segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Última lembrança


Não suporto cheiro de cigarro. Pior quando um fedelho metido a malandro acende uma cigarrilha do meu lado. Que desrespeito! A gente comendo e a fumaça entrando na nossa saliva. Não há nada mais deplorável do que observar uma vida jogada fora. Que história! Não faz mal, não faz mal. Só porque não traga, dizem os ignorantes que esse negócio não mata. Nem adianta, comigo não cola. É claro que a nicotina fica retida no organismo e vai para o cérebro; li isso há décadas, quando ainda fazia faculdade de letras. Na festa de formatura, meu pai me deu um cachimbo. Cabo reto e cabeça arredondada. Aroma delicioso. Sabor café. Mas sempre preferi cigarro a qualquer fumo. Naquela época todo mundo fumava, mas fumava para dentro, não fumava para fora, como essa droga de cigarrilha. E eu exagerava! Eu só seria escritor se fumasse, se enchesse o pulmão de muita nicotina, como faziam os escritores. Essa droga relaxa e concentra. Li isso na época da faculdade. Então comecei a fumar desde muito cedo, quando ainda escrevia prosas poéticas para um jornal de poesia criado na faculdade por um estudante lá do departamento. Era Valter. Não, Viriato. Eu tinha vinte e três anos. Lembro, claro. Desde aquela época, eu fumava, na certa, para não morrer. Não, não tinha medo da morte. Tinha medo de não viver. Hoje fala-se em carpe... Desculpa, não sei grego. Perdão, é latim. Só queria aproveitar mesmo. Não queria chegar na velhice e ser condenado ao maior dissabor da vida: o esquecimento. Sim, é a morte da alma. Existe castigo pior do que viver sem memória? Os médicos começaram a falar sobre Alzheimer. Que droga seria minha vida se me desse um branco toda vez que pegasse a caneta. Que droga seria viver e esquecer. É, eu fumava sem parar. Fumava para não morrer. Não tenho medo da morte. Tenho medo de não viver. Até o dia em que descobri que estava sendo um idiota. Ninguém na família sofre de esquecimento, não seria eu o primeiro. Parei de fumar, da noite para o dia. Fui um imbecil durante um vasto período, que prefiro esquecer. Por isso, rapaz, joga essa cigarrilha fora e me deixa jantar sozinho. 

— Tá bom, vô, dá aqui a sua última tragada e vou embora.


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