sexta-feira, 28 de setembro de 2018

Solidão


Eu posso ouvir o canto da alvorada,
No gorjear dos pássaros perdidos,
Roçando o vento, os plátanos despidos,
Na fria solidão da madrugada...

Meu pensamento vaga pela estrada,
Passando pelos vales ressequidos,
Desperta a bruma, os sonhos esquecidos,
Como quem chega ao fim de uma jornada...

E assim se fez meus dias, meus invernos,
Nas noites sem dormir, nos meus infernos,
Ruflando o peito em lúgubre agonia....

E no estuário em frente ao meu jazigo,
O canto do urutau chora comigo,
Na triste solidão que morre o dia...

Sérgio Márcio

quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Peça "Em Família", no Teatro Martim Gonçalves, em Salvador



Poema de Gabriela de Andrade Pereira


o mundo inteiro pode caber
na carga da esferográfica
no fino cilindro do grafite
a vida brota dos calos
dos dedos
dos braços tensionados
que tecem a grafia confusa –
a profusão de cores
espoca no papel –
(a realidade
é uma palavra
e só)

Gabriela de Andrade Pereira

terça-feira, 25 de setembro de 2018

Lançamento do livro Limo, de Néstor E. Rodríguez



Garden Primer | Jardinagem elementar — poema de Ricardo Sternberg e tradução de Marilena Moraes


Garden Primer

Carrots, said my grandfather,
are nails
which keep the field
from flying.

Then sunflowers,
saind my grandmother,
are daughters
to the sun:

they stare and follow
their bright star father
then shed these hard
dark tears.

Ricardo Sternberg



Jardinagem elementar

As cenouras
aprendi com meu avô,
como pregos,
prendem a vegetação à terra.

E os girassóis,
aprendi com minha avó,
são do Sol
os filhos:

olhar fixo, seguem o
brilhante pai-estrela;
em seguida,
vertem lágrimas amargas e densas.

Tradução de Marilena Moraes

segunda-feira, 24 de setembro de 2018

Inauguração da exposição "Mufa Caos", do artista Barrão



No habitat do ogro


Decidi engordar. Sempre que me dá na telha, como fast food. Vivo comprando sorvetes, bolos e tortas para a sobremesa. Estou orgulhoso com os resultados até agora: minha barriga cresce a olhos vistos e, mais importante, vai adquirindo consistência gelatinosa.

Para ajudar no processo, decidi beber. Costumo tomar vinhos ou cervejas especiais, que harmonizo com o prato, aperitivo ou sobremesa do momento.

Voltei a fumar cachimbo porque combina com todo o resto. Prefiro o risco de câncer de garganta do que o de pulmão – se não, fumava cigarros.

Deixei a barba crescer, e se não fosse tão magro (tirando a barriga), pareceria Karl Max. É verdade que nos trópicos faz calor e, às vezes, o suor escorre entre os pelos, mas não me incomodo. Faço um gesto de cão que se enxuga e molho a casa toda.

Por falar em cão, o meu tenta me fazer acordar cedo para sair. Recuso-me. Se quiser, cague no jornal, que está ali para isto. Estranhamente, Brutus não liga e toda vez que me vê faz a mesma festa. Aperto seu focinho com as duas mãos, jogando-lhe fumaça na cara. Ele ri, o danado, e tenta me morder. Antes eu recolhia sempre o cocô dele na rua; hoje só às vezes.

Quem chega aqui em casa, olha-me esquisito e ao perceber que todos os livros estão espalhados pelo chão, me chama de porco. Nestas ocasiões, rolo no chão, rindo e coçando a barriga, para que fiquem satisfeitos. Sempre os deixo felizes, dá para notar porque saem cochichando, entre eles, encômios sobre minha pessoa. Eu reforço seus laços sociais, e se você me perguntar, acho que devia ser condecorado.

Quase não saio. Perdi muitos ditos amigos. Quem ficou, gosta da minha presença e não exige nada de mim. São feios e a maioria pobre. Tem aleijados também. E negros, homossexuais, mulheres, trapaceiros, nerds, intelectuais, gênios. É tudo muito colorido e barulhento. Normalmente quebram tudo antes de ir embora, mas só porque os incito a fazê-lo. Tenho uma necessidade um tanto doentia, admito, de quebrar objetos. É isto ou ranger os dentes, mas penso que a primeira opção é mais elegante.

Raramente vou a festas e nunca a festividades. Natal e Réveillon são minhas preferidas para ficar em casa. Tomo cervejas que nunca tomei, harmonizo Häagen-Dazs com uma porter e incenso toda a casa com fumaça de Irlandez chocolate alpino. Brutos é como eu: fica puto com os fogos de artifício. Se eu tivesse uma metralhadora, devolvia o favor a esses filhos da puta que só sabem se repetir, ano a ano, como se fossem pequenos fantoches de uma força sobrenatural desconhecida. Vestem branco, os pequenos robôs!

Às vezes, nesses fins de ano, tem uma mulher comigo (é incrível, eu sei). Proponho transarmos no momento da queima de fogos para me livrar do desejo assassino. Elas acham estranho, mas topam. Não faço amor. É difícil descrever estes entrelaçamentos suados. Elas não reclamam e no dia seguinte me ligam perguntando o que vou fazer à noite. A coisa tende a desandar quando criticam minha barba e pedem que eu a raspe. Onde já se viu tamanho atentado à livre manifestação da vontade? Meus relacionamentos terminam, creio, por causa desses pelos que tenho na cara.

As pessoas normais, definitivamente, eu não entendo. Passei cinquenta anos tentando. Desisti. Essa mesmice me revolve o estômago. E não é que a padronização não tenha seu charme – a atração fascinada das ovelhas, a tara pelo rebanho –, ainda mais quando impregnada de juventude e beleza. Mas a vista cansa e a paciência não é eterna. O que atrai o mundo é um monstro forjado, cujo focinho reconheço a quilômetros de distância. Brutus rosna na presença destes protótipos de gente. Eu sorrio, em sintonia com a inteligência canina.

Minha barriga agora emitiu um som gutural. Arroto, e o eco percorre a casa. Meu cachorro corre para buscar um brinquedo. Ao redor, há o som de vizinhos que se preparam para ir ao trabalho. Fico de ouvidos atentos, esperando, esperando. Brutos solta a bola, pois me conhece. Quando se faz o silêncio, digo:

– Chegou a hora, rapaz.

Então, prendo-o e vou dormir. Tenho quase certeza de que gargalho no meu sono. Babo também, porque o travesseiro sempre amanhece úmido.

Bruno Mendonça


sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Orfeu litúrgico


No meu inglês inexistente eu te canto.
Você de Hades e eu sem lira pra
te tocar...
Como eu queria tangê-la na minha
jugular pulsante a roçar o vermelho
dividido no palco que te reluz:
toda coral numa liturgia que
me convida para ver a assunção
dos apaixonados - quando vistos,
mesmo que com o canto do olho.

André Siqueira


quinta-feira, 20 de setembro de 2018

14° Festival Internacional de Animação Estudantil - Anim!Arte 2018


De 24 a 29 de setembro de 2018, no Planetário da Gávea, Rio de Janeiro, 294 filmes serão exibidos como parte do 14° Festival Internacional de Animação Estudantil - Anim!Arte. São, ao todo, 57 países participantes. Para entrar, basta levar 1kg de alimento não-perecível.

Para mais informações, acesse aqui o catálogo e a programação.


quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Inscrições abertas para o X Prêmio Paulo Britto de Prosa e Poesia


O PET-Letras da PUC-Rio convida a todos para participar da décima edição do Prêmio Paulo Britto de Prosa e Poesia. As inscrições começaram na última segunda (10/09) e seguem até o dia 10 de outubro.

É possível concorrer em duas categorias: poesia e prosa.

Os três primeiros colocados de cada categoria serão premiados na cerimônia de divulgação dos resultados, no dia 08 de novembro (link do evento: https://www.facebook.com/events/330958064116714/).

Vale lembrar que alunos de todos os departamentos podem concorrer e, assim como na edição anterior, funcionários da PUC-Rio também podem participar.

Então se você gosta de escrever e quer ter a chance de ser premiado pelo seu trabalho, aproveite essa oportunidade!

Para mais detalhes da inscrição, confira o edital do concurso (https://drive.google.com/file/d/1DTregqbxWKcvep0txJO43-vobuSUtJDW/view?usp=sharing). Em breve estaremos confirmando toda a programação da cerimônia.



 

E


Eu te amo com espanto
E solidão.

Com as lâmpadas oblíquas
Do céu fechado

Da roupa esgarçada
Do incrédulo que reza
E não sabe.

Amo como um troglodita
E não te digo

O amor curvo
Feito criança com medo.

Mas esse meu amor
É mais bonito que a água

É simples como um tropeço
É maior que o tempo

Esse adivinho espantado
Ensimesmado.

Eu te amo como quem
Já não acreditava.
Juro.

Daniel Gil


segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Azia


Hoje eu acordei com uma azia me rasgando o estômago, na realidade eu não dormi bem, não durmo bem faz uns dois dias, acho que é desespero, fome, ou peso na consciência.

Tá tocando Zuza Zapata aqui na minha Playlist acho que deve ser isso, uma sensação cálida de urgência percorrendo meu corpo. Uma urgência de saber até quando, porque por algum motivo o meu coração tá dizendo que você tá indo embora e Deus queira que eu esteja errada tanto quanto a vida que eu levo.

A minha casa tá uma zona, tem um monte de louça na pia, não faço mais almoço, diminuí o açúcar no café, às dezessete horas bate falta do sal.

Do sal que eu lambo do teu corpo no dia da semana que eu sou mais feliz.

Ontem no banho eu tava imaginando um futuro pra gente, deu medo quando parei pra me olhar no espelho e me vi pensando nas coisas que eu seria capaz de fazer com você. Eu odeio espelhos.

Na realidade eu acho que ando aprendendo a gostar dos espelhos ultimamente pelo simples motivo que eles andam me dando a oportunidade de te ter mais, vez em quando eu fico te observando dentro de mim como quem faz uma prece ao universo. Eu não sinto paz, mas me sinto viva.

Semana passada eu tava relendo os meus escritos e me assustei quando me dei conta que sempre escrevi pra você, de alguma forma eu sabia que a desgraça ia chegar. Eu tropecei em umas bocas antes, mas nada que valesse realmente meu tempo, não desmerecendo ninguém, alguns eram uma gracinha, mas eu sou muito intensa e sempre assusto quem ainda tá começando. Pra ser sincera eu acho que assusto até quem já tá na estrada tem tempo, mas quem tem experiência, bota fé nas malucas.

Eu ando sentindo falta de quando tudo começou, agora vira e mexe você nem me dá mais tchau nas nossas conversas, aparece e abandona. Eu odeio isso, eu fico ali esperando o fim da conversa, eu sempre fico esperando o fim de tudo, e não sabendo o que fazer quando me dou conta que você não vai mais voltar, eu desligo o telefone.

Em todo caso deve ser válido esse movimento, deve fazer bem pra bateria descansar, coisa que meu coração deve aprender.

De toda forma eu te agradeço, quando for sair da minha vida, sai assim também, de uma vez só. Já te pedi isso, lembra?

E só te pedi isso, porque eu não vou saber me despedir de você.

Sherazade Médici



Sherazade é atriz, escritora, poeta e compositora. Autora do perfil @NemTãoSuaveAssim
https://www.instagram.com/nemtaosuaveassim/?hl=pt-br
https://www.facebook.com/NemTaoSuaveAssim/

sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Três dias


Vi anjos de plástico
Assim como vi o pau de plástico
Ela acreditava que o bicho papão
Tinha oito dedos em cada mão
Falei que tinha matado o danado
Com uma pistola d’água cheia de vinagre
É sério, ela disse
Vi o picareta tentando mostrar o dedo do meio
Mas ele tinha oito e não tinha um dedo do meio
Ora ora mulher, que siririca desperdiçou
Siririca – confessou – pra mim é como um carburador velho
Só fede e não liga
Meu negócio é língua
Língua áspera e grossa
Rachada e cheia de cores
Por todo autódromo
Deve ser mais lisa que uma capa de livro
Nada! Nunca me depilei, acho desnecessário
Sou natural como o brilho nos olhos do canário
Natural como a carne nas gengivas do tubarão
E o bicho papão
Você quer mais uma bebida?
Por favor
A vela sete dias estava no sexto
A faca no chão tinha sangue seco na ponta
O incenso fedia canela
TV ligada no último volume
Contando um fato de lástima racional
Tremendamente constrangido
Por fazer aniversário ali
E como presente
Uma torrada de querosene
Saudei os anjos e o pau de plástico
Facas e os rasgos no sofá
Privada entupida
Gatos boiando na piscina
Mãe morta após uma temporada familiar
Fumaça dentro da geladeira
Cheiro de sapo nos travesseiros
Cobertores com figuras do arco-íris
Pantufas dentro do plástico
Calcinhas em pó de neve
Boquete enquanto segurava um peido
Nossos sabores não se entrelaçaram
Não à toa
Meses depois
Quando passou de carro e grasnou em filtro branco
Circulando a rótula pra voltar
Me escondi dentro de um banheiro de posto
O único brilho natural que eu carregava
Era uma moeda da Argentina
Vapores, vapores
Caçando as amígdalas e as mariposas
Em casa após três dias do aniversário
Comi dois ovos cozidos
Sentei pra escrever
Mas não saiu nada
Imaginei o bicho papão de oito dedos
Entalhado na parede
Mostrei-lhe o dedo do meio
E uma lágrima solitária
Caiu dentro do copo

Ramon Carlos



Ramon Carlos (Santa Catarina, 1986). Escreve no site: www.estrAbismo.net. Sua carreira literária resume-se a dois contos publicados em uma antologia, além de materiais diversos em revistas como: Inutensílio, LiteraLivre, Subversa, Philos, Escambau, Bacanal, Ruído Manifesto e Literatura & Fechadura. 

quarta-feira, 12 de setembro de 2018

escuta


escuta o ranger das horas no relento
o olhar atento
a antena aberta
o trovão nas veias
escuta o estômago digerindo o tempo
o desvão da alma
o esquecimento
escuta o sangue escorrendo aos poucos
esta fala rala
arranhando o muro
o escombro gasto da palavra impura
o ruir de cada monumento
a cidade em chamas
multidão nas ruas
escuta o corpo carregando insônias
os insultos vindos lá do prédio ao lado
o choro calado no meu peito
os passos no telhado
o banco explodindo na esquina
escuta o estrondo seco do silêncio
este sopro imenso do assombro
o rumor daquilo que não cala

Salvador Passos

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Uma cerveja em Copacabana


O Baratos da Ribeiro era um sebo incrível que ficava na famosa rua quase homônima de Copacabana. Durante algum tempo, entre os meus 11 e os 14 anos, tenho a impressão de ter passado mais tempo lá do que na minha própria casa. Depois ele acabou. Quer dizer, pessoas informadas dizem que o estabelecimento nunca fechou de fato, apenas foi transplantado pra Botafogo, mas eu me recuso a acreditar que algum lojista sem coração faria uma mudança sórdida dessas, sacrificando assim um trocadilho tão maravilhoso.

Por que eu passava tanto tempo dentro de um sebo? Certamente não era pra ler as velhas brochuras de Ian Fleming e Richard Bach que abundavam nas prateleiras frontais da loja. Não, o que me interessava estava mais pro fundo. Eu, que era vizinho do lugar, sabia que o último aposento daquele antro apertado juntava as duas coisas que eu mais amava na vida: Rock e gibi de Super-Herói. Meu primeiro cd do The Cure (Boys Don't Cry), a primeira revistinha do Batman (A Piada Mortal), tudo veio daquele cantinho cheio de ácaros. Eu seguia uma rotina bastante firme, naquela época:

De tarde, era a vez do gibi. Eu ia pro sebo arrastando uma mala cheia de livros velhos do meu pai e da minha mãe – cheguei a levar uns cinquenta ou sessenta volumes de uma vez – e trocava eles por qualquer coisa que tivesse escrito "Frank Miller" ou "Alan Moore" na capa. Os lojistas tinham simpatia por mim (eram nerds à moda antiga, felizes por iniciar um jovem neófito), mas eram também homens do comércio. Posso estar delirando, mas me lembro de ter dado uma coleção inteira de livros de direito da minha mãe, todos capa dura, em troca de uma edição velha do Batman Ano Um, de Miller (até hoje não levei o esporro merecido, então acho que saí ganhando).

Mas, de noite, tudo se transformava. Era a hora do Rock, bebê. Depois de ter devorado o gibi do dia, eu voltava no sebo e encontrava o ambiente transformado: seus corredores estreitos e empoeirados ficavam abarrotados de adolescentes apenas um pouco mais velhos que eu, todos fumando e bebendo, usando umas jaquetas jeans super anacrônicas pra época. Era uma galerinha que dizia que era "Mod".* No meio desse povo, tinha sempre uma bandinha de rock underground atacando seus sons em uns amps fuleira e guitarras idem. Era sublime. Meus heróis nessa época eram os caras do Coupé Mal-Assombrado, a banda do meu amigo Pablo Arruda que (entre outras coisas) tinha uma música que era uma ode à menstruação. Eu ficava ouvindo aquilo maravilhado e voltava pra casa só nas altas da madrugada, trocando as pernas.

Mentira. Quase tudo que eu contei no último parágrafo acima é verdade, mas a última frase é uma mentira deslavada. Eu encerrava o programa sempre em torno de oito e meia ou nove da noite, pra jantar, e não trocava as pernas: naquela época, meu único entorpecente era a coca-cola, com suas excitações açucaradas. Eu era um bom menino, e, como eu disse, era um pouco mais novo que a média dos frequentadores do lugar. Mas cabe dizer, ainda assim, que foi exatamente nessas noites de rock no sebo que eu me fiz a seguinte promessa: seria ali no Baratos que eu tomaria a minha primeira cerveja. Assim que tivesse coragem.

Certa tarde, eu fui lá como sempre pra garimpar meus quadrinhos. Entre um Sandman e um Monstro do Pântano, o balconista me perguntou:

- Moleque, você toca guitarra?

- Sim. (Não mencionei que só sabia 4 acordes)

- Tem amplificador?

Eu tinha um amplificador. Uma caixinha miserável, é verdade, mas honrosamente capaz de transformar pulsos elétricos em sinais sonoros. Será que o cara ia me chamar para tocar no Baratos? Não, claro que não. Ele queria só o amp emprestado, mesmo.

- Hoje de noite vem uma banda grande aqui. Eles vão vir com um amp profissional, mas precisam de outros dois pequenos para servir de retorno.

- Que banda?

- Cachorro Grande.

Porra, a Cachorro Grande. Uma banda tão bacana que tinha furado a barreira do underground e estava fazendo sucesso na MTV. Uma banda tão incrível que era do Rio Grande do Sul e tinha vindo fazer show na maior casa do Rio de Janeiro, o ATL Hall**. Uma banda tão cool que se recusava a ser antecedida pelo pronome "o": tinha essa firula de ser "a" Cachorro Grande. Eles iam tocar no Baratos! Claro que eu emprestava o Amp. Seria uma honra servir o Rock'n'roll.

Convoquei para me auxiliar na missão o fiel companheiro Felipe Cabral, que também tinha o seu ampzinho valente. Fomos os primeiros a chegar para a montagem do "palco" (na verdade, o cantinho menos apertado do sebo) e conhecemos os músicos, que numa atitude super rock não se mostraram nem um pouco agradecidos com a nossa contribuição, nos olhando com aquele ar blasé. Porra, eu queria ter aquele ar blasé. Tivemos o privilégio de ouvir calados enquanto eles conversavam com gente mais velha e mais interessante que nós: estavam de saco cheio dos compromissos da turnê, de só tocar coisas do disco deles. O show daquele dia ia ser só de antigas pérolas do rock.

Eles não estavam brincando. Ninguém acredita quando eu conto isso, mas a Cachorro simplesmente abriu o show com Heaven and Hell, do The Who, e emendou em Astronomy Domine, do Pink Floyd. Enquanto a calçada em frente ao sebo lotava, eles mandaram não sei quantas dos Stones, várias outras dos Beatles, coisas de Bowie, Clash... e muita música também dos seus conterrâneos de rock gaúcho: meninos, eu vi os versos do Graforréia Xilarmônica sobre pegar a xinoca e desbravar a coxilha emocionando corações cariocas a três quadras da Avenida Atlântica.

É preciso dizer, antes que eu me esqueça (isso é importante) que a banda tocava a pouquíssimos passos do público: no aperto do sebo, entre uma prateleira com as obras completas de Júlio Dinis e outra com As Melhores Piadas do Casseta e Planeta, podia-se estender o braço e encostar no cabelo seboso ou na espinha de algum daqueles roqueiros. Era demais pro meu pobre coração.

Lá pelas tantas, adentrou no Baratos um sujeito quarentão, alto, feio, narigudo, que eu nunca tinha visto na vida mas era claramente famoso: quando chegou, ele recebeu uma ovação maior do que a da própria Cachorro Grande. Usava uma camisa regata e um rabo de cavalo amarrado no cocuruto da cabeça, como a Pedrita dos Flinstones. No exato instante em que o viu, o baterista da Cachorro cedeu para ele o seu instrumento, e o cara altão se sentou e começou a tocar. Rapidamente, eu fiquei impressionado com a jam infernal que se instaurou. Ele era bom. Parecia um animal selvagem esporrando a caixa e os pratos. Qual seria o seu nome?

Bom, se eu não sabia o nome da figura, pelo menos tinha tomado uma decisão: aquele não era um ambiente para crianças. Se eu quisesse permanecer ali, tinha que virar homem. O que, naquele caso, significava beber a minha primeira lata de cerveja. Aquela tinha que ser a noite. Saí do sebo, caminhei em passos firmes até o ambulante mais próximo e pedi uma Brahma, com todo o dinheiro que eu tinha. Meu passaporte para a vida adulta, aos treze anos. Ela veio suando.

Abri a lata, mas não bebi ainda. Tinha que ser dentro do sebo. Voltei correndo pra lá, onde continuava correndo solta a jam da banda com o baterista doidão. Naquele meio tempo, o cara já tinha ficado empapado de suor (esqueci de dizer o quanto o Baratos era abafado) e, sem parar de tocar, ele começou a procurar por algo na platéia, sofregamente. Seus olhos pararam na minha mão. Ele começou a segurar um groove na bateria apenas usando o bumbo e o contra-tempo, e usou a mão desocupada pra apontar pra mim com a baqueta.

- Você! Tu mermo, moleque. Me passa essa cerveja.

Porra. Porra! Eu não tive escolha, estendi a lata pra ele, com as mãos trêmulas. A primeira da minha vida. Sem ter dado sequer um gole nela.

- Valeu!

Ele pegou a lata e virou ela inteira, em questão de alguns segundos. Rock'n'roll. Eu, que tinha passado noites e mais noites sonhando sobre como seria aquela primeira cerveja, não fiz nada. Fiquei apenas ali entre as estantes de livros, parado, olhando, enquanto meu passaporte para a vida adulta escorria diretamente pra dentro da garganta do Lobão.


*Estou simplificando a questão das tribos de então: para ser mais preciso, eu tinha amigos que diziam que eram mods, punks, emos, playssons, e inclusive uma amigona que se definia como gótica lolitaoitentista.

**Naquela época, todos achávamos horrível que a famosa casa da Barra tivesse mudado o nome de "Metropolitan" para ATL Hall. Hoje, em tempos de "Km de Vantagens Hall", reconheço que éramos felizes e não sabíamos.

Breno Góes

sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Não se regula paixão


Não existe isso de regular paixão
De, existente a disparidade,
Negar a si próprio o direito de amar

Controladoria não existe no quesito
Seria um tanto inconsequente
Ter o saber de amar quem quiser

No entanto, não se escolhe
Numa tímida construção, mas radical ao se finalizar
Surge um arrepio interno na presença da amada

E a tudo que foge a arrepios
Não se pode classificar como paixão
Às vezes, quase sempre, até o cérebro fica elétrico assim

Paixão é fruto de mil incertezas
Mas logo tudo se resolve
Comigo, esclareceu-se: ela não me deseja

E assim, por mais que ela se resolva
Não se permite acabar
Ela come na falta, e respira no olhar

Quando eu digo "ela", digo paixão
A quem quero, já cansei de escrever poemas
Por mais que esse alguém me motive a mais um

A paixão come no não haver um amor
Bebe da diferença de objetivos dos corações
E assim, se embriaga, ducha fria, dor de uma lágrima só

Marcos Vinícios Botelho da Silva

quarta-feira, 5 de setembro de 2018

A democracia é um exercício


Respire.
Expire.
Conte até dez.

Levante o braço direito até mais ou menos a altura da cabeça.
Feche o punho.
Variações do exercício:
flexione o cotovelo encostando o punho no ombro;
estique o cotovelo voltando à posição original.

E respire,
expire.

Em caso de bombas de gás lacrimogênio,
máscaras cairão automaticamente à sua frente.
Puxe uma delas.
Coloque-a sobre o nariz e a boca, ajustando o elástico em volta da cabeça.
Respire normalmente.

Pegue uma cartolina.
Coloque-a no chão, como um colchonete de ioga.
Escreva algo como: “Não acredito que ainda estou lutando por...”
Escreva algo como: “Somos todos...”
Segure a cartolina com as duas mãos de modo que todo o seu corpo será um cone.
Caminhe: um, dois, respire, um, dois, expire.
Caminhe: um, dois, respire, um, dois, expire.

Em caso de bombas de gás lacrimogênio,
coloque a folha no chão entre quem lança as bombas e quem as recebe.
Empilhe todas as folhas que você conseguir de modo a formar textos-barricada.
Agache todo o seu corpo numa posição fetal de modo a encostar o joelho na testa.
Não se esqueça de respirar.
A coisa mais importante da vida é:
respirar.

Em caso de cassetetes,
corra
Use tênis confortáveis e roupas leves, que permitem flexibilidade ao se movimentar.
E corra
sem se esquecer de respirar.

Em caso de ouvir gritos de “Intervenção militar”.
respire...
respire...
conte até mil.
Pegue: fios elétricos. Um pau de arara. Um balde cheio até a borda de fezes. Chame o Magaiver. Sim, chame o Magaiver. O Magaiver certamente foi treinado pela C.I.A. Pegue: uma palmatória, uma quantidade razoável de ácido.
Pegue – senão eu mato a sua mulher! Pegue, seu desgraçado, pegue, sua piranha, senão eu enfio esses fios elétricos na sua boceta, senão eu ligo o gás, afundo sua cabeça nesse balde cheio de merda, seu viado.
Respire – dentro desse balde cheio de merda!
Respire – o cheiro de queimado!
Mas não – a democracia não é um exercício militar.
Sinto muito – porque você não entendeu direito.
Respire corretamente(!)

Expire.
É um exercício, a democracia:
respire / expire.
Em caso de atentado à bala,
levante o braço com o punho fechado a cada vez que alguém gritar
“Marielle, presente”.
Não se esqueça: um assassinato.
Não se esqueça: de respirar.
Afinal, a coisa mais importante da vida é:
(somente o som da respiração / somente o som da expiração).

E repita o movimento
mesmo sabendo que a repetição,
como já disse Jorge Luis Borges, Deleuze-Gattari (1972) e Carle Simon,
é já um novo movimento.
Repita o exercício democrático.
Repita.
Se você fizer direitinho,
  mas direitinho,
pode vir a se tornar
uma grande potência democráti/econômica
           como é a nort/América!

Lembre-se: não se esqueça – de respirar.
Lembre-se: a coisa mais importante da vida é:

Ana Paula El-Jaick

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Out Fear


João levantou-se, tirou os tampões do ouvido que permitiam não ser acordado a todo instante graças ao seu sono leve e foi ao banheiro para molhar a cara. Ainda meio atordoado de sono, ignorou o fato de que seu quarto parecia maior e mais pomposo. Aliás, não se lembrava de dormir em uma suíte. Movido praticamente de forma automática, com a mente ainda grogue e sem raciocinar direito, tomou um banho. Sentia-se estranho desde que acordara, quase como se fosse outra pessoa, mas creditava isso ao sono da manhã e ignorara a sensação. Ao escovar os dentes e olhar no espelho pela primeira vez no dia, porém, levou um gigantesco susto e não conseguiu conter um grito de desespero. Sem qualquer explicação aparente, João havia se transformado em Temer. Ele mesmo, o presidente.

Quando certa manhã João acordou de sonhos intranquilos encontrou-se em seu banheiro metamorfoseado em um inseto monstruoso. O horror foi tamanho que o pobre João mal conseguiu conter o grito. Imagine você, caro leitor, façamos aqui um exercício de empatia – qualidade que tanto nos falta – transformado de uma hora para a outra sem quaisquer explicações ao melhor estilo Kafka logo no homem mais odiado da nação. Pobre João. Antes fosse uma barata gigante.

Mas nem tudo era dor e danação. Passado o horror e a surpresa iniciais, João, homem padrão que era, logo pensou nas vantagens que tal condição poderia trazer. E vantagens, para ele, atendiam pelo nome de Marcela. Ora, se estava preso por alguma razão nesse corpo odiado, por que não aproveitar ao menos a regalia de uma bela esposa? Era solitário, nunca havia se casado e há anos não se relacionava com alguma mulher. Essa era a oportunidade de finalmente tirar o atraso que seu antigo corpo sem dinheiro, poder ou beleza o sentenciara. João voltou para a cama e de fato Marcela dormia no outro canto. Com um sorriso malicioso no rosto, aproximou-se, passou as mãos suavemente nas pernas da primeira-dama e se agachou para dar-lhe um beijo, ao que foi recebido com... Um empurrão?! 

– De novo isso, Michel? Se você não consegue nem colocar o seu amigo de pé, por que vem me perturbar? 

Aquilo pegou João/Michel de surpresa. O que aquela mulher queria dizer com “não conseguir botar o seu amigo de pé”? Sem responder nada João correu para o banheiro, tirou a calça e descobriu o maior de todos os horrores: era broxa. A impotência já tomara conta daquele corpo envelhecido. O horror, o horror. Não bastava ser agora o próprio Michel Temer, era também um Michel Temer broxa. Dor e danação. Dor e danação em seu maior grau possível. Ainda atordoado, voltou para o quarto, onde Marcela já sentada continuava a falar: 

– Nós já tínhamos decidido que não faríamos mais isso, por que você continua insistindo? Por mais conveniente que seja nosso casamento, se você continuar com isso teremos que nos separar. Já imaginou o escândalo? Não seria interessante para você, né, Michel, poderia inclusive expor seus podres. Então para com essa merda e volte a se masturbar com a faixa presidencial. 

João ficara surpreso, aquela mulher não tinha nada de recatada e do lar. Ela era o demônio. 

– O que foi – continuou – acha que eu não sei o que você faz no banheiro até tarde? 

– Eu... 

– O que você está esperando, Michel? O dinheiro não vai se roubar sozinho, você sabe. Tem uma longa jornada de “trabalho” pela frente hoje, “querido”. 

João conseguia sentir apenas um ódio intenso por aquela Lady Macbeth e pela forma de escárnio com a qual ela se dirigia a ele. Pela primeira vez sentira alguma pena de Temer. Talvez o homem não fosse assim tão mal. Mas esse pensamento logo foi substituído pela raiva e melancolia de estar trancado em um corpo impotente. Bom, ao menos ainda era o homem mais poderoso do país. Ainda assim, por alguma razão que a razão lhe fugia, mesmo sendo supostamente o homem mais poderoso do Brasil, não conseguia impor suas vontades a ela e uma misteriosa força o compelia a obedecer. 

O velho e bom clichê do sonho seria uma saída muito simples para essa história e João não é estúpido, logo percebeu que aquela situação, por mais bisonha que fosse, era real. Como qualquer bom brasileiro médio, acostumado a consumir desenfreadamente qualquer coisa empurrada goela abaixo pela TV, João possuía perspicácia e conhecimento em filmes B de Hollywood para saber que trocas de corpo sem explicação são extremamente comuns e acontecem quase todos os dias por aí. Então não, esta bizarra troca de corpos não possui explicação, já que esse nunca foi o objetivo desse conto. Quão pretensiosamente kafkiano da parte do narrador. 

Sem explicação, sem lógica e sem sentido, João era agora o presidente. E devia agir como tal, até entender o que acontecera e o que podia ser feito a respeito. Isso se algo pudesse ser feito a respeito. A situação era absurda, mas – peço perdão aqui pelo uso dessa frase lugar-comum mas não encontrei nenhuma que se adequasse melhor – devia dançar conforme a música. Só que não fazia a menor ideia de como se portar ou do que deveria fazer como presidente. Era um humilde porteiro que de repente, do nada, se viu como presidente do Brasil. Como reagir, como proceder? Era óbvio que ninguém acreditaria se dissesse que não era o presidente, então precisaria agir o mais próximo da forma como Michel agiria. 

Tão logo pôs os pés no Palácio do Planalto, nosso ilustríssimo João, devidamente travestido de presidente, foi recebido por duas figuras nefastas. Tratava-se, como não poderia deixar de ser, de sua querida e útil assessoria. E note que aqui me refiro usando o pronome “sua” já considerando João como o presidente em exercício nesse país conturbado, já que tecnicamente a assessoria era de Michel Temer. Só que, porém, entretanto e todavia, desafiando as leis metafísicas, João ERA agora Michel Temer. E, portanto, os assessores eram “seus”. Se é que alguém pode ser de alguém, ou, mais ainda, se algo pode ser de alguém já que não existe alguém com autoridade o suficiente para definir isso, mas aí se pensarmos muito nisso entraremos ainda mais na metafísica e problematizar não é a ideia dessa pequena crônica. Aliás, seria essa pequena anedota uma crônica ou um conto? Ainda não estudei literatura comparada o suficiente para descobrir, deixo a decisão para o leitor acadêmico que esteja lendo nesse momento, se é que há um. Para facilitar a leitura, então, usarei pronomes possessivos e afins já tratando João como o presidente, dado que seria extremamente inconveniente – e acredito que você concordará comigo – tratar o personagem como sendo o porteiro João e não o presidente João/Michel Temer, que, para os efeitos, todos acreditam que seja. 

– Senhor Temer, o senhor por acaso já se esqueceu do combinado? 

O mais difícil de se tornar quem se tornara, para João, era fingir entender o que lhe diziam. Mas era o que esperavam dele, não podia recuar, qualquer outra opção soaria absurda. Acreditava fielmente que um homem deveria se posicionar sempre de forma resoluta e demonstrar dominância, mesmo que em seu interior o medo o dominasse. Já ficou claro que João era um tanto quanto conservador e machista, como grande parte dos brasileiros médios, o que explica essa sua filosofia de vida. Dessa forma, tentou transmitir confiança embora tenha falhado e acabou por soar inevitavelmente débil ao responder seus assessores: - Eu... Não... – sendo prontamente interrompido sem que sequer conseguisse dar prosseguimento à mensagem, não que houvesse algo a ser dito já que João/Temer estava puramente confuso e desnorteado. Normalmente não é muito delicado interromper pessoas, mas caso o seu interlocutor tenha misteriosamente trocado de corpo com o presidente e encontre-se completamente desamparado, não há problema em ser mal educado. A interrupção foi bastante proveitosa - pois como o leitor bem sabe e já peço novamente perdão por me aproveitar de um lugar-comum, mas vocês sabem quão difícil é superar vícios de linguagem – há males que vem para o bem. 

– Senhor, nós havíamos dito explicitamente que não era para comentar a reforma previdenciária em público sob o risco de falar besteira e assim por em perigo o seu acordo com os demais deputados e senadores. Não percebe o que fez ao dar aquela declaração ontem? O país só fala disso. Toninho me ligou hoje dizendo que era para cancelarmos as concessões à sua empreiteira já que o governo parece caminhar para mais uma crise e precisamos de qualquer forma evitar mais um escândalo. 

– Eu... 

– Por favor, não conceda entrevistas, coletivas ou qualquer coisa do tipo pelos próximos dias. Procure evitar repórteres, mas se questionado limite-se a dizer que a reforma é imprescindível para o país retornar seu crescimento. Dito isso é nosso dever afirmar que Toninho junto de alguns outros deputados e senadores estão bastante irritados e demandam uma audiência hoje. Como sei que jogar Damas consigo mesmo não ocupa muito do seu tempo e, portanto, estará livre, a marquei para as 13 horas. Claro que estaremos com o senhor para auxilia-lo e impedi-lo de falar besteiras. 

– Eu... 

– Enquanto o horário da reunião não chega o senhor pode manter-se ocupado jogando Damas em seu gabinete, como de praxe. Nós cuidaremos das atividades presidenciais, para a sua e a nossa segurança. 

Com um sorriso sarcástico e cruel, o assessor deixou João enfim sozinho. Como os leitores podem imaginar, nosso protagonista encontrava-se sem reação, praticamente em choque. Pelo visto a impotência que circundava a figura de Temer não era apenas física. João sabia que o presidente nunca fora onipotente ou mesmo uma unanimidade, mas a fragilidade com que presenciou o cargo o surpreendeu. Temer não passava, então, de uma simples marionete, um boneco sem vontade própria que agia como protagonista apenas para manter as aparências quando, na realidade, existia algo muito mais poderoso, muito maior por trás. Ventríloquos que ditavam o destino do Brasil, que poético. 

Recolhendo-se a sua insignificância, João pôde então ter um momento de sossego. A sós, enfim, refletiu sobre sua atual condição. A vida como ‘golpista’ não era, afinal, de todo mal. Apesar de broxa, de ser odiado por toda uma nação e de ser um presidente decorativo, ainda possuía suas regalias. Sempre poderia chorar em Paris. Entre aproveitar o resto da vida no Distrito Vermelho em Amsterdam ou trabalhar incessantemente e ter que negociar com seu patrão para ter quaisquer enormes privilégios como férias, a resposta era óbvia. Ser o Temer não era tão ruim assim. Claro, não tinha amigos, amor verdadeiro e ainda era impotente. Mas de que importava essas coisas? Ao menos agora tinha dinheiro. E, com dinheiro no bolso, até o ódio alheio se torna irrelevante. Nunca mais haveria de acordar as 5h da manhã para se atrasar por 10 minutos no condomínio e ter de ouvir que era um preguiçoso. Nunca mais teria que trabalhar por doze horas sem receber hora extra. Nunca mais teria que almoçar rapidamente sob o perigo de ser descontado o tempo do seu salário. Quem disse que o dinheiro não traz felicidade nunca foi pobre. 

Considerando numa balança, não havia perdido muito, a vida como João não era assim tão boa. Claro, sentiria falta de seu pênis não impotente e de seus amigos do bar. Mas fazer o quê? O golpe do destino foi certeiro. Haveria de recomeçar a vida, o que, com alguns vários milhões em uma conta na Suíça, não é assim tão difícil. 

Enquanto isso, no outro lado desse país continental, uma história semelhantemente diferente se desenrolava. Pois quando Michel Temer acordou de sonhos intranquilos viu-se metamorfoseado em um trabalhador. Mas essa é uma história para outra ocasião.

Sergio Schargel



Sergio Schargel é carioca, fruto de uma mistura cubana com polonesa. Formado em Jornalismo e Publicidade pela PUC-Rio, atualmente aplica para um mestrado em literatura e sonha em criar carreira na área como pesquisador, professor e/ou escritor. Mantém uma página no Facebook onde posta fotografias, poemas e outras peças artísticas: https://www.facebook.com/sergio.schargel/.