segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Uma cerveja em Copacabana


O Baratos da Ribeiro era um sebo incrível que ficava na famosa rua quase homônima de Copacabana. Durante algum tempo, entre os meus 11 e os 14 anos, tenho a impressão de ter passado mais tempo lá do que na minha própria casa. Depois ele acabou. Quer dizer, pessoas informadas dizem que o estabelecimento nunca fechou de fato, apenas foi transplantado pra Botafogo, mas eu me recuso a acreditar que algum lojista sem coração faria uma mudança sórdida dessas, sacrificando assim um trocadilho tão maravilhoso.

Por que eu passava tanto tempo dentro de um sebo? Certamente não era pra ler as velhas brochuras de Ian Fleming e Richard Bach que abundavam nas prateleiras frontais da loja. Não, o que me interessava estava mais pro fundo. Eu, que era vizinho do lugar, sabia que o último aposento daquele antro apertado juntava as duas coisas que eu mais amava na vida: Rock e gibi de Super-Herói. Meu primeiro cd do The Cure (Boys Don't Cry), a primeira revistinha do Batman (A Piada Mortal), tudo veio daquele cantinho cheio de ácaros. Eu seguia uma rotina bastante firme, naquela época:

De tarde, era a vez do gibi. Eu ia pro sebo arrastando uma mala cheia de livros velhos do meu pai e da minha mãe – cheguei a levar uns cinquenta ou sessenta volumes de uma vez – e trocava eles por qualquer coisa que tivesse escrito "Frank Miller" ou "Alan Moore" na capa. Os lojistas tinham simpatia por mim (eram nerds à moda antiga, felizes por iniciar um jovem neófito), mas eram também homens do comércio. Posso estar delirando, mas me lembro de ter dado uma coleção inteira de livros de direito da minha mãe, todos capa dura, em troca de uma edição velha do Batman Ano Um, de Miller (até hoje não levei o esporro merecido, então acho que saí ganhando).

Mas, de noite, tudo se transformava. Era a hora do Rock, bebê. Depois de ter devorado o gibi do dia, eu voltava no sebo e encontrava o ambiente transformado: seus corredores estreitos e empoeirados ficavam abarrotados de adolescentes apenas um pouco mais velhos que eu, todos fumando e bebendo, usando umas jaquetas jeans super anacrônicas pra época. Era uma galerinha que dizia que era "Mod".* No meio desse povo, tinha sempre uma bandinha de rock underground atacando seus sons em uns amps fuleira e guitarras idem. Era sublime. Meus heróis nessa época eram os caras do Coupé Mal-Assombrado, a banda do meu amigo Pablo Arruda que (entre outras coisas) tinha uma música que era uma ode à menstruação. Eu ficava ouvindo aquilo maravilhado e voltava pra casa só nas altas da madrugada, trocando as pernas.

Mentira. Quase tudo que eu contei no último parágrafo acima é verdade, mas a última frase é uma mentira deslavada. Eu encerrava o programa sempre em torno de oito e meia ou nove da noite, pra jantar, e não trocava as pernas: naquela época, meu único entorpecente era a coca-cola, com suas excitações açucaradas. Eu era um bom menino, e, como eu disse, era um pouco mais novo que a média dos frequentadores do lugar. Mas cabe dizer, ainda assim, que foi exatamente nessas noites de rock no sebo que eu me fiz a seguinte promessa: seria ali no Baratos que eu tomaria a minha primeira cerveja. Assim que tivesse coragem.

Certa tarde, eu fui lá como sempre pra garimpar meus quadrinhos. Entre um Sandman e um Monstro do Pântano, o balconista me perguntou:

- Moleque, você toca guitarra?

- Sim. (Não mencionei que só sabia 4 acordes)

- Tem amplificador?

Eu tinha um amplificador. Uma caixinha miserável, é verdade, mas honrosamente capaz de transformar pulsos elétricos em sinais sonoros. Será que o cara ia me chamar para tocar no Baratos? Não, claro que não. Ele queria só o amp emprestado, mesmo.

- Hoje de noite vem uma banda grande aqui. Eles vão vir com um amp profissional, mas precisam de outros dois pequenos para servir de retorno.

- Que banda?

- Cachorro Grande.

Porra, a Cachorro Grande. Uma banda tão bacana que tinha furado a barreira do underground e estava fazendo sucesso na MTV. Uma banda tão incrível que era do Rio Grande do Sul e tinha vindo fazer show na maior casa do Rio de Janeiro, o ATL Hall**. Uma banda tão cool que se recusava a ser antecedida pelo pronome "o": tinha essa firula de ser "a" Cachorro Grande. Eles iam tocar no Baratos! Claro que eu emprestava o Amp. Seria uma honra servir o Rock'n'roll.

Convoquei para me auxiliar na missão o fiel companheiro Felipe Cabral, que também tinha o seu ampzinho valente. Fomos os primeiros a chegar para a montagem do "palco" (na verdade, o cantinho menos apertado do sebo) e conhecemos os músicos, que numa atitude super rock não se mostraram nem um pouco agradecidos com a nossa contribuição, nos olhando com aquele ar blasé. Porra, eu queria ter aquele ar blasé. Tivemos o privilégio de ouvir calados enquanto eles conversavam com gente mais velha e mais interessante que nós: estavam de saco cheio dos compromissos da turnê, de só tocar coisas do disco deles. O show daquele dia ia ser só de antigas pérolas do rock.

Eles não estavam brincando. Ninguém acredita quando eu conto isso, mas a Cachorro simplesmente abriu o show com Heaven and Hell, do The Who, e emendou em Astronomy Domine, do Pink Floyd. Enquanto a calçada em frente ao sebo lotava, eles mandaram não sei quantas dos Stones, várias outras dos Beatles, coisas de Bowie, Clash... e muita música também dos seus conterrâneos de rock gaúcho: meninos, eu vi os versos do Graforréia Xilarmônica sobre pegar a xinoca e desbravar a coxilha emocionando corações cariocas a três quadras da Avenida Atlântica.

É preciso dizer, antes que eu me esqueça (isso é importante) que a banda tocava a pouquíssimos passos do público: no aperto do sebo, entre uma prateleira com as obras completas de Júlio Dinis e outra com As Melhores Piadas do Casseta e Planeta, podia-se estender o braço e encostar no cabelo seboso ou na espinha de algum daqueles roqueiros. Era demais pro meu pobre coração.

Lá pelas tantas, adentrou no Baratos um sujeito quarentão, alto, feio, narigudo, que eu nunca tinha visto na vida mas era claramente famoso: quando chegou, ele recebeu uma ovação maior do que a da própria Cachorro Grande. Usava uma camisa regata e um rabo de cavalo amarrado no cocuruto da cabeça, como a Pedrita dos Flinstones. No exato instante em que o viu, o baterista da Cachorro cedeu para ele o seu instrumento, e o cara altão se sentou e começou a tocar. Rapidamente, eu fiquei impressionado com a jam infernal que se instaurou. Ele era bom. Parecia um animal selvagem esporrando a caixa e os pratos. Qual seria o seu nome?

Bom, se eu não sabia o nome da figura, pelo menos tinha tomado uma decisão: aquele não era um ambiente para crianças. Se eu quisesse permanecer ali, tinha que virar homem. O que, naquele caso, significava beber a minha primeira lata de cerveja. Aquela tinha que ser a noite. Saí do sebo, caminhei em passos firmes até o ambulante mais próximo e pedi uma Brahma, com todo o dinheiro que eu tinha. Meu passaporte para a vida adulta, aos treze anos. Ela veio suando.

Abri a lata, mas não bebi ainda. Tinha que ser dentro do sebo. Voltei correndo pra lá, onde continuava correndo solta a jam da banda com o baterista doidão. Naquele meio tempo, o cara já tinha ficado empapado de suor (esqueci de dizer o quanto o Baratos era abafado) e, sem parar de tocar, ele começou a procurar por algo na platéia, sofregamente. Seus olhos pararam na minha mão. Ele começou a segurar um groove na bateria apenas usando o bumbo e o contra-tempo, e usou a mão desocupada pra apontar pra mim com a baqueta.

- Você! Tu mermo, moleque. Me passa essa cerveja.

Porra. Porra! Eu não tive escolha, estendi a lata pra ele, com as mãos trêmulas. A primeira da minha vida. Sem ter dado sequer um gole nela.

- Valeu!

Ele pegou a lata e virou ela inteira, em questão de alguns segundos. Rock'n'roll. Eu, que tinha passado noites e mais noites sonhando sobre como seria aquela primeira cerveja, não fiz nada. Fiquei apenas ali entre as estantes de livros, parado, olhando, enquanto meu passaporte para a vida adulta escorria diretamente pra dentro da garganta do Lobão.


*Estou simplificando a questão das tribos de então: para ser mais preciso, eu tinha amigos que diziam que eram mods, punks, emos, playssons, e inclusive uma amigona que se definia como gótica lolitaoitentista.

**Naquela época, todos achávamos horrível que a famosa casa da Barra tivesse mudado o nome de "Metropolitan" para ATL Hall. Hoje, em tempos de "Km de Vantagens Hall", reconheço que éramos felizes e não sabíamos.

Breno Góes

Um comentário:

Pedro Du Bois disse...

Falando em Cachorro Grande, perdeu quem não conheceu e conviveu com o pai do Beto Bruno: Bocajão!