segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Pronome pessoal


Eu aqui
Tu aí
Ele lá
Nós dois naquele cantinho
Vós lendo este poema
E eles?

Juliana Margarete

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

A marcha de Alberto


Alberto Silveira Braga, almirante quatro estrelas reformado, abria caminho com duas sacolas de compras entre o Gandhi, a Marilyn Monroe e o Saci Pererê. Corpos suados bailavam entre confetes e serpentinas, enquanto uma colorida bola de praia era estapeada pra lá e cá sobre o mar de cabeças. Um palhaço de circo passava em pernas-de-pau, uma fadinha purpurinada balançava um bambolê e homens travestidos de noivas, baianas e quengas tocavam instrumentos. Nem Lewis Carroll imaginaria tamanha lógica do absurdo materializada no mundo real; a vitória inquestionável da insanidade coletiva. Afinal, não se tratava de um pesadelo, nem muito menos o velho Braga estava alucinando ou ficando gagá. Era, sim, o carnaval do Rio de Janeiro. Período em que a cidade obtinha o alvará da vagabundagem para cinco dias de ininterrupta embriaguez, galhofa e sem-vergonhice.

O teu cabelo não nega mulata
Porque és mulata na cor
Mas como a cor não pega mulata
Mulata eu quero o teu amor

A marchinha resgatou na memória do almirante os bailes de gala do Teatro Municipal, ele e os amigos de escola naval vestindo fraques elegantes, as mulheres brilhando em fantasias de Cleópatra. Tempos de alegrias comedidas, sem drogas ou libertinagem. Mera fase de transição até a vida adulta, com uma esposa decorosa, obediente e, sobretudo, comprometida a criar futuros gênios da medicina, advocacia ou política. Doutores e senadores. Seus rebentos. “Os Braga, estes sim... cidadãos exemplares, modelo de estirpe, não há uma semente ruim entre eles, todos ajuizados e bem-sucedidos.”, diriam os colegas de farda, de Clube Naval, e, posteriormente, de seus seletos círculos de gabinete. Acreditou que tudo fluiria no automático quando casou-se com Marieta, e a sensação de dever cumprido o permitiu desfrutar dos anos seguintes, comandando corvetas pelo Rio Negro e São Francisco, escalando o mastro até a gávea para contemplar o horizonte.

Hoje, a simples troca de uma lâmpada lhe exigia um esforço sobre-humano.

O tempo, de fato, era uma amante inescrupulosa, dessas que nos tiram tudo e arruínam nossa vida. Sortudo havia sido o Heraldo, morto nos anos do “milagre” do Médici, muito antes de experimentar os dissabores dessa rotina sem apetite sexual, escrava da diabete, hipertensão e colesterol galopante.

Tens um sabor bem do Brasil
Tens a alma cor de anil
Mulata mulatinha meu amor
Fui nomeado teu tenente interventor

Alberto sempre fora entusiasta da boa e velha ironia, mas essa, que o destino miserável lhe imputava, era demais até pra ele. Aquela mesma marchinha, criada por uma geração que sonhava com um Brasil progressista, agora era entoada por esses baitolas, larápios e imbecis, que deviam estar atrás das grades por perturbação da ordem pública. Como haviam se enganado! Anos e anos desperdiçados tentando limpar a merda desse país, para que, cedo ou tarde, os bueiros todos se abrissem e a podridão se instalasse como musgos sobre a terra. Que esgoto a céu aberto! Sentiu o rosto em chamas, uma fúria que lhe varria as vísceras, e bendisse sua sorte por não ter trazido o trinta e oito. Se tivesse, certamente esvaziaria o tambor para pôr fim àquele ultraje.

À sua frente, um sheik árabe com cara de nórdico chacoalhava o esqueleto com cerveja na mão. Alberto se deu conta de que o rapaz lembrava muito o Henrique: mesmo tipo franzino, cabelo loiro, olhar de palerma. Deu uma trombada violenta no moleque, que foi ao chão levando outros dois junto com ele, como num jogo de dominó.

- Qualé coroa!?

- Calma ai, meu senhor!

- É carnaval...

Seguiu em frente com um sorriso de canto de boca, num lampejo de satisfação ao interromper, mesmo que por um minuto, a farra daqueles pulhas. Já estava puto da vida por ter tido que sair na rua. Desde a morte de Marieta, adotara como prática fazer um estoque de comida e bebida antes dessa ode à estupidez chamada carnaval. Ficava trancafiado os cinco dias, distraindo-se com seus livros e telejornais, apenas ouvindo, a uma distancia segura, rumores da algazarra. Sempre dava certo e ele conseguia evitar o estresse, mas esse ano calculara mal a quantidade de vinho do porto, religioso acepipe antes de cada refeição. Não conseguia engolir uma garfada sequer sem antes entornar duas doses de Porto Quevedo. Ainda assim, decididamente, não tinha valido a pena pisar fora de casa.

Entrou e sobre a mesa da sala estava uma carta. Porteiro filho da puta! Já tinha advertido o Antônio, seu filho mais velho, que essa história do porteiro ter uma chave do apartamento era não apenas desnecessária, mas também imprudente. Embora ele nunca viajasse, nem mesmo dormisse fora de casa, os porteiros conheciam sua rotina e poderiam entrar quando ele não estivesse, pegar uma cerveja aqui, um gole do uísque ali, um bombom de licor acolá... Talvez aí estivesse a explicação porque seu Porto Quevedo acabara tão depressa dessa vez. Estranho, muito estranho... 

Aproximou-se da mesa e viu a palavra escrita no envelope: “Perdão”.

Paralisou. Sentiu como se mergulhasse num oceano em tempestade. Em segundos, um suor gelado, opressivo, escorria em gotículas por seu corpo, o coração palpitando como rufos de tambor.

Não foi a palavra em si que provocou aquela aterrorizante reação involuntária, mas sim a letra, a inconfundível letra de Henrique.

Hesitou por longos minutos. Caminhou com dificuldade até a cozinha, as pernas tremendo descontroladamente, e preparou uma dose cavalar de Jack Daniels. Agora, o vinho do porto simplesmente não daria conta. Raciocinava aos solavancos quando rasgou o envelope e começou a ler a carta. Não a terminou. No meio, deixou cair o copo de uísque, que se espatifou no assoalho.

Encarou o vazio por meia hora, neurônios em descompasso, até que o som da marchinha viesse resgata-lo das profundezas. Andou feito um zumbi até a cômoda da sala, tirou o trinta e oito da gaveta e saiu à varanda.

O bloco estava parado bem em frente ao seu prédio, oculto sob a copa das árvores.

Ó jardineira porque estás tão triste
Mas o que foi que te aconteceu
Foi a camélia que caiu do galho
Deu dois suspiros e depois morreu

Engatilhou e disparou um tiro em cada direção, conscientemente, numa insanidade ordenada. Voltou para dentro, alheio aos gritos de desespero, e sentou-se na cadeira com o revolver no colo. O olhar, perdido no porta-retratos, buscou viajar no tempo. A foto: ele, de farda branca e quepe da Marinha, Marieta num vestido austero de dona de casa, Antônio com oito anos e o pequeno Henrique, com quatro, camisa do Botafogo, shorts e meião, o único que não olhava para a câmera, encarando de cenho franzido algo que apenas ele enxergava. Mais atrás, atracada na base naval de Aratu, via-se a Fragata Niterói, que Alberto estava prestes a comandar pela baía de Todos-os-Santos.

O porteiro e a polícia irromperiam porta adentro pouco depois, levando o velho almirante Braga para uma viagem sem volta.

No carnaval seguinte, o bloco da Rua do Catete levou dois mil foliões às ruas. Ninguém se lembrava do velho militar aposentado que morava no prédio da esquina, sujeito rabugento que vira e mexe arrumava briga com vizinhos e comerciantes. Nem ao menos se lembravam da história que dera cabo de sua vivência por ali e que na época inundara os jornais e tabloides sensacionalistas: o almirante descarregara um revolver da varanda, matando dois jovens fantasiados de Raul Seixas e Bob Marley, que acompanhavam o cortejo. Condenado a dez anos de prisão, foi negado o regime semiaberto, apesar das limitações da idade. A pena, contudo, foi encurtada pelo próprio almirante, habituado a comandar seu destino como se fossem navios de guerra, graças a uma navalha surrupiada para dentro do presídio pelo filho de um colega de farda. Um corte limpo na garganta e pronto, o fim da marcha do velho almirante Braga.

Ah sim, o surto na varanda supostamente se dera após a descoberta do suicídio de seu filho esquizofrênico. Mas disso também ninguém se lembrava, uma vez que a Terra já completava uma volta em torno do sol e os deuses da “embriaguez, galhofa e sem-vergonhice” nos traziam um novo carnaval.

Bruno Flores

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Passadas


Se a cada passo,
Um passo eu avanço,
E no avanço do passo,
Sempre aprendo,
Um novo passo.

Aprendendo um novo passo,
Passo passeando,
Passo passando meu passo,
Não.
Meu novo passo,
Que aprendi no avanço,
Do meu passo a passo.

João Carini

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Em turnê


TORRES
o baixista

tem
presença
de
palco

mas
não sabe
tocar

(...)

LOPES
o baterista

é
motivo
de
confusão

quando
resolve beber
antes
do
show

(...)

MAGALDI
o guitarrista

traçou a
linha
do
tempo

em
cada uma
de
suas
tatuagens

(...)

GOMES
o vocalista

quer
um
espelho
de corpo inteiro
no camarim

só pra ele

Fabio Ramos

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

manchas


ler no solavanco das sílabas
o sinônimo ausente
o vento
o tempo
o esquecimento

poema é manchar a página com silêncios

Salvador Passos

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Visitante


I
o olhar da pedra sobre mim
cansa
e
o sorriso da planta afloreia

o sol tá mais baixo agora
e
o silêncio silencia minha voz

o ar quente abafado transmuta
lentamente a direção
e
o correr da criança
encanta muito mais

o voo rasante do pássaro
prenuncia alguma coisa
que não sei o que é

e
a estrada de terra (chão batido)
traz direção ao sertanejo
que ainda sonha com a vida melhor

a tarde vai caindo vagarosamente
na intensão de uma bela noite
trazendo um pouco de suspiro

pois amanhã é um outro dia...


II

o olhar sinaliza a intensão
percorrendo minutos de distâncias
que não haja uma única forma
de substituir...

não há como reverter
nenhuma situação
e
a desistência é ainda é o único
caminho a ser seguido...

a vida é assim e pronto!
a vida é deste jeito e pronto!

a perspectiva de melhora se foi
junto com a seca do último mês,
a esperança de tudo passou
mediante a falta de água,

por aqui, a fome luta com a sede
pra ver quem ganha
e
é uma competição diária,

a cada dia que o sol renasce
renasce no sertanejo a tortura
e
o desespero,


a cada dia que o sol renasce
renasce no sertanejo a decepção
e
a intranquilidade,

mas todos tem uma única convicção
(talvez essa seja plena)
que tudo ainda está por piorar
cada vez mais...      

Anderson Bee

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

O poeta


Tendo ido dormir tarde, acorda cedo....
Reles espectador, não ator da vida...
Exila-se em silencioso degredo
Só pra procurar a poesia perdida.

Cercado apenas de solidão e medo
Mantém sua rotina tão repetida
Como o mais imperscrutável segredo
Até mesmo das pessoas mais queridas!

Então resolve publicar seus versos
Talvez pensando que sua arte bendita
Faça eco em algum lugar do universo.

Recebe seu soldo em duro desdém.
Porém lá no fundo da sua alma aflita
Sabe que a poesia é sua... e de mais ninguém!

Felipe Macedo

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Máscara


Cara, mas ? -

Qual é a sua máscara?
máscara
mais cara
cara
nem sei qual é a minha máscara
cara a cara
a mais cara
?
?
? trago um cigarro
entreguo à quem pergunta
trago eu
-
-
máscara é caro
prefiro ser eu
máscara
e se ela te for cara?
cara, então, mascara.
mas porque seria bom
não ser eu?
?
?
-
-
as más
caras
se cobrem
e o outro mascarado
finge que não
percebeu

qual é cara?
sou cara bom
não mascaro o meu eu
se eu usar minha máscara cara
será daquele que não se rendeu
qual é a SUA máscara?
Hoje?
a de um cara que não cresceu
tem a de um sujeito que esqueceu
a do que sabe tudo
a do que não entendeu
a do sortudo
a do semi-Deus
e sem?
máscara?
Aí sou apenas
?
?
_
_
Eu.
o cara que se perdeu.


Legenda
        ? traga
        - Solta fumaça

Fernanda Medeiros

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Onde encontrar o PB #37


O Plástico Bolha 37, brinde à poesia agora - à exposição Poesia Agora, à poesia de agora, à poesia do agora - está rodando o Brasil.
Além de Tiradentes, Juiz de Fora, Belo Horizonte e vários pontos no Sul de Minas Gerais, chegamos aos pontos listados abaixo, no Rio de Janeiro:

UFRJ - Campus Praia Vermelha (Escola de Comunicação,
Livraria Universo, Contabilidade, Psicologia); Campus Centro (Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais)
UNIRIO - Campus Praia Vermelha (Faculdade de Letras)
Real Gabinete Português de Leitura
Biblioteca do Planetário
Biblioteca Vinicius de Moraes
Biblioteca municipal de botafogo
Livraria da Travessa Botafogo
Fundição Progresso
Fundação Calouste Gulbenkian
Letra Viva Livraria
Pop - Polo de Pensamento Contemporâneo
Cavídeo
Papel aos pedaços
Cinema Estação NET Botafogo
Espaço Move
Casa da Gávea
Bar do Pires


Caso você tenha buscado em algum desses pontos o Plástico Bolha #37 e não o tenha encontrado, informe-nos através do e-mail: contato@jornalplasticobolha.com.br

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Ô de casa


uma légua
e meia
de
pernada


vindo
de
acolá


com destino
ao além


(...)

na estrada
de terra

quando
passa
um
carro

sobe aquela
poeira
do
chão

é o olho
que
arde

a
garganta
que
fecha

se
não for
incomodar

água
do
filtro
de barro

na
caneca
de alumínio

aqui moço
(beba)

Fabio Ramos

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

O Suvaco do Bispo ou o Bispo do Suvaco — (samba por Nanico e Chacal)



Nesta terça-feira de carnaval, enquanto as cinzas não baixam, comemoremos nos embalos do Suvaco do Cristo! Viva quem é maluco o ano inteiro! Viva o Bispo do Rosário! Viva Chacal! Viva a poesia! Viva o Carnaval!


"te mando o samba que fizemos pro suvaco do cristo."
— Chacal, Ricardo

Minha nação suvaquense
Bora pintar e bordar
Dentro deste samba quente
Vamos homenagear o rei dos reis
Arthur Bispo do Rosário
No seu mundo imaginário
o universo recriou

Nos seus panôs e bricolages
Num duelo
Bispo deixa no chinelo
o Duchamp ou Andy Warhol

É o ano inteiro... Fevereiro
O samba ferve nos terreiros
E Bispo só em sua cela
Dá luz ao seu interior
E faz do lixo, do resto, do quase nada
Uma nave engalanada
Com ela subir aos céus

Bispo bordou
os seus mantos e estandartes
Com os fios da pura arte
Num hospício aterrador

Qual a cor do seu semblante? Azul
Veio de Japaratuba pro sul
Embarcou na nau errante
Ouviu vozes sussurrantes
Foi fazer seu inventário
De bichos, coisas e nomes
Em transe bordou!

paula beto chico rita
flávia zeca gil joão
neco léo luiz maria
rosa helena julião

prato prego pão e peixe
rede roda azul botão
galocha colher caneca
tico tico gavião

Sem choque ou internação
Pro Bispo ficar legal
Bispo é força nessa luta
antimanicomial

Chacal




 +


O carnaval
do Plástico Bolha
é o carnaval do Chacal
é o carnaval dos malucos
o carnaval antimanicomial
o carnaval do Suvaco
carnaval mais legal

Lucas Viriato





segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Poema de Matheus José Mineiro


[ . . . ]

um poema que oxigena o sangue
nascido do trabalho de parto das plantas

sedativo entorpecente alucinógeno
proteína que se nutre a cada dia
cilindro de oxigênio
no meio da massoterapia
e das lâminas da serralheria.

um labrador me espreita ao lado da cama                        
como um drone com fome focaliza o fêmur                                                                      
rosna
e só me aguarda despertar.

procuro um poema
que equilibre o fluxo energético do corpo

acupuntura erva medicinal                            
                        acasalamento de libélulas
                                                  e pessoas
poema que a nado borboleta atravesse a cachoeira
e o cano da escopeta                                                              



pois os maxilares dos hipopótamos e rinocerontes                                                            
estão sempre escancarados e voltados
para nossas tíbias e vértebras.

Matheus José Mineiro

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Mocinha


Após viúvos anos, Ieda anda afoita. É que o viço irrompeu seu ventre e empurrou fora o azedume do tempo. Expedito, que bate ponto na padaria e vive a cercar as meninas do posto, é quem está por trás de tanta euforia. Foi ele que desprendeu a renda que cobria a caixinha afetuosa de minha mulher. E o romance corre como o escapar dos dias.

Nem tudo, no entanto, vai bem, visto que há pouco o rapaz queixou-se de algo constrangedor para Ieda. A meu ver, uma reclamação incabível. Ela compreende, já sabia que o namorado era pouco provido, só esperava a ocasião em que ele diria, como fez, sentir-se desamparado dentro de tanta frouxidão. Contrário de mim.

Eu me ajustava com perícia à vasta vulva de Ieda. Fui eu que a fiz grande assim, nunca protestei. Aliás gostava era por demais de flanar lá dentro. Entrava integral e de lá saía só quando os dois estávamos derreados. O efeito de tanto gozo foi um fluxo de criaturinhas, que por um tempo conteve nossa disposição.

Já se deslocaram alguns anos daquele dia. Eu caminhava certo na direção do quarto, querendo a generosidade de Ieda quando um aperto sanguíneo confundiu meus sentidos e cegou minha vista até última e gutural exclamação. Tornei-me imaterial.

Ieda foi submissa à minha ausência por um honesto período, antes de seu facho chamejar outra vez. E esse fogo era possível ver em seu olho buliçoso. Ela gostava do amor, e o primeiro a perceber que aquela alma queria reza foi Expedito. O rapaz, apesar de desfavorecido, considerando as dimensões de Ieda, era animado, um desajuste pequeno não a inquietou.

No dia seguinte à queixa, Ieda decidiu adaptar-se ao par, custasse qualquer recurso. Procurou D. Alda Raizeira, que cometia garrafadas de todo tipo na região. A mulher entendeu o caso e aviou uma gloriosa lavagem pra uso corrente. Ieda agora se asseia diariamente com chá de casca de aroeira, pra ficar mocinha.

Nossos filhos ouviram boatos sobre a mãe estar com uma doença nas partes. Ela cuidou de tranquilizá-los, disse que os filhos-de-candinha da cidade adoram falar mal, e que aquela infusão fazia um bem enorme à circulação, sendo esse o motivo de seus banhos íntimos inclusive. No fundo, pouco se importou com o desassossego dos outros, queria mesmo era enredar-se no corpo novo do namorado, o qual por um tempo parou de reclamar porque a artimanha funcionava como um encanto.
Além de mim, ninguém havia conhecido antes o desejo de Ieda. Era um poço de fundura injusta para Expedito. Quando a aroeira já não cumpria a função, ele voltou a reclamar do préstimo de Ieda, que já não sabia como prosseguir afeiçoada a quem não conseguia mais agradar. Ela insistiu, pois assim é o amor desajustado, deixa uma das partes resistente a agravos, pronta para admitir sem desprezo múltiplas cusparadas da boca que venera. Me impressiona essa necessidade de ser feliz à força de qualquer artifício.

Semanas mais tarde, Ieda soube de uma cirurgia que deixava qualquer mulher novinha. A matéria de jornal explicava sobre traumas sofridos durante o parto, dizia coisas sobre o útero. Isso fazia muito sentido pra ela, que dera à luz seis filhos. Claro, só podia ser uma mulher traumatizada. Com uma cirurgia assim já resolveria dois problemas de uma vez, o trauma e a lassidão.

Cuidou para que a intervenção fosse marcada na capital. Tudo correria dentro dos conformes, em um único dia, sem espertar a curiosidade da vizinhança. Para os filhos, seria uma viagem rápida de comerciante.

Ieda passou de resguardo uma quarentena. Em grande expectativa. Expedito ficou dias sem aparecer, sabia o tempo exato em que ela seria liberada, e no fim desse período assomou a porta do quarto, impaciente, com a mão no pintainho, de olho comprido no regaço da velha; um moleque a cobiçar brinquedo novo. Ieda sentiu-se dulcineia, mesmo sabendo que o motivo da alegria estava rejuvenescido no meio de suas pernas.

O indivíduo se sentou na cama, amarrando-a em abraços entulhados, entre beijos ligeiros descalçou os sapatos e arrancou a roupa, depois estirou-se todo a fim de tomar o prometido, puxando o tronco de Ieda pra si, instante mesmo em que assoprei uma posição no ouvido dela, e ela escanchou-se como uma cavaleira, com a experiência que não tinha aos dezoito puxou macio sobre as pernas o tecido da camisola e quando já estava pronta o madraço enterrou sem comiseração. Ieda sentiu o tranco, mas a despeito disso, não rogou brandura, segurou as mãos do rapaz e, sem rédeas, pôs-se a galope.

Os dois se enviesaram na cama, pareciam medir forças. Num descontrole carnal, ela fez o que induzi e arqueou o corpo atirando-se pra trás. Ouviu-se então um barulho alto de madeira se partindo. Alarmado, sem cor nem volume, Expedito jogou de lado a mulher e quis escapar. Os dois encarnados de susto. Ele cambaleou, despenhando-se aos pés de Ieda. Segurava entre as mãos o pau pequeno, quebrado e cruento. O silvo do socorro soou na rua distante, mas isso cuidei também para que tardasse.

Aleksandro da Costa

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Sem título


Como escritor, aprende-se:
A abordar um editor
A abordar um agente literário.

Como escritor, viaja-se
A fim de divulgar seu trabalho.

Livre da agenda
Aquela que o prende
Lê e vive. 

Não pensa em títulos:
Escreve.

Hugo Pernet

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Epílogo I


Todos  estão  mortos  cavalos  estão  mortos  todos  os cavalos  estão  mortos não  é  um  título  é uma constatação de  que algo  está acontecendo  de  que  algo  está  por  acontecer   de que  todos os   cavalos  estão mortos e não  há  nada a ser feito senão a  constatação de  que  tudo está   acontecendo  neste  segundo neste  milésimo  de segundo neste  milésimo de milésimo  de  segundo  o que está  morto  está  morto e um cavalo  morto é um cavalo  atemporal tal  qual  o  nome  do   morto  vivo  sobre  o   limbo  da  lomba   sem valor para  o desenrolarda  história  mesmo  que esta tenha visto tanto  quanto o seu  líder  o seu pseudo  líder e ainda que  neste  segundo neste  milésimo de segundo  um  cavalo  atravesse  a  Avenida Rio Branco com suas duras patas sobre  o  cimento quente das ruas num Rio  seco de  verão  e  todos os olhos o  mirem  e  alguém o  fotografe  e alguém  o classifique  como  espécie rara  e faça um  poema então acreditarei que vai  sair no jornal  com certeza vai sair  no jornal  é melhor gravar o  que ele diz vai  que  escapa alguma coisa e  cavalo qual  é  o  teu  nome  eu   pergunto  cavalo como  tu  sobrevives eu  pergunto  cavalo  cavalo onde estão os outros  eu pergunto os  outros já não estão os outros  já  se foram há anos nós os cavalos fomos ameaçados  suplantados engolidos e  incorporados pela foto pelo esporte pelo carro pelo comercial de cigarros pelo  policial deslocado e  pelo título  mesmo que esse não  seja um título mas  sim  uma constatação de que  todos os cavalos  estão mortos e por ventura nós as  éguas ainda ilustramos o  exemplo da letra c sobre o quadro negro necessário  até  que  as   littles  crianças  da  sua  espécie  sejam  enfim   alfabetizadas  e  adestradas e podadas segundo as leis do estado e da ferradura e do cabresto  ou até mesmo que surja  uma outra  palavra dessas mais bonitas  e  concisas  como casa caqui   coitado  curvelo  crustáceo camelo cavaco canteiro casado  cruzeiro calado chaveiro cimento cemente centido ceção cessão cei não diz a  criança  olhando  as flores  sobre a janela  enquanto a professora  estressada  pergunta esticando o braço e essa essa ela diz  c com a ba  bavalo professora.


Felipe Andrade