quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Sarau Plástico Bolha

É hoje! É hoje! Avisem aos amigos, irmãos, pai, mãe, tia... Compareça!




máquina de chilrear


eu não sei falar
a língua de ‘ocês
de tramas e podres

eu não sei falar francês
e o meu inglês
não é lá grandes coisas

eu sei falar

de coisas pequenas
e grandes homens
e belas mulheres

e sobretudo

sei manter o silêncio
pousar os olhos sobre os teus
sei fazer poema

poema besta de amor

Santiago Perlingeiro

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Última lembrança


Não suporto cheiro de cigarro. Pior quando um fedelho metido a malandro acende uma cigarrilha do meu lado. Que desrespeito! A gente comendo e a fumaça entrando na nossa saliva. Não há nada mais deplorável do que observar uma vida jogada fora. Que história! Não faz mal, não faz mal. Só porque não traga, dizem os ignorantes que esse negócio não mata. Nem adianta, comigo não cola. É claro que a nicotina fica retida no organismo e vai para o cérebro; li isso há décadas, quando ainda fazia faculdade de letras. Na festa de formatura, meu pai me deu um cachimbo. Cabo reto e cabeça arredondada. Aroma delicioso. Sabor café. Mas sempre preferi cigarro a qualquer fumo. Naquela época todo mundo fumava, mas fumava para dentro, não fumava para fora, como essa droga de cigarrilha. E eu exagerava! Eu só seria escritor se fumasse, se enchesse o pulmão de muita nicotina, como faziam os escritores. Essa droga relaxa e concentra. Li isso na época da faculdade. Então comecei a fumar desde muito cedo, quando ainda escrevia prosas poéticas para um jornal de poesia criado na faculdade por um estudante lá do departamento. Era Valter. Não, Viriato. Eu tinha vinte e três anos. Lembro, claro. Desde aquela época, eu fumava, na certa, para não morrer. Não, não tinha medo da morte. Tinha medo de não viver. Hoje fala-se em carpe... Desculpa, não sei grego. Perdão, é latim. Só queria aproveitar mesmo. Não queria chegar na velhice e ser condenado ao maior dissabor da vida: o esquecimento. Sim, é a morte da alma. Existe castigo pior do que viver sem memória? Os médicos começaram a falar sobre Alzheimer. Que droga seria minha vida se me desse um branco toda vez que pegasse a caneta. Que droga seria viver e esquecer. É, eu fumava sem parar. Fumava para não morrer. Não tenho medo da morte. Tenho medo de não viver. Até o dia em que descobri que estava sendo um idiota. Ninguém na família sofre de esquecimento, não seria eu o primeiro. Parei de fumar, da noite para o dia. Fui um imbecil durante um vasto período, que prefiro esquecer. Por isso, rapaz, joga essa cigarrilha fora e me deixa jantar sozinho. 

— Tá bom, vô, dá aqui a sua última tragada e vou embora.


domingo, 26 de outubro de 2014

um poema de Rafael Perez


chantagem emocional
pra cima do duque

a duquesa reza pelo cu do marido
ele já nem tanto, ri

de mentirinha
é o que faz de melhor

como é torpe a corte inexistente
torpe igual tudo que existe exubera

um vaso chinês é brega.

Leandro Rafael Perez

sábado, 25 de outubro de 2014

poema eleitoral


A mudança é o mote da manada
as cabeças estavam na praça e nada mudou
e dois ou três que não marcharam
e quatro ou cinco que subiram no mastro
puseram a mão assim fechando a testa
mas não viram nenhum céu
no redemoinho dourado brilhante,
gritaram o que já era
e o show da vida continuou.
Se desligassem, tinham visto:
a luz era tão forte que descegava
que óculos escuros nenhum, nenhum
que viseira nenhuma adiantava,
e viseira sempre foi meio ridículo mesmo
então não era isso que fez diferença,
só que quem subiu naquele mastro
pensava nas casacas old-fashioned,
nunca adiantou.
O caso é que se olhassem aquilo
eram vários raios retos de luz,
vários raios com relâmpago e trovão
trovando pro mesmo lugar do coração,
mas ninguém queria tempestade de verdade
e as outras pessoas só queriam proteção,
só que aquelas linhas tinham um nome
tinham umas letras pra chamarem
muda.
Mas ah...
as questões ambientais vivem lá no mar,
moram fundo, bem no fundo pacífico
ou enfiadas numa floresta tropical
ou perdidas na montanha mais alta do sul
na toca solitária de um animal
esperando seus dez anos pra sair.
Quando o dia certo da primavera chegasse
o capitão planeta ia descer o morro
e ia repetir a ladainha do futuro
tentando equilibrar as botas vermelhas
na mesma corda que enforca,
que gira-gira no ar da aldeia
e enlaça o bailarino da gente
do rodeio e da revolução.
Mas o dia ainda não veio
e agora só as duas cores do crepúsculo
não servem pra iluminar as folhas amarelas
e nem que todas as plantas fossem plantadas
que todos os ventos espalhassem
e as mãos cavassem buraquinhos
e a terra se fechasse pro seu céu chover
aquela muda viraria uma mudança.

João Milliet

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

variações sobre teresa



a primeira vez que vi
teresa foi como se
fosse a segunda
os seus dentes
retornando em si
bemol os seus
cílios se atentando
à notícia diária
da terceira vez que
vi teresa o relógio
da esquina marcava
sete e quarenta e
cinco da manhã

a primeira vez que vi
teresa não achei o seu
lóbulo direito quando vi
teresa de novo percebi
o seu estômago arroxeado
da terceira vez que vi
teresa ela acenou pra mim
do outro lado da calçada
e desapareceu pela rua
das laranjeiras

a primeira vez que vi teresa
uns ruídos se ergueram por
entre as paredes e, atentos,
estabeleceram uma dinâmica
de grupo para fins de pesquisa.
quando vi teresa de novo
os ruídos se apresentavam para
a banca e todos diziam que
o trabalho tinha sido em
conjunto.
a terceira vez que vi teresa
os céus se misturaram com
a terra mas os ruídos logo
disseram que isso era
cientificamente impossível

eu acho que nunca vi
teresa

Gabriel Gorini

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Completamente leiga


completamente leiga
na leitura
da sua língua

me embrenhei
por cada sulco
palavra

em cada carne
navalha

viajando
no céu
da sua boca

quantas estrelas
eu contei?

quantas letras
cantei?

não sei
fiz que não vi
de repente era poliglota

versada nos mais diversos
dialetos
de nós dois
mesmos

Elza dos Santos

sábado, 18 de outubro de 2014

"O EXTRA ADMITE OPERADOR DE CAIXA"

(versão 4)

eu vou além
admito professor
grevista admito
estudante
protestante
vândalas min
orias admito
até a arrogância
(ânsia)
e a internet
(et)

só não admito a polícia
militar limitar militar
a democracia cia
a espionagem agem
a dura dita dura
dita do
jornal
na-cio-nal

o jornal o jornal
admite admite
tão mais
que eu ou
Extra
extra

Thiago Gallego

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Uivo Carioca

(Ode à Allen Ginsberg)

I

Eu vi as melhores mentes da minha geração destituídas de insanidade, uivando a nua histeria, carregando pelos arcos da Lapa o sonho de uma droga moral, um justo entorpecimento pra sujeira que cobre as ruas dos garis alaranjados pelos uniformes que se tornaram pele,

que moldaram anjos que limpam nossos becos levando consigo o que deixamos para trás, da imundice que é o que estripamos de nossas consciências, deixando os serafins laranjas levarem nossos pertences, o passado que consumimos, os objetos que não somos mais,

que criaram rodas de samba formando fogo para uma noite fria e inóspista, rodeada pelo males que são as cabeças das figuras que caçam no breu de uma coluna entre copos de cachaça,

que sustentaram flamengos para provar que o tempo é cíclico e a alma um retorno aos seios de nosso amor, flamengo eu vi como você cresceu, flamengo eu sei que você nos mata nessa entropia sádica de se dizer bairro da gênese, nos oferecendo em sacrifício para um ou dois deuses que morreram em suas ciclovias,

que andaram tanto para provar que nada é como os arcos da cidade velha, que tombamento é só uma desculpa para apreciar infiltrações e que vimos como afogou nosso ímpeto quando entregou as chaves das nossas portas para os vampiros que se vestem de terno,

que sabiam que escarlate são os olhos dos cavaleiros que vimos correr em 17 de junho, que negra é a síncope que agora cobre meus cabelos como chuva, dos seios que não ousei desmamar, da forma como enviamos cartas para Minas Gerais procurando algum poeta que soubesse nos dizer algo significante,

que comprou uma TV no dia da bastilha do Congresso brasileiro, que viu sombras dançando nos telhados e parapeitos se fazerem generais, sonhando com o dia em que o ladrilho das gentes ia ser encrustado no enorme mosaico amoral das repartições públicas,

que amou todos como que se fossem a última encarnação de uma alguma entidade persa, perdida entre o desencanto do universo que a renegou ao esquecimento das padarias de Santa Tereza,

que tergiversaram ao ver as tolas asas da hipnose do abutre, quebradas entre verbos drummonianos do sempreamar, pluriamar, e mil e uma besteiras que nos venderam na dogmática da poésis,

que se entregaram à carta de uma amante de dez anos atrás, e assim ficou lá preso ouvindo os debates e pensando em votar em branco, assinando documentos com as mãos trêmulas  sem perceber que nem sua assinatura o define mais,

que quis plantar hortas comunitárias e assim o fez de fronte a um canteiro de obras que agora sujam suas preciosas frutas e hortaliças com pó de cimento e assim petrificam suas mãos, seus olhos, suas unhas tortas de mago citadino,

II

Que te fez se entregar ao louco encanto desse sonho vil?

Mefisto! Sujo pertencimento ao limbo nacional! Sujo real e imoral!

Mefisto! O amor destituído da razão! Nobre encárcere das almas pensantes!

Mefisto! As crianças que aterrorizam a noite levando sonhos em bandejas do Habib’s!

Mefisto! O prazer de gritar no trânsito e buzinar, buzinar, buzinar! A contradição dos motores e das blitz arbitrárias que param todo movimento!

Mefisto! Carne e fantasma dos nossos falsos irmãos e do monarca urbano! Falsa moeda de troca para comprar televisões e ver o congresso ruir! Falsas máscaras negras que entoam cantos anárquicos da Rússia!

Mefisto! Onde nossas janelas encontram a negra faceta da falta de propósito! A fogueira que tanto nos oferece luz como queimaduras! A fogueira que não purifica, mas arde o sol de nossas vidas!

Mefisto! Todo capital investido em investimentos seguros de longo prazo! Todo dinheiro que pensa no amanhã, nas nuvens, no cósmos e na adoração pela clarividência!

III

Meu amor! Estou com você no Rio

onde você deve estar sentindo a fadiga

Estou com você no Rio

onde nada corre além do vento dos mares

Estou estou com você no Rio

onde os frangos ainda giram sem parar nas televisões

Estou com você no Rio

onde a pedra portuguesa me faz sentir imperfeito

Estou com você no Rio,

onde o ônibus me obriga a ser espectador

Estou com você no Rio

onde um dia olhamos pra nossas íris na simetria pirotécnica dos nossos crânios em chamas e nos
chamamos de humanos, seres e anjos

Estou com você no Rio

nos meus sonhos rimos e choramos e continuamos acreditando que as rachaduras no asfalto são mapas do mundo, donde saímos pros bares da vida sem sequer saber dançar

João Daniel de Carvalho




Menina, seu corpo é poesia

À linda Nina

Menina de olhos negros e profundos,
O seu corpo, ele é prosa, é poesia,
É a vida que anda nesse nosso mundo,
É transformar tristeza em alegria!

É o sonhar inteligente e fecundo
Das visões brilhantes e luzidias,
É o dizer das palavras para o mudo,
É o surdo escutar, rindo, as sinfonias!

E então me traz com seu lindo sorriso,
Que se abre contente ao leito do mar,
O encanto e a surpresa e o sorrir do riso

Que se estende em meu juízo ao lhe olhar!
É um sonho que hoje enfim realizo,
É um sonho que vai se realizar!

Guilherme Ottoni

terça-feira, 14 de outubro de 2014

2 poemas de Clara de Góes

i

A poesia não é triste nem alegre
nem pesada ou leve
a poesia é de passagem, avara
de tempo, cria um cinto de solidão
à sua volta e sucumbe
ao olhar que vai embora.:

ii

O poema me constrange à vida
o poeta me conduz, à cama
a saudade restitui-me ao canto
e o veneno faz do risco
aurora.

Clara de Góes

LUZISOLES


queridolhos encantamorados
caminholindo passopertado
carreganhando os olhos teus
brilhoriso andaluz
luzisoles faroletes
amorolhos são os meus

Ana Noronha

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

querida


tua leveza incomparável
semeada no ventre da
natureza mais dócil
abriga as dores do mundo
os calos, a eternidade
e os suspiros de todos os corações
dessa humanidade irrevogável
tu a carregas,

carregas-a com o peso do mundo
sobre teus ombros cansados
insaliente fardo azul maleável,
leveza insustentável

Bruna Lumack

Paradigma


passarinho na mão
ou dois voando
dois amores
em ilusão
ou um amor
amando
mais um sim que é tão sim
que se esqueceu e virou não
mais ou menos, meio que te esperando
essa eternidade nos teus olhos voando
vai ficar pra quando?
se ela tiver em falta
me dá troco pra cem?
aceito ações em alta ou cartão
tua alma na minha mão
meu bem
ou quem sabe
teu coração

Guilherme Bacchin

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Lançamento, Bizarros e Solitários, de Guido Brasil


Você, caro leitor, está convidado a participar da festa de lançamento do livro 'Bizarros e Solitários', de Guido Brasil, em parceria com a editora Organograma Livros. Será uma honra tê-lo conosco na consagração de mais essa parceria de sucesso!



quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Enconderijo


Vento. Frio. Inverno. Tudo passa e aqui dentro um turbilhão de emoções se constrói. Aquela menina temerosa está deixando esse coração em busca de aconchego. Ela quer proteção, procura refúgio em um lugar aquecido por carinho. Do lado de fora, os muros da cidade vão construindo a mulher de ferro. Aquela que não tem medo, pavor ou temor. Mas por outro lado, não tem sentimentos, ou pelo menos, os esconde muito bem para mim. Enquanto escrevo à caminho da Escócia não vejo final feliz para ela. Perdida dentro de si mesma. Parece tão obscuro o caminho que percorreu, a direção de sua vida. A mulher refugiada aparece somente quando suas emoções vacilam. Ela sofre. Dentro dela o inverno é constante e eu tenho vontade de acolher aquela menininha, mas tenho medo do metal e dos espinhos que cercam a mulher.

­ Janeiro de 2014, em algum lugar em um trem no Reino Unido

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Trechos de um diário de viagens pelo norte do Brasil II


O povo daqui é meio sério, meio “ar de preguiça”. Todos muito gente boa. Dão direções e indicações. É só fazer uma pergunta que logo uma conversa se forma. Mas o rosto costuma ser sério e a fala preguiçosa, por isso quase não entendo e tenho que perguntar de novo. Mas minha impressão é de que eu que pergunto com as palavras na ordem errada. E talvez o rosto sério seja por tentarem entender minha pergunta. Há um esforço sincero e simpático pelo entendimento, somos brasileiros.
A tal da preguiça na fala deve ter alguma coisa a ver com dormirem em redes. Já estou contaminada.

(...)

Sai mosquito!
Que essa rede não te pertence

Ontem a chuva foi laranja aqui no Marajó

(...)

Hoje fomos para Araruna. Fomos de bicicleta até a balsa que leva a Soure. Chegando em Barra Velha atravessamos na canoa nós e as bicicletas. Só ouvíamos o vento e os pássaros ao longe. De um lado, o rio que parece mar; do outro, mato. Ser empurrado pelo vento a favor na bicicleta é uma delícia depois do esforço de ir contra ele. O reflexo das nuvens na areia molhada é lindo, como pedalar no céu.

(...)

Subindo, o rio Amazonas vai ficando estreito, a mata mais próxima. Há vários moradores de beira do rio em suas casas de palafitas. As mães e suas crianças se aproximam do barco em canoas. As crianças gritam um coro desconhecido, como animais esfomeados. Algumas pessoas do barco jogam sacolas bem fechadas contendo roupas, comida e não sei o que mais. É uma visão bonita, curiosa e corajosa, mas ao mesmo tempo tão forte. Tiro fotos e sinto o peso da beleza na pobreza.

(...)

Terminei o livro de Bernie Krause com uma intensa tristeza da devastação que com nosso “progresso” ilimitado provocamos à natureza. Chega a ser irônico estar nesse barco, entrando na floresta Amazônica. Minha vontade era contemplar a musica da natureza e lidar com meu silêncio interior. Mas aqui todos berram música machucando os ouvidos de qualquer um. O som abafa e não acredito que chegue à floresta; mas penso no impacto fora e principalmente embaixo do rio com o barulho do próprio barco. Se para mim é tão barulhento, imagina para os animais dentro e fora d’água. Esperava ver mais da natureza beira-rio e não duvido nada que isso esteja relacionado. O choro fica preso e me sinto culpada pois também estou dentro dos aviões que sobrevoam paisagens naturais impedindo suas biofonias locais. O quanto nos prendemos a necessidades inúteis... Criamos necessidades para criar utilidades em inutilidades.
E dentro do barco um gorila macho alfa sem camisa e crucifixo de madeira no pescoço impõe seu tráfico de drogas. Cada gorila em seus galhos faz mais balbúrdia que os outros. Fico quietinha no meu, tentando fazer alguma diferença.

(...)

Fumamos um todos juntos, dez dias sem fumar nem beber fazem diferença no corpo. O lugar, as palavras e a música me levam de volta ao chá. O dia de hoje é uma preparação para a consagração de amanhã. Tudo faz sentido.

(...)

Sinto que o que escrevo é bem mais ralo do que o momento que desejo retratar. Mas contanto que o escrito me leve de volta àquele sentimento o ato já vale por si.

(...)

Sentada na cadeira de praia de marca “mor” pela segunda vez, vendo o fim do dia na clareira. Aqui as cores vão mudando e escrevo com o último resquício de luz do céu. Me sinto bem. Com vontade de ficar em silêncio, embora tenha conversado o dia todo e, o mais difícil, em outra língua. Sanne é ótima e nos aproximamos muito.

(...)

Demorei para querer fechar os olhos. E só a decisão de querer a segunda dose já pareceu corajosa para mim. É preciso coragem para querer entrar mais ainda dentro de si. Não sinto que resolvi muitas coisas, não estou tão cansada, talvez não tenha trabalhado tanto. Mas me conectei com a natureza, com os sons, com o ventre materno (como quero ser mãe!), com os guardiões da floresta, com o amor pelas pessoas. As primeiras estrelas surgem de novo.

(...)

Sanne está partindo. Os meninos estão na cháoca e ela fumou um cigarro atrás do outro sempre dizendo que partiria no próximo. Ficamos tão íntimas em tão pouco tempo. Falamos muito, mesmo sendo gostoso ficar calado pós chá, a conversa fluiu. E os silêncios, quando vieram, não foram constrangedores. Nunca vou saber exatamente a busca dela, mas de alguma forma ela se curou. Aqui, ela lembrou das florestas perto da cidade dela na Holanda, onde os ciganos ficavam. E como tinham muitos cachorros e apanhadores de sonhos pelas árvores. A special place not so different from here.

(...)


Essa cobra dourada dançando é o Tapajós se pondo.

(...)

Luísa Pollo (parte I)

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Dentro de Ariane


As coisas não poderiam estar melhor entre nós. Agora eu moro dentro de Ariane. Depois que eu passei a morar dentro de Ariane, tudo ficou mais calmo. A paz é constante e o silêncio se ouve lá de fora. Está tudo bem mais seguro. Ela diz que é porque agora eu sou um novo homem. Ela diz que depois que eu passei a morar dentro dela, que ela não sente mais a falta das pessoas que já se foram. Dizem, e eu não estou aqui para negar, que quando se perde alguém, perde-se também a esperança. E estar dentro dela lhe fez sentir tudo de novo. Nos divertimos à beça. Ariane dá gargalhadas, quando lhe faço cócegas por dentro. E eu fico todo bobo! Esperei por isso há anos. Ela me diz que quer ouvir coisas bonitas saindo de dentro dela. Eu digo: meu bombom de chocolate com recheio de coco. Sorvete de queijo com doce de leite. Minha delicinha. Minha riqueza. Meu pitéu. Minha coisinha. Coisinha de louco. Agora sou eu quem a enche de expectativas. Esperança de gol em reprise de futebol. Balão de gás que dure para sempre. Três partes iguais de raspadinha. Não poderíamos estar melhor. Dentro dela não há frio. E a chuva nunca incomoda. Sempre que há calmaria, ela repousa as mãos sob os seios e conversa comigo:

— Existe alguma coisa que você ama?
— Amo você, Ariane.
— Quanto?
— Muito.
— Desde quando?
— Desde sempre.

('Dentro de Ariane' faz parte de uma série, da qual já publicamosa 'Ariane com asas')

domingo, 5 de outubro de 2014

Cor e som


Acendo o cigarro e apago o sol.
Na rua mil passos e mil casos:
a mais nova universitária ri em meio a muitos colegas — não vê tanta graça, mas vê
muita necessidade;
o garçom se abana pra fugir do calor do inverno — odeia aqueles moleques, vê uma
cerveja aí;
o estagiário da grande empresa não ouve o que os amigos falam — pensa no
boné que usa para esconder a calvície precoce, bomba é trocar cabelo por
músculos;
os maconheiros se amontoam nas esquinas, sempre do lado oposto à mão dos
carros. Fumam e pensam mil coisas. Fumam e esquecem mil e uma coisas;
o indigente tenta conversar com os maconheiros — ele diz ter nome, mas para
não ser indigente não basta ter nome, é necessário pessoas que saibam seu
nome;
o dono discute com o que tentava fumar dentro do bar — vou tomar multa, vou
tomar multa;
o vendedor de amendoins tenta vender amendoins, e quem sabe algumas histórias
também;
o casal briga — ela sabe que não se importa, ele sabe que só se importa com ela;
a garota (tão bonita ela, gente!) se exibe. Ah, como gosto dos olhares!;
o cachorro tenta arranjar uns restos de alguma mesa — de qualquer uma, qualquer
resto, e se possível, de todas todos;
o DJ bota as músicas escolhidas a dedo, durante três madrugadas muito
trabalhosas (ninguém dá a mínima, entretanto);
a bêbada (ela sempre fica bêbada rápido e passa vergonha) vomita e chora ao
mesmo tempo. Até sabe porque vomita, mas o porquê do choro se alterna a
cada fração de segundo;
os policiais olham os maconheiros, e os maconheiros fogem do olhar dos policiais
— quem eles acham que enganam?;
o pai procura a filha — ela falou que ia ficar na casa da amiga, ela vai ver!;
a filha ri ri ri bebe bebe bebe e vê o pai. Corre. Some;
o irmão vai pela primeira vez a um bar — não para de sorrir. Nem gosta muito do
bar, mas ficou tão feliz por sua irmã ter chamado!;
a irmã pede para que os amigos maneirem nos papos enquanto seu irmão vai ao
banheiro — ai, por que chamei ele?;
eu olho, e vejo meu corpo misturar-se à noite.

Sou olhos e ouvidos, sem língua e sem mãos.
Engulo o mundo sem mastigar, e a cada vez sinto-o mais indigesto.

Damiens

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Anúncio de jornal


por Leonardo Ferrari


não sei se te amo
ou se te odeio
logo eu
que fugi sempre
ao encontro
que sonhei sempre
o momento distante
que esperei sempre
o dia em que diria
enfim
agora
não veio
veio você
silenciosa e meiga
e discretamente me disse
nada
nunca
será
mais real
do que esse exato instante
como naquele sonho que eu tive
e não te contei
em que havia um mar
cuja água não passava
nunca do joelho
e era impossível mergulhar por inteiro
como naquele sonho
estamos aqui
eu e você
e aquele sentimento de que
ficou alguma coisa
de fora mas não
tudo
é só
isso
tudo
não sei se te amo ou se te odeio.

Felipe II