que se explicita na versão final do roteiro de O leão de sete cabeças: “Eu a vi sair do mar, uma besta com dez testas e dois chifres, e em cada chifre trazia um diadema... e em cada uma das cabeças estavam escritas palavras de blasfêmia... e a besta parecia uma pantera... Tinha patas como um urso e uma goela de leão...”), as listas de animais dos cadernos de estudo de Guimarães Rosa registram dados práticos, específicos e detalhados, sem nenhuma dimensão simbólica. Interessa inventariar as “cores e sinais de cavalos” (“cor de canela: alazão; cor de ouro desmaiado / cor amarelo torrado: baio”) bem como “de bois” (“vinagre: castanho claro, tirante a rubro”) para alimentar a ficção menos com informações naturalistas do que com o saber dos vaqueiros, daqueles cujo conhecimento é matizado da percepção e afeto colhidos na lida cotidiana. No entanto, de perspectivas opostas, os dois inventariantes-artistas acabam alcançando um efeito equivalente. Concedendo-se largo tempo para a pesquisa, Rosa reúne abundantes referências bibliográficas e observações etnográficas; experimenta combinar elementos das listas de diversas formas, transfere, com ligeiras mudanças, as enumerações dos cadernos para folhas datilografadas, onde as indicações de aproveitamento literário se inscrevem nas margens. Todo esse procedimento sistemático, porém, quando transfigurado em poesia, subverte a matriz científica e instaura o ponto de vista da intuição e até, de preferência, o da chamada irracionalidade. A estória se narra como que através dos olhos dos bichos. Já, nos roteiros de Glauber, a força épica, que se contrapõe à racionalidade moderna, é a da magia, da solenidade dos ritos apropriados das culturas selvagens.

Este exercício tateante de aproximação entre as poéticas de Guimarães Rosa e Glauber Rocha, a partir do exame de alguns de seus numerosos cadernos de notas, tem como propósito colocar o inevitável voyerismo do pesquisador de arquivos a serviço do desvendamento dos processos de inscrição do corpo (com suas sensações e impulsos, singulares e momentâneos) na produção da obra  obra que se faz da matéria coletiva, codificada, genérica da cultura. A escolha dos dois artistas se deve, para além da razão óbvia de que seus arquivos pessoais são acessíveis, à afinidade entre os projetos artísticos de ambos (afinidade explícita em vários textos de Glauber, que se empenhou na tarefa de fazer-se herdeiro do legado rosiano), a despeito das diferenças marcantes de temperamento e métodos de trabalho. A escolha de cadernos (ou cadernetas), de preferência a outros suportes de escrita, é que estes, por seu próprio formato, têm de ser manuscritos. E a caligrafia é registro imediato dos movimentos da mão, conservando, na marca das emoções experimentadas (urgência ou calma, empenho ou descaso, simpatia, irritação ou temor diante do assunto em pauta), uma nuance particular no emprego dos signos. Os cadernos manuscritos tomam-se, então, como o lugar onde a autoria começa a configurar-se. Aí, os inventários  estratégias de apoio da memória , sejam cópia de leituras, anotação de observações, registro de imaginação e lembrança, recebem mesmo involuntariamente um traço do instante vivido.

Grande parte dos três cadernos de Rosa, em exame, é ocupada por cópias de trechos lidos pelo escritor. Seu interesse se dirige aos relatos dos viajantes, onde se encontram descritas, com o relevo da curiosidade, a topografia, a flora, a fauna e a população dos sertões. Certamente, preparando-se para suas próprias viagens de pesquisa (a uma fazenda em Paraopeba em 1945, ao Pantanal em 1947, à Bahia, para assistir um encontro de vaqueiros, e pelo interior de Minas, acompanhando uma boiada, ambas em 1952), o escritor colecionava o que lhe podia ser útil, dentre os registros de seus antecessores do século XIX  naturalistas ou exploradores estrangeiros, como Saint Hilaire, Spix e Martius e James Wells, ou ainda brasileiros cultos, como Virgílio Melo Franco cuja carreira de juiz obrigava a longas travessias. Mas as fontes de Rosa são variadas, incluem desde a literatura (Alphonsus de Guimaraens e Afonso Arinos) até os textos de divulgação: este é o caso do folheto da Estrada de Ferro Central do Brasil, Vias brasileiras de comunicação, preparado em 1928 por Max Vasconcellos. Os longos inventários resultantes de tais estudos mostram que a etapa inicial da construção literária rosiana é a tomada de conhecimento, tão minuciosa quanto possível, da matéria de onde surgirá a narração. Duas das novelas de Corpo de baile estruturam-se na forma de ensaios ficcionais sobre a demanda da poesia (“Cara-de-Bronze”) e o “formar-se” de uma canção (“O recado do morro”). Naquela, o vaqueiro Grivo, mandado em missão de rastreador da paisagem dos caminhos sertanejos, relata o cumprimento de sua tarefa, entre os comentários de seus pares; nesta, um naturalista alemão, Seu Alquiste ou Olquiste, acompanhado de guias locais, sai em excursão de estudos (“a tudo quanto enxergava dava um mesmo e engraçado valor: fosse uma pedrinha, uma pedra, um cipó, uma terra de barranco, um passarinho atoa, uma moita de carrapicho, um ninhol de vespos.”), cruzando-se seu trajeto com os deslocamentos de excêntricos loucos e de um poeta popular igualmente empenhados na aquisição e divulgação do conhecimento. Enquanto o cientista observa, experimenta e anota, os doidinhos ouvem a voz profética do Morro da Garça. Dos ecos desta é que se faz a canção. 

No segundo caderno de Glauber Rocha (caderno de marca Conti, nº 830, de capa 
vermelha e folhas grampeadas, também pertencente ao Tempo Glauber), escolhido para esta reflexão, há referência às leituras necessárias ao desenvolvimento dos projetos. Numa espécie de anotação esporádica de diário, inserida entre argumentos e roteiros, encontra-se, no dia 2 de janeiro de 1974: “Li Ciropédia”. Trata-se da obra de Xenofonte, personagem central de “O nascimento dos deuses”, roteiro encomendado pela RAI, a empresa italiana de televisão. Na evidente velocidade da escrita não há tempo para citações de autores antigos nem modernos. A conseqüência dos estudos só se apresenta já transfigurada pela reflexão imaginativa do cineasta, decididamente avesso ao filme histórico de aparência documental, mas decidido a uma apropriação renovadora das obras do passado, interpretando-as de acordo com a conjuntura presente. Num dos primeiros esboços de roteirização das campanhas bélicas narradas em Anábasis e Ciropédia, encontra-se o destaque: “O texto de Xenofonte-Engels explica a formação do Estado Grego”.

Como atestam os dois cadernos examinados, uma enorme dispersão caracterizou a 
atividade de Glauber, entre 1969 e 1975. Há rascunhos referentes a projetos de filme dos mais variados assuntos: o Quixote, as guerras africanas de independência, a máfia siciliana, uma versão livre de A tempestade de Shakespeare e “O nascimento dos deuses”, além de alguns tratamentos de “América nuestra”. A maior parte dos registros desses trabalhos nunca transpôs os limites do caderno. Ficaram nas páginas manuscritas como excesso de informação, descartada como dado independente mas capaz de fertilizar as obras efetivamente desenvolvidas e levadas a público. A proliferação de fábulas roteirizáveis corresponde, no arquivo de Glauber, à feição perdulária dos cadernos de Guimarães Rosa, onde se grafam enormes levantamentos sobre as plantas do cerrado, a arquitetura colonial mineira, um trajeto de ferrovia e ainda se insinuam citações de Toynbee sobre o helenismo, notas referentes a índios no vale do Jequitinhonha e nada menos que expressões na língua Nahuatl do México. Uma simples busca nos arquivos de escritores mostra que se reúne uma enciclopédia para daí extrair um pequeno texto poético. 

Tal enciclopédia babélica, contida nos cadernos, vai sendo filtrada para compor 
cada obra, conforme critérios precisos de escolha e justaposição. Esse procedimento preserva as ruínas de uma sabedoria popular e de uma noção comunitária de rigor estético em confronto com o desejo singularizante de autoria. O corpo manipula o código para roubar-lhe o efeito de consenso. É isso que torna inequívoca a assinatura do texto enquanto garante a permanência produtiva de sua legibilidade, na cadeia da tradição. Os estudos de Guimarães Rosa indicam exatamente o lugar de confronto entre a herança recebida e o impulso pessoal de empregá-la. É o ponto marcado pela sigla m%. Distribuídas desigualmente pelas páginas dos cadernos, as expressões marcadas pela sigla não indicam nenhuma pretensão de inventividade autônoma. Ao contrário, resultam da aproximação inusitada — em grau chocante ou sutil  entre duas ou mais unidades lingüísticas ou fragmentos de narrativa: “perciência”, “os fatos corriam como água”, “cabisduro”, “de leite e de raça”. Organizadas em sintaxe, essas expressões cunhadas na fronteira dos cânones, funcionam como impressões digitais identificadoras. No caso de Guimarães Rosa, é o eco ardilosamente recuperado da oralidade sertaneja que perturba a estabilidade da escritura. Na produção de Glauber, o conflito de fronteira, embora guarde equivalência com o caso rosiano, surge mais agressivo e irregular. Se a trilha sonora de seus filmes sempre inclui os tambores africanos, não é apenas com a sinfonia ou a dicção teatral das personagens que se dá o choque. A cacofonia da metrópole cosmopolita também se faz ouvir, num procedimento de dispersão do foco de interesse, presente desde os diálogos do roteiro: “Quixote sentado com o véu de noiva na mão. / Explodem produtos de publicidade e anúncios de televisão e de filmes americanos à música de ‘Glória, glória, aleluia’”

O movimento construtor da obra se define, nos cadernos de Guimarães Rosa, pelo 
gesto de concentrar o trabalho inventariante na matéria regional: as cidades velhas e os cerrados do interior. As listas da flora, fauna, topografia, arquitetura e urbanismo do sertão é que se tornam o lugar fértil de inserção dos signos da diferença cosmopolita, anteriormente arquivados em outros suportes. O sinal m%, indicador da combinatória dos componentes das listas, como que vivifica, põe em movimento os registros até então estáticos. Pode-se ensaiar uma analogia entre o papel atribuído a Pedro Orósio, protagonista de “O recado do morro”, e o sinal m% usado nos manuscritos. Pedro, um simples enxadeiro geralista, não pesquisa a natureza nem tem poderes mágicos de ouvir a voz da pedra, mas testemunha todas as vezes que se transmite algum fragmento de saber; assim, no desfecho da estória, é ele que performa a canção — sabedoria condensada — que se produz. Também o sinal m%, germe da apropriação autoral do legado coletivo, identifica-se com a potência performática do conhecimento viabilizado pela arte. Trata-se de um tipo de engendramento estético que parte de uma memória local, de ancestralidade familiar, para desautomatizá-la em confronto com o externo, o exótico, o vertiginoso da distância cultural. Já, nos cadernos de Glauber Rocha, o procedimento toma direção contrária: os rascunhos de roteiro compõem-se de inventários virtuais das bibliotecas, tradições e notícias de oriente a ocidente — Xenofonte, ritos africanos, Shakespeare, conflitos mafiosos, Cervantes, guerras anti-coloniais. Essa variedade desconcertante é alinhavada, por sua vez, por uma espécie de núcleo de referências domésticas brasileiras, lugar da performance atualizadora do acervo mundial apropriado. Observando o funcionamento desses processos equivalentes mas inversos, percebe-se que, enquanto Rosa, enfrenta a serialidade padronizada, que reverte no lucro da significação óbvia e imediata, confrontando-a com a repetição vagarosa mas personalizada do artesanato, Glauber desencadeia com mais violência a mesma operação crítica, sem recorrer ao ritmo lento do trabalho manual. Sua estratégia consiste em romper a coerência da história antiga com o raciocínio desconstrutor do presente; daí o emprego de Marx e Engels para apropriar-se da lógica imperialista da Ciropédia de Xenofonte ou de A tempestade de Shakespeare. Além disso, o registro dos argumentos, roteiros e reflexões teórico-políticas dividem as páginas dos cadernos com as contas, os desabafos e os nomes das amadas. Essa convivência insólita é que inviabiliza o resultado eficiente do produto da indústria cinematográfica. A presença inescapável do corpo, que consome, sofre e deseja, deixa sua impressão identificadora na letra gravada — letra que, por sua vez, também resulta na sabedoria poética da canção.


Marília Rothier Cardoso

sexta-feira, 8 de março de 2024

O consolo


Caminhando na noite sem fim,
sem direção, sem vida, sem futuro,
com a solidão como companheira,
que vive na dor do meu peito.
A luz está perdendo intensidade,
me deixando com apenas um consolo
esperando o sofrimento passar
quando a escuridão eterna chegar.

Roberto Aguilar

quarta-feira, 6 de março de 2024

YOU CAN, um poema inédito de Eleazar Carrias


Vai, digita alguma coisa.
Mamãe mamãe não chore.
Isso não é seu. Digita de novo.
Vai, você consegue. Não espera
o som a voz o ritmo. Escreve, porra.
Digitar não é escrever.
Digita, que a escrita se faz.
Não pensa não elabora não faz que.
Taca os dedos no teclado
Vai ficar obsoleto, os teclados
vão desaparecer.
Mas tudo vai desaparecer, idiota.
Taca os dedos no alfabeto, vai.
Ihtguurg judia gfgb nok fhieg yung
Viu? Quase. Tenta de novo.
Fhitf ji9eg girls vsuwg fato
urrd saedli ftoxck ddoitjkaf wxov
Ooooooa gpiiiiberrscb xxaaaaaas
Ffegj ooogevj 4u7 reckhggg
sass eewewrll fiiiix
Para para. Deixa eu ver.
Que merda. Apaga.
Cê não nasceu pra isso.


Eleazar Carrias

terça-feira, 5 de março de 2024

Poema inédito de Fred Coelho

 


Rio d'Janira
De Gaza e Guiné
Da Gávea a Maré 
Leme solto de Macalé
Do Cruzeiro do 
Comando
Miami entre Milícias
Maraca são janu Bariri
Polícia feitora
A lei de murici
As Caravanas de Chico
Os playba os lekes e o
Peruquinha
Trem, bala e louvor
Cosmos e Damião
Amor que engole a ira
Eis aí
Rio d'Janira


Poema (e foto) de Fred Coelho

segunda-feira, 4 de março de 2024

Momento


A noite é fria
o céu é lindo
a noite é nossa.

O luar é doce
a hora é escura
a noite é nossa.

O desejo é fogo
o prazer é momento
a noite foi nossa.

A saudade é minha.

Marina V. Medeiros

sábado, 2 de março de 2024

espreita, um poema de Paula Reis Vianna




uma atriz em pleno palco

se esconde atrás do cenário

discreta, espia a plateia

e imagina uma peça ao contrário

o espectador se perdeu na métrica

entre atores e plateia

se invertermos a dinâmica certa

quem atua? quem especta? Paula Reis Vianna


segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Dominação Europeia


Cidade de Deus.
Fui à padaria.

Saldo: risco de vida,
2 pães franceses
e onze balas de fuzil 762 de fabricação belga.

Viviane Salles

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

parágrafo 5º art.II

proibiria a palavra dardo 

e daria fim a precisão 

proibiria a palavra magma 

depois a palavra chão 

proibiria então o sintagma 

depois a palavra 

de livre apenas o som 

(logo entenderíamos os bichos 

decodificando cada ruído) 

e se estivesse me sentindo má 

decretaria ao acordar 

o fim 

do próprio sentido Paula Reis Vianna

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Ressaca


como se o sono fosse o mar
dormi com saudade
acordei com saldade

Andressa Coutinho

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

Tormento


Astro maligno
poeira no vento
silêncio no escuro
do apartamento

informo
aos meus sentidos
o lamento

é um só
não aguento
o tormento.

Carlos Cardoso

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

gênese II


no princípio era o verbo
uma vaga voz sem dono
vagando pela via láctea.

depois veio o sujeito
e junto com ele todos
os erros de concordância.

Gregorio Duvivier

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

cavalo marinho


meus passos pela terra exibem certeza 

quando olham para os seus 

vagarosos 

de encontro contra a correnteza 

sei que trocamos os papéis 

e seu corpo de cavalo te implora a languidez da água 

enquanto o meu 

de serena sereia 

suplica a espessa dura beleza 

que sustenta uma pegada na areia

Paula Reis Vianna

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

QUEBRA-CABEÇA


Um dia vai descobrir
É necessário errar
Pra evoluir.

Monique Nix

segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

war, poema de Paula Reis Vianna


estou na cama— 
sem roupas, sem tropas 
a cerca de 70 passos do mar

se solto o pensamento 
volto àquela criança 
sua insatisfação dinâmica me fez lembrar da minha
antiga 
presente na palpitação cardíaca

mas ontem era noite 
e a criança saiu irritada 
farejou o descaso com a guerra 
o segredo suspenso entre os adultos: a trégua
verdadeiro conluio para que fôssemos dormir

saiu bufante 
criando um conflito determinante: o seu
e que portanto ninguém teria o poder 
de desfazer
batia os pés emburrada 
sumindo nos degraus de cimento 
e nós enfim pudemos 
desfazer os territórios 
afrouxar os limites 
e jogar como adultos jogam 
à condição de mortais

Paula Reis Vianna

domingo, 21 de janeiro de 2024

Um abraço


Um abraço apertado
despedaça até
a mais robusta
dor.

Márcio Kozlowski

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Arquivo


Colecionava miudezas,
pequeno e íntimo
museu de fragmentos
coletados ao acaso —
como a própria vida.

Frederico Spada Silva

segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

pornô


um homem não perde
a oportunidade de gozar
da cara
na cara
de uma mulher

Anelise Freitas

quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Um poema de Paula Reis Vianna


dorme-se um, acorda-se um

pouco diferente.

nada grave: um dia mais tarde.

pra sempre será

assim.

até não ser mais, 

e então será bom

— morrer

de tanto mudar. Paula Reis Vianna

segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

EU


    sou pequeno
o intelecto me basta
mas quero meu físico na tua cama
— me arrasta?

Pedro Rocha

Ressaqueando


Ressaqueando

ou ressacando,

sacando a lição Ressaca, saca?

Seu passar saqueado pelo saque dessa noitada.

Dessa, mais uma. Desce mais uma

e vai ressaqueando no dia seguinte o giro da cuca

que por pouco luta pra se manter

na labuta e ganhar de novo

a linha dessa ressaca tão justa.

Yan de Holanda

sábado, 30 de dezembro de 2023

Um poema de André Dahmer

1.

não sentir medo

nem andar com pessoas

que sentem medo

2.

não subir a serra

para respirar ar puro

lutar por ar puro

na cidade em que você mora

3.

não invejar

o voo dos pássaros

o sono das plantas

a luz do sol

brilhar no escuro

do apartamento André Dahmer

quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

ernaux

quando acabo a leitura
me demoro na foto da capa 
ela está  bonita
com o braço apoiado
de modo a ser cortado
pela moldura

ela está bonita
e eu
abro
o livro ao meio
tentando realçar o efeito
inclino a capa e agora
a sombra da brochura
corta metade do braço fora

o retrato dessa perspectiva o afina
à semelhança da atrofia
típica de um braço mórbido
e me agrada poder ser bonita assim
de batom vestido relógio

mas gosto mais ainda pois penso que ela me ensina
a trabalhar na escrita um palco
retirar as memórias
de seus cubículos
fazer das lembranças
um espetáculo

Paula Reis Vianna

terça-feira, 26 de dezembro de 2023

SONETO EMPOEIRADO


Nos museus, por todo o mundo afora,

nas sessões de antiguidades há sempre

a série sem fim (caixa de pandora)

de cumbucas ancestrais. Ele cumpre

a tradição, criança não demora:

nada de interessante nessas coisas,

naquelas cumbucas… Já nessa hora

eu só queria ver os tais sarcófagos.

Mas ao chegar em casa, hoje, jantei

com uma cumbuca de porcelana.

E, enfim, depois de uma eternidade, pensei:

Que coisas fabulosas são as cumbucas

ancestrais. Eu, você, os próprios neandertais

Comemos nas mesmas cumbucas, dos mesmos materiais. Vicente Valle

segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

Um poema de Alice Sant' Anna


quando faltou luz
ficou aquele breu e eu
com as mãos tremendo
morta de medo
de tudo se iluminar
de repente

Alice Sant' Anna

domingo, 24 de dezembro de 2023

ESCOMBRICÍDIO:


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“ゐs TREV@S SÃ❶ DESkUiD'a Lux

CrIAR al-AzAR,
DIVERTKOSMOS
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א-oS κopos

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Oᖷ eՒ EՈdA ≥
Mᐿ
I ≈ Mcપmხa, tá?

νIԎuᵽé=ᕬr

Sandro Silva

sábado, 23 de dezembro de 2023

Rotina, Nilo Nobre


Um dia, 
Como outro dia, 
Como outro dia, 
Assim vou devorando os anos.

Nilo Nobre

sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

Ícaro


ali
avenida primeiro de março
estropiado entre buzinas
e gritos de todas as gentes
que largo mão do sol
para recomeçar a Terra Ismar Tirelli Neto

quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Passado e presente


Já fui garoto das chuvas.
Fui, por longo tempo,
menino nas tempestades.
Um ser dia cinzento.

Hoje, sou homem do sol.

Thássio Ferreira

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Gazel para um amor virtual de uma oficina poética, uma ousadia de Vicente Valle


Querida, Zilka, já não sei se vale,

ao teu talento, nada equivale.

Me apaixonei pelos teus lindos versos.

Quero vestir o teu mui belo xale.

Quero declamar a ti todo o meu

amor, mas sem que nada encavale.

Que você venha se casar comigo,

no contrato sagrado assinale.

E se um dia sentires enorme raiva,

me mate, esvazie, e logo me empale.

E se mesmo no Fim do Mundo Todo,

você ainda quiser que eu pedale,

é só sorrir pra mim, e eu pensarei:

“É a mulher da minha vida. Dá-lhe!”

Sou eu, o homem mais feliz do planeta —

Vicente Ruiz de Gamboa do Valle!

Vicente Valle

terça-feira, 19 de dezembro de 2023

GAZEL ENJOADINHO

Meu caro Hafiz, achei tão belos

os teus gazais — gazéis? gazelos? —


achados numa antologia

que resolvi também fazê-los,


quer dizer, pelo menos um.

Porém a musa aos meus apelos


se fez de muda, e em pouco tempo

fiquei arrancando os cabelos.


Mais tarde, respirei bem fundo,

consultei mais alguns modelos


e pensei, após devorar

um pacote de caramelos:


“Vou conseguir, ou não me chamo

Zilka do Amaral Vasconcelos!”

Zilka Vasconcelos

segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

desobediência do estado civil

que se faça essa reforma

meu deus que me importa

e se tanto te importa vai

faz aí tuas revoluções

aproveita e faz também por mim

as minhas malas que eu não consigo

que tô de ressaca enfia por mim

minhas coisas nas caixas

faz teus votos de cassação

ou castidade que pra mim

dá no mesmo eu não ligo


vai muda o nome no contrato

um nome é só o que se gasta

da tinta da caneta: um mililitro

um papel não muda muito

a vida a casa

vamos e venhamos

quanto mais você quer

apagar meus rastros

mais você confirma

que eu existo


pode brigar sozinho pelos

pratos pelos impostos

sonegados ninguém

vai me vaiar anyways

quando eu sair pela porta

da frente com uma mão atrás

e outra fumando


eu só fico

impressionada com uma coisa:

tudo se ajeita a vida segue

com golpe ou sem golpe

com ou sem sete de setembro

jajá estaremos acostumadíssimos

que horror

já saber se a vida segue

sem você isso eu

não sei

mas hoje não vou protestar

vou dormir Adelaide Ivánova