sábado, 30 de setembro de 2023

Solstício II


As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates

(Clarice Lispector, no conto "O Amor")


a pútrida primavera

não nasceu desesperada

abriu o floral nativo

despertou fogo nas noites

nua da ideia de medo

justamente aquilo que

não lhe faria amarela

fazia mau ouro e o rubro

o inferno escarlate

que amava-me com nojo Luisa Issa

Solstício I

suspiro em medo? não;

— primavera em verso

nascendo na pele da

dama desesperada,

lembrança dum nativo

das noites cariocas


— justamente aquele

que inverna a ânsia de

fazer-se gente aos olhos

desapelados do circo. Luisa Issa

sexta-feira, 29 de setembro de 2023

REFLEXOS


Não sei de onde tiramos a moda desses grandes arranha céus de vidro. Acho que, para alguns, como a roda, são o rosto, austero, do progresso. Para mim, são só gigantes me encarando de ray-ban com lentes polarizadas. Vicente Valle

quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Um haicai de José Bial

A pata peluda

nas lombadas amarelas

duma carambola

José Bial

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Um poema de Isabelly Gama

quando Ismália enlouqueceu pôs-se no mundo a viajar amarrou uma corda nos pés e foi do grand canyon se jogar de bungee jumping Isabelly Gama

terça-feira, 26 de setembro de 2023

CONTRIBUIÇÃO MILIONÁRIA?, de Zilka Vasconcelos


Botei maionese no doce de leite, E agora não querem que eu faça o sorvete. Zilka Vasconcelos

segunda-feira, 25 de setembro de 2023

Fortes convicções sobre Raul Bopp




Lucas Viriato

TÁGIDE

Sou uma tágide,
Ninfa do Tejo,
Cantada pelo Poeta,
Nereida que nada no rio,
Desci da Espanha
Num caudal imenso
Até chegar ao mar de Portugal.

Sou uma tágide,
Ninfa do Tejo,
O meu desejo é inspirar o Poeta,
Dar-lhe som alto,
Sublimado,
Estilo solene
De quem toca com fúria
E sem pejo
Um saxofone de ouro.

Sou uma tágide
Ninfa do Tejo,
Vejo pinhais e carvalhos,
Montanhas pelas margens,
Passo por pontes,
Docas,
Paquetes
Até o estuário
Onde pássaros gigantes
Fazem ninhos
Em estranhos ramalhetes.

Sou uma tágide,
Ninfa do Tejo,
Noiva e sereia,
Rosa e areia,
Embora ninguém ouça minha voz
Latejo ainda,
Oculta em ondas
Como as naus e as caravelas
Que partiram
Rumo à foz.

Sou Tágide,
Ninfa do Tejo,
Consolidei tua obra, Poeta.

Raquel Naveira

domingo, 24 de setembro de 2023

Arte poética, de Alexandre Bruno Tinelli


É tempo de aprender
a dominar as cordas
que entrançam a luz
no limiar das horas.

É tempo de aprender
as cordas que me dominam
e de domar as horas
sob a luz da disciplina.

É tempo de aprender
para depois abrir mão
de cordas luzes e horas
que tocam meu coração.

Alexandre Bruno Tinelli

sábado, 23 de setembro de 2023

Homenagem à Flora Diegues


À janela de um prédio em Ipanema, um milagre. Como pôde um bebê de apenas poucos meses cair do segundo andar de um edifício e sair ileso? Não sei se acredito em destino e coisas do tipo, seria Flora uma alma destinada à morte desde seu nascer? Seríamos todos? Eternamente perambulando por nossas consciências estão os pensamentos que recorrem ao fim. Tudo termina em fim? Tudo termina em fim.


Existem teorias (universalmente aceitas e renomadas) que ditam o tempo como relativo, mas se relativo o tempo, então é também relativo o conceito de início, meio e fim. A forma como Einstein relativiza o tempo é mostrando que os mesmos fenômenos demoram tempos diferentes para acontecer levando em conta o espaço que ocupa cada referencial (ou pelo menos é isso que eu entendi).

O fim da vida de Flora ainda não chegou aqui. As memórias, emoções, sentimentos e afetos permanecem vivos demais. É impossível a separação da pessoa que era Flora das memórias que Flora deixou, tudo é Flora. 

Como pode o suposto “fim” de Flora fazer aflorar em minha mente tudo que ela era pra mim? Flora pra mim era exemplo de coragem, de força, de sabedoria e de futuro. E quanto mais velho eu fico, mais vejo Flora em mim.

Eu amo arte.
Eu amo ser Diegues.
Eu amo a Escola Parque.
Eu odeio a Escola Parque. Eu sempre soube que a Flora era confusa. Acho que nunca estive tão confuso. Acho que a imperfeição dela me acalma. Sua imperfeição me ensinou que a hierarquia entre erros e acertos é somente catalógica. Nossas piores falhas e nossas maiores conquistas são igualmente válidas e importantes. Te amo, Flora. Obrigado


José Bial

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Fantasmas, um poema de Gabriel Harle


Afoguei-me. 
Afundei, de mãos atadas,
dentro de meu aquário.
O ar, abandonando meu peito,
retornando à superfície e se distanciando
Me fazendo despencar
Me fazendo um com a água.
A mesma que esmagava meu peito
transformava-me gota,
transformava-me mar
Levado pela corrente.


Braços abertos ao alcance de Morfeu.
Extensos ao acaso,
mas sem desejo de movê-los.
O deus, no ponto mais profundo,
recebeu-me calma e seriamente
com uma expressão neutra, indiferente.
Olhos fechados, 
preparado para atingir a areia,
receoso de sentir seu áspero toque
Ansioso, apavorado.

Subitamente, o oxigênio restante em meus pulmões,
como uma bactéria a se multiplicar,
inunda meu ser, emergindo-me à superfície
e elevando além dela.
A brisa, morna e acolhedora
evocante das praias de Cabo Frio,
gentilmente envolve meu ser em um caloroso abraço 
transformando-me vento,
transformando-me ar
Livre pelo céu.

Gabriel Harle

quinta-feira, 21 de setembro de 2023

3 TENTATIVAS DE 3 POETAS EM 3 VERSOS:

TENTATIVA 1- O QUE VÊ
Uma mulher suspeita observa dois homens num museu. Um deles sussurra algo no ouvido do outro e— enquanto isso percebe que ela os observa. Ela desmonta e pega seu caderninho. Azeite, cenoura, cebola… amendoim! Ela anota. Ele nota e comenta. Eles saem. Ela fica.


TENTATIVA 2- O QUE CHORA

Quatro horas nesse ônibus e eu aqui ainda escrevendo esse mesmo poema que não sai por mais que eu tente eu insisto que eu te amo mas meus poemas revelam que é mentira e eu ainda não acredito neles mas certamente eles sabem mais do que eu.


TENTATIVA 3- O QUE BEBE (ADENDO)

Escrevo este poema sem versos porque estou bêbado e nessa pequena — nesse pequeno guardanapo não cabem as divisões necessárias então melhor sacrificá-las. O sacrifício sempre cabe. Escrevo este poema sem versos porque preciso. Preciso escrever este poema porque — estou bebendo — estou bebendo — Estou bebendo pelo mesmo motivo que preciso escrever esse poema. Me convenci que preciso e sendo prec— me convenci que preciso e aqui estou, tornando minhas ideias sobre mim mesmo na realidade.

José Bial

quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Um texto de Isabelly Gama

Não há mais trânsito nas ruas: as pessoas agora voam. E o par de asas tem se tornado uma ferramenta interessantíssima, visto que não tem cheiro algum. Cor tem, à sua escolha. E isso basta. Basta nada. Tem também a questão do barulho, que não se pode ter, mas tem, mas não pode. Então deixa, fica daquele outro jeito. Para sim. As coisas são assim mesmo. E se quebrar, leva no mecânico. É o jeito. Ou seja, basta pincelar com cola à prova de sol e… voilà. Isabelly Gama

terça-feira, 19 de setembro de 2023

O canto, um poema de Bruno Jablonski


como é lindo o bom canto
como um cantinho exato,
aresta rara. mil araras 
pra um rouxinol, pra 
trezentos papagaios 
sem charme sem fascínio

estar encantado pela 
voz de alguém, assim 
mora a magia: som saindo
desimpedido harmonioso
em desafio ao espaço

é uma nota em estilingue
às vezes flecha
(o grito feio sendo catapulta)

cantar bonito é um rio, um rito
cantar bonito é uma escuta

Bruno Jablonski

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Cecília Meireles: uma análise de poemas selecionados de Viagem, por Tatiana Cavalcanti


Nascida em 1901, Cecília Meireles foi uma das grandes vozes femininas— senão a maior—da poesia brasileira e nos deixou um extenso legado poético marcado pelo intimismo, pela musicalidade e sensibilidade. Segundo Novaes Coelho (2001), a poesia de Cecília exprime “não só a fusão das múltiplas e altas experiências formais e temáticas da poesia-século XX, mas principalmente o difícil avançar em meio à fragmentação dos valores e paradigmas, imposta pelo Modernismo” (p.14). Neste trabalho, proponho-me a analisar brevemente alguns poemas retirados do livro “Viagem” (1937), localizando-os na obra e no contexto histórico e literário da época.

Em suas primeiras experimentações poéticas, iniciadas poucos anos antes da Semana de Arte Moderna de 1922, Cecília se viu atraída pelo embate entre as duas correntes dominantes da época— o parnasianismo esteticista e o simbolismo espiritualista, mostrando-se especialmente interessada na tradição lírica simbolista portuguesa. Anos depois, no entanto, a autora rejeitaria essa sua poesia inicial, preferindo tratar os poemas de “Baladas para El-Rei” (1923) como o seu verdadeiro ponto de partida (NOVAES COELHO, 2001). Em 1937, após quatorze anos, Cecília enfim vem a publicar “Viagem”, livro que marcará a sua trajetória poética para sempre.

“Viagem” (1937), composta por 87 poemas líricos e 13 epigramas, foi a obra que ofertou a Cecília Meireles o primeiro prêmio de poesia da Academia Brasileira de Letras em 1938, colocando-a “na primeira linha dos poetas brasileiros, ao mesmo tempo que se distinguia como a única figura universalizante do movimento modernista” (DAMASCENO, 1967, p.19). Segundo o crítico Darcy Damasceno (Idem, p.20), enquanto os contemporâneos modernistas de Cecília se viam quase presos em seus “vícios expressivos”, no “anedótico” e no “nacionalismo, a poeta expandia os horizontes da conjuntura cultural da época, misturando tradição e inovação. Trazia indagações filosóficas relacionadas à vida e à morte, à religião e a outras temáticas de cunho universal, fazendo uso de um lirismo brilhante.

Neste estudo, tenho interesse em evidenciar o modo como a poesia ceciliana evoca imagens da natureza para construir suas percepções e sensações. Em Discurso, por exemplo, a autora diz que “Um poeta é sempre irmão do vento e da água”. Em sua obra, o contemplar é um constante exercício de apreensão das coisas do mundo, e ocorre de tal forma que não haja um afogamento cego nas emoções— há sempre um distanciamento daquela realidade e uma serenidade presente em seus versos. Em muitos casos, a poeta parece fazer uso da atividade poética como uma forma de se proteger contra os choques e insatisfações da vida.

Em Canção, assistimos ao naufrágio do sonho do eu lírico de que ele próprio não consegue se desvencilhar.

CANÇÃO 
 
Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
– depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio…

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.

Nos primeiros dois versos, seria possível termos a impressão de que se coloca o sonho no navio para que ele saia navegando, em um movimento que revelaria a esperança de que ele se realizasse em algum momento, assim como se coloca uma carta em uma garrafa no mar à deriva. No entanto, essa noção é rapidamente subvertida quando descobrimos que o eu lírico abre as águas com as mãos na intenção de levar o navio ao fundo do mar. Ele ainda sente os efeitos dessa ação nas mãos molhadas e na cor azul que escorre dos dedos, colorindo a areia.

Essa quebra de expectativa faz com que nos perguntemos o motivo de tal atitude, que parece uma espécie de autossabotagem— afinal, o eu lírico deixa seu sonho para morrer. Interessantemente, ele não parece mostrar nenhum tipo de remorso, e inclusive afirma que “chorará quanto for preciso, / para fazer com que o mar cresça”, e que o sonho, enfim, desapareça. Temos, ao que tudo indica, uma espécie de resignação em relação a se desfazer do sonho, talvez por ser inalcançável. É como se, ao fazê-lo, o eu lírico se livrasse das expectativas que criou para si mesmo, e tornasse ao início: “praia lisa, / ondas ordenadas”. Depois de tanto chorar— porque não é fácil o processo de se desfazer de algo que tanto se quis em algum momento—, vem a calmaria, e os olhos secam. As mãos, depois de árduo esforço, acabam quebradas, o que parece ser o único vestígio dessa tentativa de apagar as expectativas do passado.

Encontramos em Aceitação uma forma semelhante de conformação com o fato de não conseguir o que se deseja.

ACEITAÇÃO 
 
É mais fácil pousar o ouvido nas nuvens
e sentir passar as estrelas
do que prendê-lo à terra e alcançar o rumor dos teus passos.

É mais fácil, também, debruçar os olhos no oceano
e assistir, lá no fundo, ao nascimento mudo das formas,
que desejar que apareças, criando com teu simples gesto
o sinal de uma eterna esperança.

Não me interessam mais nem as estrelas, nem as formas do mar,
nem tu.

Desenrolei de dentro do tempo a minha canção:
não tenho inveja às cigarras: também vou morrer de cantar.

Nas duas primeiras estrofes de Aceitação, o eu lírico parece falar de um amor inatingível, uma vez que considera mais fácil realizar atos virtualmente impossíveis, como “pousar o ouvido nas nuvens” e então “sentir passar as estrelas” do que alcançar os passos da pessoa amada. Até mesmo “debruçar os olhos no oceano” e assistir ao que se passa no fundo do mar é mais simples do que desejar que essa pessoa apareça. A própria menção a uma esperança “eterna” revela a força que teria o gesto desse indivíduo se ele simplesmente surgisse na vida do eu lírico. O distanciamento criado entre o amor e o eu lírico desde o início, no entanto, já parece indicar que não haverá forma de alcançá-lo.

A estrofe seguinte, por sua vez, demonstra uma resignação— uma aceitação—  de que não há futuro em correr atrás desse amor impossível. Ao rejeitar os signos da natureza aos quais o eu lírico havia comparado a pessoa amada, mostra um desejo de tentar seguir em frente e esquecer tal desilusão. Para isso, o eu lírico se volta para aquilo que lhe dá os meios de expressar seus sentimentos e extravasar sua dor: uma canção própria. Nesse sentido, compreende-se a intenção da poeta de estabelecer uma comparação com a cigarra: assim como o inseto, que canta durante toda a sua vida, também é essa a vontade do eu lírico— não de morrer de cantar, mas de cantar até morrer. O poema termina, portanto, não em um tom penoso, mas determinado.

Assim, observamos a utilização de elementos naturais de forma altamente imagética nos dois poemas para que sejam provocadas reflexões na mente do leitor. Em Canção, a metáfora do mar que engole o sonho mostra a pretensão de suprimir um desejo que provavelmente causa dor, mas que poderá ter efeitos duradouros. Já em Aceitação, a evocação das nuvens, das estrelas, do mar e até mesmo da cigarra nos ajudam a refletir sobre temas como a mutabilidade das coisas, especificamente a desilusão amorosa e sua superação por meio da arte.

Tatiana Cavalcanti

joão

Volte lá e diga a João que lhe corto o pinto se me trair e
eu ficar sabendo. Mas só se eu ficar sabendo. Que se vire
pra esconder seus desatinos.

Ana Elisa Ribeiro

domingo, 17 de setembro de 2023

Distrito Federal


ainda há galhos tortos de serrado
onde se tornou concreto
o traço arquitetônico deste plano piloto
não sei onde vi o nordeste
não no barro vermelho Taguatinga
não no ar áspero cortando narinas
talvez no esquecimento

Adriano Lobão Aragão

sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Mar


A forma quase hipnótica do encaracolar das ondas respinga gotículas de algo momentaneamente grandioso. Girando, engolindo tudo para si. Um redemoinho espiral, assustador e natural. Se Machado temia a indagável ressaca, quem sou eu para não ouvi-lo?


Olho em volta. Como se a imensidão já não fosse solitária o suficiente, pequenos borrões mostram o que os olhos não enxergam com nitidez. Talvez não seja tão solitário. E como o estatelar de um vidro, o ciclo recomeça. A espuma chega com o quase tilintar do resto de pélago e mostra a doçura dos pequenos chiados. Apaixonantes e inegáveis. E quem dera eu pudesse ser a própria ressaca. Recomeçar a cada batida na areia, engolir e atrair tudo para mim.


Anny Gomes

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

TUCANO

Os pais:


Uma briga como todas as outras que

não acabam até que uma das nossas

crianças apareça. Daí, nos amamos 

e é uma delícia como sempre é.


As filhas:


E aí eles levam a gente pra passear

e ver os bichinhos e as árvores.

Os passarinhos que brincam nas árvores

que a gente olha quando vai passear.


Os passarinhos voam e cantam

mas logo acima os tucanos

se jogam de rasante atacando


os passarinhos que gritam se desesperando,

agora eu entendi porquê o tucano tem esse bico.

É pra matar os outros bichos. Tão lindo. Colorido.

José Bial

quarta-feira, 13 de setembro de 2023

Um poema de Isabelly Gama

cavo no fundo de mim mesma as palavras como uma mina de dicionários próprios a ser explorada 

encontro vocabulários brutos 

garimpo as melhores sílabas 

prontas pra uma métrica sem ritmo vasculho as palavras inventadas as locuções desregradas 

o verso inexistente 

escavo 

perfuro 

raspo as paredes de mim 

me arranho na esperança de ter uma mísera poesia debaixo das minhas unhas

Isabelly Gama

terça-feira, 12 de setembro de 2023

PRÊT-À-PORTER, um poema de Zilka Vasconcelos

Crocodilai-vos, tristes lagartixas, Proporcionando bolsas às madames. Zilka Vasconcelos

segunda-feira, 11 de setembro de 2023

Depois da Primavera, de Guilherme Freire


Os dias passam a durar mais
E todas as noites são iguais
O calor penetra nos dias
Tirando o espaço da alegria

A brisa passa a cantar
Crianças correm para nadar
Sentindo o leve aroma do sol
Cada uma um girassol

O mar canta para seus convidados
Que pulam felizes, admirados
Sedentos por areia e água
Para finalmente correr da mágoa

Mas o brilho do sol é forte
E correr na areia dá má sorte
Onde estão as flores da primavera?
Aquelas que sorriam de forma sincera

Seria possível tolerar o Verão?
Por esse crime que leva à solidão
Sem as flores, sem aqueles beijos
Adocicados como goiabada no queijo

Restam apenas boas lembranças
Que deram as mãos para as esperanças
Lentamente escapando pela terra quente
Escondendo-se na noite dormente

Seria um erro amaldiçoar o mar?
Amante da temperatura sempre a aumentar
Ou talvez arrancar esses girassóis
Sempre a louvar a luz feroz

Também cantam alegres os pássaros
Orgulhosos, melódicos, pesarosos
Para esconder sua enorme saudade
Chorando à noite com sinceridade

O crepúsculo surge de repente
Escondendo o brilhante sol gentilmente
Momento oportuno para lamentar
E daquelas belas flores se lembrar

O mar se aquieta no escuro
Levando a areia para um lugar seguro
Ninando os peixes com suas cantigas
Maravilhando-os com canções já esquecidas

Por um momento é noite
Tempo ínfimo, sendo desnecessário o convite
E a saudade inicia seu coro
Implacável a segurar o choro

Gritam com aquela estação
Os intranquilos sem direção
Desprezando os movimentos da Terra
Negando a ida da Primavera

Mais uma vez o crepúsculo
Surgindo sem nenhum escrúpulo
Elevando o sol que surge cantando
Mais uma vez a todos iluminando

Um pássaro desgostoso bate as asas
Sobrevoando descontente todas as casas
Procurando uma flor para ser beijada
Fragmento da estação tão amada

Existiam flores, mas não agradavam
Apenas da Primavera adoravam
No Verão sobram apenas sementes
Simbolizando os amores ausentes

E a saudade batia
Cantando baixo, em harmonia
Devorando o presente distante
Abraçando o passado amante

Mas as sementes caem no chão
Esperando a querida estação
Falta apenas o verão ser regado
Para o futuro não ser largado

Guilherme Freire

domingo, 10 de setembro de 2023

exemplo, quarteto de Lucas Viriato


esse exercício me parece fácil
e tem quem ache que ficou difícil
a ligação que se constrói tão fácil
mas que fuzila como faz um míssil

Lucas Viriato

sábado, 9 de setembro de 2023

Biodiversidade, de Paulo Henriques Britto

Há maneiras mais fáceis de se expor ao ridículo,
que não requerem prática, oficina, suor.
Maneiras mais simpáticas de pagar mico
e dizer olha eu aqui, sou único, me amem por favor. 


Porém há quem se preste a esse papel esdrúxulo,
como há quem não se vexe de ler e decifrar
essas palavras bestas estrebuchando inúteis,
cágados com as quatro patas viradas pro ar. 


Então essa fala esquisita, aparentemente anárquica,
de repente é mais que isso, é uma voz, talvez,
do outro lado da linha formigando de estática,
dizendo algo mais que testando, testando, um dois três, 


câmbio? Quem sabe esses cascos invertidos,
incapazes de reassumir a posição natural,
não são na verdade uma outra forma de vida,
tipo um ramo alternativo do reino animal?

Paulo Henriques Britto
Paulo Henriques Britto, além de poeta, escritor, professor e um dos maiores tradutores em língua inglesa do Brasil, também sempre ministrou, ao longo da vida, diversas Oficinas de Poesia. É das oficinas do Paulo que saem muitos dos poetas que vêm estrelar as páginas e os espaços do Jornal Plástico Bolha. Ao longo desse e dos próximos meses, alguns poetas inéditos que estão sendo publicados aqui cursaram sua última oficina, no primeiro semestre desse ano. Sejam bem vindos!

sexta-feira, 8 de setembro de 2023

Dois decassílabos de Vicente Valle


Hoje te falo, guarani destróier
Digo, levado, chafariz do mato

Vicente Valle

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

GAZAL PARA NASRIN SOTOUDEH



A terra amarela que viaja até aqui.
Através de filmes que não poderiam existir.
De onde vieram os maiores poetas Abbas, Mohsen, Jafar Panahi.
Com poucos recursos e muitos motivos se filmam nos outros e falam de si.
Cultura tão parecida e distante intimidades, desejos e vidas que assisti.
Rostos tão brasileiros e morenos Iranianos, Turcos e Árabes que parecem daqui.
E que todos assistam Táxi Teerã e conheçam de perto a Nasrin
para sentir a tragédia que está se anunciando…
Sua prisão trágica que não podemos silenciosamente assistir.


José Bial

Na foto, Nasrin Sotoudeh, advogada de direitos humanos iraniana.

quarta-feira, 6 de setembro de 2023

Dia D

até aquele dia eu 

ouvia a primavera no vento 

podia saborear a cor das abelhas
sabia falar a língua dos mares
até aquele dia

até aquele dia que eu tateei 

na minha própria voz 

o mar no céu 

em uma tempestade desesperada
de um nativo que tá sendo invadido
por dentro

como o mar não me avisou?

até aquele dia…

que eu ia perdendo os sentidos
e o sentido da vida que agora era…

de um nativo que agora sabe que
é perigoso dançar debaixo das noites

justamente nas noites que 

eram tão claras! e não são mais claras
estão tão escuras

como o mar não me avisou 

que eu ia perdendo o cheiro das coisas
que eu ia perdendo o cheiro do ar


sem respirar 



como o mar não me avisou 

que eu ia me acabar em mar 

que eu ia me acabar em nada 

sem saber nadar Isabelly Gama

terça-feira, 5 de setembro de 2023

Um poema de Milena Marques

Dor, pressão, dor. 

E sem choro. 

Inchaço, frieza e roxo 

como adorno.

Primavera por um cordão virou outono. 


Desesperada suavemente arrancou o abrupto 

cordão característico a nativo de útero.


E as mães de natimortos, eternamente, abandono.

Enquanto a placenta anoitece com o sangue se pondo.

De todas as noites, essa costura 

para sempre o sonho.

Do meu filho só ficou, justamente, os pontos. Milena Marques

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

contos dum canto


a casa comprei

com as lembranças acumuladas

nada que não sei

seixa as paredes amargas


a dívida eterna

de lhe entrar sem seres minha

a dividida e terna

face que encarnas sozinha


vinte contos eu gastei

sem pensar nos dividendos

nas portas que arranquei

pelas têmporas ardendo


imponderáveis desejos

de aproveitar o dia

insuportáveis lampejos

mundo: porcelana fria


Luisa Issa

domingo, 3 de setembro de 2023

Orvalho

Nada melhor
que uma manhã nublada
de domingo
de madrugada chuvosa.

Folhas com restos d'água
molham o papel:
gozo que escorre lento
pelas pernas e pelos — fel.

Marcela Sperandio

sábado, 2 de setembro de 2023

5° episódio do podcast sobre Darcy Ribeiro




Ouça agora clicando aqui!

Finalmente está no ar o último episódio da série de podcasts "Darcy Ribeiro do Brasil: Um Documento Narrado". Aqui é feito um debate e uma reflexão mais profunda sobre como os pensamentos de Darcy reverberam até os dias de hoje. Também neste capítulo, há o grande episódio de sua biografia, quando o antropólogo foge do hospital, em meio ao tratamento de um câncer, para terminar o último livro de sua obra: “O Povo Brasileiro”. Para finalizar iremos descobrir uma das últimas facetas de Darcy, seu lado poeta. Para celebrar essa incrível jornada deixamos aqui um poema de sua autoria:


LANÇAS

Pus uma lança na lua, bem cravada:
A de etnólogo, doutor de indianidades.

Uma segunda lança lancei. Lá está,
Trêmula, pregada na primeira: a de educador.

Outra lança, ousado, atirei, valha-me Deus,
acertou: a de político reformador.

Louco, mais uma lança atirei aos céus,
Querendo glória. Lá está vibrando: romancista sou.

Agora, temerário, essa quinta lança disparo
Para voar, querendo acertar: a de poeta.

Darcy Ribeiro

Limerick 1

Havia um bêbado lá na Taquara

que só saía dos bares na marra

e foi jogar sinuca

mas sem taco nem cuca

baixou as calças e usou sua vara.


Luca Bigatello

sexta-feira, 1 de setembro de 2023

Equinócio de Primavera


Os dias vão se alongando na Irlanda. A trégua dos infindáveis dias plúmbeos se faz notar em Cork. A luz do Sol reflete o suave movimento da água nos galhos. À margem do Lee, círculos de amigos e casais de namorados celebram o céu azul. Súbito, pairam sobre a relva pétalas esvoaçantes da venturosa ventania primaveril.

Em Dublin, Cian e Saoirse encontram-se diante do regato num arvoredo. Longos e fartos cílios descortinam os olhos cor-de-esmeralda da jovem irlandesa, que se despede do rapaz sardento com um beijo. A garota de cabelos cor de cobre corre pelo atalho do bosquedo, onde um esquilo passa ligeiro e aparece do outro lado de um tronco musgoso. O tram anuncia a sua chegada sonora sobre os trilhos, enquanto os passageiros a bordo escutam: Balally / Baile Amhlaoibh. A ruiva de rosto corado desce rápido pelos degraus que ressoam o toc, toc, toc do salto discreto de seus sapatos envernizados. As suas pernas cobertas com meias três quartos apressam-se, após o último toque de partida. A saia xadrez de Saoirse drapeja ao vento e por um triz não fica presa entre as portas. Em seus fones de ouvido, ela está escutando Beautiful Day. As estações vão passando, pessoas entram e saem até o destino final anunciar em inglês e gaélico irlandês: St. Stephen’s Green / Faiche Stiabhna. Todos descem. Os tons crepusculares estão se recolhendo. Partindo de Dún Laoghaire, um nativo de olhos azuis cerúleos entra no trem interurbano, carregando um Ulysses. Entre o polegar e o indicador há muitas páginas já lidas. Finalmente, o leitor sossega os dedos no marcador do livro e reinicia sua jornada dublinense. Já está quase anoitecendo, quando Cian desce ao ouvir: Dublin Pearse / Stáisiún na bPiarsach. O clima noturno está cada vez mais aprazível. Enquanto para uns os momentos de shenanigans estão apenas começando, outros se despedem da cantoria celta, sonhando com as horas de luz solar que estão por vir. Em todo caso, amanhã haverá outra noite de Whisky in the Jar. Alice Osti