quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

O estilo kitsch eu renegava

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Cordilheira, além de ser um dos romances brasileiros mais elogiados do último ano, dá a ver um escritor, Daniel Galera, na esteira do desenvolvimento de um estilo original de escrita, por assim dizer. O interesse de sua técnica busca alcançar novos lugares de expressividade para o universo ficcional, e no caso de Cordilheira, seu quarto livro, os procedimentos narrativo-ficcionais também flertam com aqueles de uma narrativa cinematográfica, como em seus outros trabalhos. A perspectiva do observador, narrando, constitui a verdade do relato. Relato esse que se torna um ato de caracterização das personagens, em primeiro lugar a do narrador, bem como da criação de mundos, por uma estética hiper-realista. Estética hiper-realista tangenciada pelo tratamento dos limites tênues entre realidade e ficção, ou ilusão, tanto pela temática, quanto pela técnica. O interesse parece ser colocar em questão os limites entre literatura e vida. As construções subjetivas e lingüísticas do mundo que operamos, na arte e na vida, confundem-se com a vida mesma, na suposta imediatez com que se nos apresentam. No entanto, todos esses detalhes técnicos vêm ao caso, só em um segundo momento, posto que são artifícios que tentam dar nexo, plausibilidade, ao sentimento das personagens. No entanto, quando nos deparamos o repertório de clichês que temáticas como essas levantam, vêm à nossa lembrança milhares de livros que trataram desse tema já esgarçado.

Mas o diferencial da trama, que se desenvolve a partir da jornada de uma escritora órfã, numa viagem a outro país na esperança de realização dos desejos mais íntimos, materializados na concepção de um filho. Contudo, o quer acontece é uma rede de acontecimentos que questionam o desejo de estetizar, ficcionalizar a vida, sob a batuta final de uma advertência. A literatura, assim como a vida não devem ser levadas tão a sério, o que não quer dizer que a narradora, ou o autor, em algum momento consigam dar cabo de tal empreitada. Tão melhor assim, pensei. Sem a pompa, sem a auto-importância. (p.164). Apesar do desejo de brincar mais com a vida, reside uma literatura que envolve profundamente o leitor, intencionalmente, identificando-os ou não com a experiência conturbada da errância emocional das personagens, lançando luz sobre as raízes do egoísmo de uma vida construída sob uma perspectiva somente, aquela do narrador. Diz a narradora: O estilo kitsch eu renegava, mas sua veracidade eu era obrigada a reconhecer (p.157).
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terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Poetisando Tragos, poema de Dênis Rubra

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Cama:
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eu, você,
o Marlboro light em box,
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as cinzas no cinzeiro
seguindo a harmonia do nosso suor.
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fumo a vida com você
até o ultimo trago.
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Dênis Rubra
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Dênis Rubra é nosso leitor da UERJ. Este poema está em seu primeiro livro, que será lançado em 2010 pela editora Multifoco. Quem quiser conhecer mais, pode visitar seu blog aqui.
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sábado, 19 de dezembro de 2009

O intangível dos contos de Telles

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As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisa findas
muito mais que lindas
essas ficarão.

Carlos Drummond de Andrade
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É a seguinte epígrafe, de Carlos Drummond de Andrade, que dá carretel ao livro de contos Seminário dos Ratos: “Que século, meu Deus! — exclamaram os ratos / e começaram a roer o edifício” De certo é o conto homônimo que carrega maior distensão com relação aos demais: tem em seu foro político maior sátira, em conformidade à data da primeira publicação do livro, o ano de 1977 — ditadura militar, governo Geisel. O conto é um retrato jocoso da composição política do poder, uma investida alegórica a toda a bandalheira da coação que, nos final da década, deixava amostras de sua precariedade. Daí os ratos: São eles metáfora exemplar e, como descrito na narrativa, roubam o lugar dos aristocratas roendo tudo: os fios das baterias dos carros, dos telefones, a comida do banquete: “o cozinheiro-chefe ficou entusiasmado, nunca viu lagostas tão grandes”, mesmo assim os ratos as roem, deixando só o cômico desespero de todos numa fuga resignada. São deles, então, as rédeas do seminário.
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Quando José Castello insiste nas assertivas temáticas de Lygia — a loucura, o amor, a paixão, o medo e a morte —, “temas clássicos, que nos atormentam desde os gregos, e que a expõe [Lygia] ao grande risco da repetição do banal”, esse propõe o fio de sua variedade temática. Apesar do conto que ilustra o livro ter aspecto pouco diverso (justo pelo tom da sátira cênica — o conto se faz projeção teatral do poder condoído), todos os demais se declinam em torno da universalidade do sentimento humano. Sua poética é tão particular — dela, Lygia, abordando nós, seres humanos —, que não são raras as vezes que as inflexões dão a nós, leitores, a veemência de nos fazermos reconhecer nos escritos. Paira no universo de suas personagens — fugidias e escorregadias — um aspecto soturno, dado à condição do sonho, da memória, da digressão. Os pequenos gestos, dúbios e poéticos, os antagonismos, os medos — da vida, da morte —, os devaneios, as investidas inveteradas por felicidade, a insegurança: nada disso pretende compor um cenário fantástico, dado à realização do irrealizável: sabe ela bem que o caráter da fantasia passa antes pela condição da incompreensão, das projeções literárias que não tem comprometimento com o real na ordem do inafiançável. Nessa medida, seu livro embebe a barreira da vida com a literatura em experiências de fantástica verossimilhança. Suas histórias são de homens mundanos, transeuntes de um tempo particularmente nosso; contemporâneo, razão pela qual seu texto não perece.

O conto A Consulta é exemplo crasso de leituras e apreensões de mundo da autora. Em uma nítida relação com os escritos de Machado de Assis e Edgar Allan Poe, Lygia discuti sobre a loucura num tom declaradamente delicado: os contornos do surto. A narrativa em terceira pessoa faz confundir a loucura pela sua acepção taxativa. “Ninguém é doido. Ou, então, todos”, escreveu Guimarães Rosa no conto A Terceira Margem do Rio; Machado fez da Casa de Orates o espaço da dúvida — ou — os vasos comunicantes que questionam a instituição manicomial. Poe, no conto O sistema do Doutor Tarr e do Professor Fether, também incute enquanto dúbia a discussão, mesmo que ao seu modo, sombrio e genioso. Mas Lygia parece ainda querer se afastar deles. Os recursos de narração textual não se prendem a uma crítica repetida, feita antes pelo cânone. São eles correlações com o prosaico absurdo das coisas, partindo de uma humanização da loucura. Quanto mais contido no limiar da literatura e da possibilidade discursiva; mais propício, como ilustram os contos de o deste livro. As situações, de modo geral, partem dos incidentes quotidianos, tão caros as nossas perspectivas de vida e morte. A Consulta é um conto onde um internalizado que, fazendo-se passar pelo analista, acaba por analisar um homem que chega se queixando do incontido medo da morte que sente. A cena parece estar contida no universo da fantasia, mesmo tendo toda sua imposição verossímil.

Outro recurso diz respeito às vozes do texto, ora em primeira, ora em terceira pessoa, embora a autora faça maior predileção pela primeira pessoa. Daí um traço manifesto de sua escrita neste livro. Telles quer colocar o narrador participante, infundi-lo na prosa, aproximando-o do discurso, trazendo humanidade participativa ao relato. Na ótica de suas temáticas, faz-se favorável tal incursão; quer falar da universalidade dos sentimentos, quer dizer das aflições seculares dos homens, ainda que pelo prisma de seu tempo. Seu texto não é dureza feita de recordação eminente. Parece que em cada conto um espaço obtuso preenche o peito, roubando ar, e, para além da memória do nome das personagens, fica o sentimento inerente à leitura. É mais provável emprestar lembrança as “coisas findas” do que propriamente as “coisas tangíveis” nos textos de Lygia Fagundes Telles; razão pela qual seu livro é um livro que se contêm na existência: quer falar antes da memória: matéria prima do reconhecimento. Como anunciou Fernando Pessoa, “O poeta é um fingidor / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente”. Mas, para fingir a dor que deveras sente, é necessário conhecê-la... E Lygia parece conhecer profundamente o que finge sentir.
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Lygia Fagundes Telles nasceu em 1923, um ano após a Semana de Arte Moderna. Enquanto cursava educação física na Faculdade do Largo São Francisco, inicia em 1940 o curso pré-jurídico na mesma instituição. Faz-se, então, aluna de direito. Não é de admirar que já nesse tempo mantivesse contatos literários vários, incluindo Mario e Oswald de Andrade. Mas é com seu primeiro romance - Ciranda de Pedra, de 1954 - que a autora ganha definitiva projeção. É de Antônio Cândido a idéia de que, a partir dessa obra, Telles alcança a sua maturidade literária. Sua contribuição à literatura nacional é vasta, tendo sua obra traduzida também para dez idiomas, incluindo o tcheco, o alemão e o russo. A autora ainda compõe às cadeiras Academias Paulista e Brasileira de Letras, tendo em sua trajetória uma quantidade considerável de prêmios e condecorações.
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quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

A mulher e a milenar entrega

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Era uma vez uma mulher que odiava apenas uma vez e que gostava de tudo ao mesmo tempo, mas não gostava de si. Sua cor favorita era a solidão, e se vestia dela todos os dias. Sua música preferida era o silêncio do ritmo do jazz. Contudo aconteceu o dia do “de repente”: se despiu pela primeira vez e a solidão tomou a cor da carne, do gozo. E se sentiu completa.
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Caminhava a ermo tentando procurar não sei o quê. Nua, não percebia o quanto era despercebida. Não se importava com isso e nem com o que não tinha. Queria apenas estar plena de si. Entrou em uma loja de roupas, escolheu a mais indefinida e cara vestimenta e se olhou no espelho: não adiantava, sua nudez ainda estava lá, intacta. Não se incomodou de não chamar a atenção da vendedora e nem se importou com o olhar aterrador dela ao ver a roupa sair esvoaçante para a rua. Mesmo assim, deixou o dinheiro lá, no balcão.
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Entrou em um bar repleto de homens. Já fazia algum tempo que não consumia um. Serpenteou-se serenamente por entre as cadeiras mexendo nos ombros de um, nos braços do outro, sorridente e cativante. A sua nudez molhava translucidamente as pernas. Olhava para todos, sedenta e triste, sentada no balcão. Esperava apenas um para tomar a coragem. Apenas um.
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Foi difícil chamar a atenção de todos aqueles pobres coitados, vidrados na tela da tevê, em um jogo miserável entre dois times da segunda divisão. Olhou para o garçom, para o balconista, tentando atrair a atenção de ambos para o início do ritual. Não conseguiu. Ociosa, levantou-se da cadeira para ir embora, quando sentiu uma pressão no braço esquerdo e dois olhos reluzentes a encará-la. Virou rapidamente a cabeça, mas já era tarde. Ele estava intimamente voluntarioso, tentando dominá-la pelas mãos, pelas pernas, pelo pescoço. Animado, sabia exatamente o que fazer, deslumbrado com tamanha sorte. Ela ainda tentava lutar para ver o seu rosto, que há tanto tempo procurava na multidão. Mas já era tarde. Sabia que tinha sido achada, até o momento em que se perderiam novamente. Não se importava, sempre foi assim, desde o início dos tempos, desde antes de Caim matar Abel. Pobre Abel.
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Ele ainda brincava com o seu corpo, liberado propositalmente, até chegar ao ventre. Era o sinal para a entrega. Ela, suavemente, envolveu os braços do homem com os seus, passando pela cintura, forte, até chegar lentamente às costelas. E sentiu, na esquerda, a ferida aberta e pulsante, como uma boca aberta a devorá-la. E pensou aliviada e feliz: “Ah, Adão... Porque demoraste tanto?...”
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Verônica Ferreira
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quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Duas Sílabas, poema de Fernando Andrade

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Uma vez que o afeto se instala
no pequeno beco dos fundos
ele cresce sem respiro
sem o ar dos semelhantes
e não espera algo mais
ou qualquer algo.

Apenas a voz da gentileza
é capaz de abrir todos os ramos do bem.
Somente uma pequena doçura
que por mais incrédula
seja única em uma geração
faz o mundo desabar em céus azuis
em luas cheias e em ondas claras,
além das palavras que o sujeito pensa
(surreais nas maneiras de hoje).

Não por mim mesmo,
mas pelo bem dos meus próximos ou distantes,
que todos sejam próximos.
É o que tua voz deseja.
E não é necessário mais do que duas sílabas,
tão simples.

Duas sílabas da tua voz
para que o mundo seja um só!
Que se perpetue tua ternura entre nós.
Mas disso eu sei: quero outras de você
para outros de mim...

Pois, pêndulo me é conveniente,
o ciclo do bombear dos meus passos
faz minha locomoção,
mas, estático é meu coração
sem vida nesse planeta
no espaço em algum lugar
sem o cantar do teu dizer sincero.

Sobre a natureza é tua doçura
e já não resta escrita para representá-la
ou de alguma forma descrevê-la.
É a invenção do sentido do corpo
e do envelhecer da eternidade.

Tão pouco te ouvi,
apenas duas sílabas da tua voz.
E sobre elas
tanto sei o que dizer.
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Fernando Andrade
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domingo, 13 de dezembro de 2009

Um filósofo um poeta — simpósio na PUC-Rio

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UM FILÓSOFO UM POETA
diálogos entre a literatura e a filosofia

PUC-Rio
16 a 18 de dezembro

PROGRAMAÇÃO
(haverá tradução)


Dia 16/12 - Sala 102k

16:00h - MÁRCIA DE SÁ CAVALCANTE SCHUBACK (Södertorn University)
À margem do estranho: Heidegger, Trakl

16:40h - GILVAN FOGEL (UFRJ)
“No abismo...”

17:50h – Coffee Break

18:00h - JASON WIRTH (Seattle University)
Milan Kundera, Hermann Broch, and the entitlements of thinking

Dia 17/12 - Sala 102k

16:00h - MARÍLIA ROTHIER (PUC-Rio)
Guimarães Rosa entre doutos professores e vaqueiros atilados

16:40h - SOFIA DE SOUSA SILVA (UNIFESP)
Breve programa para uma iniciação em Ruy Belo

17:50h – Coffee Break

18:00h - ELIZABETH SIKES (Seattle University)
On the evolutionary task of the poet

Dia 18/12 - Sala 481L

16:00h - ANTÔNIO QUEIRÓS (PUC-Rio)
Platão, leitor de Aristófanes

16:40h - JOSEPH LAWRENCE (College of the Holy Cross)
Plato's poetic redemption of Socrates' tragic disregard for poetry
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sábado, 12 de dezembro de 2009

BLOG DO BOLHA EM SEU 1º ANIVERSÁRIO!!!

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O Blog do Bolha completa o seu primeiro ano de atividades. Em 12 de dezembro de 2008 inauguramos este espaço com o objetivo de divulgar lançamentos literários, eventos culturais, análises de livros e, principalmente, apresentar aos leitores um pouco da produção literária das novas gerações que, por questão de espaço, não cabe apenas nas páginas do nosso jornal impresso.

Ao longo desse ano, foram 425 postagens, mais do que uma por dia, em que publicamos mais de 180 textos inéditos — entre prosa e poesia — e divulgamos mais de 100 eventos e lançamentos. Com isso, o Blog do Bolha caminha lado a lado com o Jornal Plástico Bolha impresso e o Site Plástico Bolha, em uma rede de literatura independente aberta para quem quiser divulgar seus trabalhos e idéias de forma alternativa e gratuita.

Agradecemos à nossa equipe, aos nossos 87 seguidores e aos milhares de leitores que vieram para estourar as bolhas literárias ao longo desse primeiro ano. Que continuemos juntos em 2010! Ploct!
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Plástico Bolha no jornal O Globo de hoje...

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Amigos leitores, essa é para contar que o Plástico Bolha está n’O Globo de hoje, na página 9 do caderno Ela, em matéria sobre a Cleonice Berardineli. A matéria da jornalista Melina Dalboni cita nossa campanha pela eleição de Dona Cleo para a cadeira número oito da Academia Brasileira de Letras, que pode ser lida aqui. Confiram lá que ficou legal!
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Novos lançamentos da coleção "ás de colete"

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sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Segundo número da revista Modo de Usar

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Lançamento do segundo número da revista Modo de Usar, com nossos amigos de bolha Alice Sant´Anna, Gregório Duvivier, Ismar Tirelli Neto , Luiz Coelho, Marília Garcia , Ricardo Domeneck, entre outros! Amanhã, na livraria Berinjela, a partir das 10h.
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quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Câncer — poema de Flávio Cavaca

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Trópico situado ao norte do Equador,
neoplasia maligna,
— caranguejo,
octogésima oitava constelação
em que se divide o vasto céu noturno.
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Flávio Cavaca
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Lançamento da revista ficções 18, no Rio

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terça-feira, 8 de dezembro de 2009

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

domingo, 6 de dezembro de 2009

Presságios a e pós Auschwitz

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A chuva caia forte naquele dia, uma pequena nevoa cobria as pastagens, que deixava um ar de frio e sem vida planar na atmosfera dos sentidos. Enquanto dezenas de vagões, de interior escuro e de pessoas, percorriam os trilhos violentos de uma causa estúpida e de pessoas idem, tendo em suas laterais pequenas esperanças, que nos iludiam, fazendo-nos acreditar, acreditar que tudo era um sonho surreal, e que na alvorada estaríamos em nossas camas despertando para nossas vidas. Mas não era nada além do real, era o próprio real.

A paisagem passava rápido, não conseguia escutar coisa alguma, tendo meu tímpano alojado no ermo de mim mesmo e o vazio em meus olhos imprecava aos horizontes, no momento que estático meu ser se punha. Mesmo assim, lutava com minhas forças a arranca-me de meu corpo, pois meus presságios eram aterrorizantes demais para agüentar.
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Posto que num dado momento, certa imagem a dilacerar meu ser paralisado, uma doce criança camponesa a me fitar, aquele acontecimento que durara um estalar de tempo no tempo real, em meu tempo parecia uma eternidade, cabecinha cabisbaixa e olhos tristes para mim, em que lágrimas brotavam-lhe olhos afora, e ao chão secavam-se como se em fogo caíssem para evolar-se. Um fato que parecia querer me ensaiar para algo, mas que a mensagem ao receptor chegava ainda crua.

A temerária locomotiva enfraquecia sua força perante a boca de tijolos e cimento, que à sua frente ia se agigantando com objetivo de nos pré - engolir a vida ao adentrarmos em seu complexo de atrocidades, erigido em um campo belo e maquiado por um sistema, florescendo de suas entranhas, pétalas do ser desumano na rosa do humano.

O gelar em meu corpo, de meu rosto ao encontro com pétalas do ser desumano, eis que, em meus olhos desesperançosos, a anunciação de meu fim finalmente. Aberta as portas dos vagões, descíamos milhares, todos com sentimentos interligados. E íamos sem saber para onde. E neste intervalo do ir e do chegar, passávamos por diante uma chaminé de tamanho estrondoso, e que infindamente, exalava fumaça por sua grande boca, que expelia pessoas.

Enfim, chegamos à frente de uma porta, eis que a atravessando, adentrávamos no cômodo poderoso, que por seus braços abraçava milhares de uma só vez, para com sua boca, nos dar o último beijo.

Cuspiam-nos pelas chaminés para dissiparmos no espaço. Efeito de uma cegueira moral, que decapitava vida em nome de uma ação estúpida, que não tinha sentido e nem porquê, mas mesmo assim eram cultivados por pétalas do ser desumano.

Hoje, cerca de 65 anos após nos cuspirem a vida, mas que ainda, partículas de fumaças de nosso ser insistem em ser, as chaminés do preconceito continuam queimando no bicho homem, continuam exalando fumaças, continuam expelindo pessoas, tendo sua forma tão quanto maquiada como antigamente, e agora, não há uma chaminé só a queimar.
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Fabiano Mafia Baião
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sábado, 5 de dezembro de 2009

Poesia cinematográfica — de Yuri Amorim

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Reenveiou-lhe o sangue derramado, restituindo a vida ao corpo.
A bala devolve-se ao cano do revólver, estremecendo invisíveis paredes de oxigênio.

Olhos dessobressaltando-se em close.
Dedos trêmulos desfazendo a pressão no punhal sofisticado.
Derradeiras palavras temíveis sendo engolidas.
Uma gota desiludida sambando bochecha mal barbeada, brincando de contrariar a gravidade, escapa à retina.
Passos contrários afastam dois seres fadados.
O susto da porta derrubada e a derrubada porta ao chão resignam-se e voltam às suas devidas marcas.
Um olhar perde-se na janela.
Anuvia, empalidece e apaga.

A fita foi rebobinada.
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Yuri Amorim
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quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Instante — um poema de Carlos AA. de Sá

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Manhã de inverno.

Na praia deserta
eu caminhava
devagar
opresso
esmagado
pelo horizonte.

Entre a areia clara
e o mar barrento
— faixas estendidas
infinitamente —
eu
solitário
e ambulante ponto.

Será que ao menos nesse instante
Deus me viu?
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Carlos AA. de Sá
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Carlos AA. de Sá é jornalista e estreou na literatura em 1972 com o livro de poemas Canto Tentado. Já teve diversos trabalhos publicados na imprensa campista, mineira e no jornal carioca Tribuna de Imprensa. Também já saiu em publicações estrangeiras, como a revista espanhola Batarro. No jornal Plástico Bolha, ele fechou com chave de ouro a edição #25, com seus Cartões-Postais, e agora está na edição #27 com o Poema do Cajueiro. Além disso, Carlos também é o aliado cultural do Bolha em São João da Barra, RJ, onde distribui os exemplares do jornal na Casa de Cultura Zenriques.
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quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Outro verão — um texto de Tânia Tiburzio

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Toda vez que passo em frente aquela banca de jornais lembro que foi lá que você esqueceu dois maços de cigarros antes de irmos para a praia. Lembro também que calor úmido de janeiro não nos repelia, ao contrário nos atraia, porque nossos corpos grudados dissipavam o calor que nos consumia não por fora, mas por dentro. O mar azul, palavras que eu sussurrava em seus ouvidos perfeitamente compreendidas, apesar de não serem ouvidas. O sol agarrado aos telhados das casas, a música soando alta e continuadamente pela sala, por toda a rua, por todo o verão. Suaves delírios, o gosto do sal pelo corpo, a cama desfeita, a algazarra das refeições, o ventilador girando, girando e minha cabeça, meus sonhos girando com ele. A chuva fria no meio da noite e outros cigarros mentolados sendo acessos no lugar daqueles esquecidos em cima do balcão de uma banca de jornais na esquina da Paulista.
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Tânia Tiburzio
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terça-feira, 1 de dezembro de 2009

A sinceridade retórica de J. M. Coetzee

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Coetzee, J. M. Desonra. São Paulo. Companhia da Letras, 2000.
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Não é de admirar que sejam tão veementes contra
o estupro, ela e Helen. Estupro, deus do caos e da
mistura, violador da reclusão. Estuprar uma lésbica
é pior que estuprar uma virgem: o golpe é maior.

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Um romance desconcertante. John Maxwell Cotzee — sul africano de dupla formação, lingüística e matemática — começou a escrever há algum tempo, tendo seu primeiro livro publicado em 1969: Dusklands. Em 2003 recebeu o prêmio Nobel de literatura. A partir da leitura de Desonra é possível perceber a importância de seus escritos, de raro valor contemporâneo: viés sólido, de pungente crítica sócio-política enfiada na alegoria da personificação, cara demais à literatura. David Lurie é um professor acadêmico da Escola Técnica da cidade do Cabo (Cape Town), na África do Sul. É adorador do literato William Wordsworth e estudioso de Byron. Oscila seu tempo entre estudos sistemáticos de literatura inglesa e o magistério. Sente-se, entretanto, recorrentemente pungido ao sexo, e não hesita em fazê-lo, mesmo que acarrete em depressões morais: “Fui um servo de Eros: é isso que ele quer dizer, mas será que tem coragem? Era um deus que agia em mim”. Justifica-se nas razões da carne, razão dum cinismo mantenedor e vigorosamente coerente. Em ação motivada pelo acaso acaba se envolvendo com uma aluna, experimentando pelo sexo a interferência do seu ofício: chega ao ponto de, através das avaliações, construir a relação sexual de posse e domínio — relações erógenas que partem dos números (a nota dos testes). Ao referir-se a Melanie, sua aluna e amante, no dia em que perdeu uma aula e um teste, posiciona-se: Ao preencher a ficha de depois, ele marca uma presença para ela e dá-lhe nota sete. Ao pé da página, a lápis, anota para si mesmo: ‘provisório’. Sete: nota dos indecisos, nem boa, nem má”.

Explode a imprecisão acadêmica. Ele é acusado pela Universidade por intermédio de uma queixa da própria aluna. Pais, amigos e um suposto affair da garota atribulam-lhe a vida. Passa por um processo interno da instituição de ensino, assumindo os erros por completo, recusando, inclusive, ler o processo e as acusações. Sente-se velho demais para mudar ou se retratar. Consiste em sua existência um depreciado pedantismo acadêmico, da vernácula verdade de crer nos livros acima de tudo, nos recursos poéticos com lições prontas da vida. Tem cinqüenta anos e bastante restrição à sociedade, quer o mínimo de hipocrisias em seus modos, mesmo que eles o coloquem assim em posições desconfortáveis e aviltantes. Não que não se faça hipócrita — por vezes é —, no entanto, impõe seus próprios limites às explicações que residem dento da moral e dos bons costumes.

Muda-se para a África interiorana, África pós-apartheid, África das disputas pela terra, dos embates raciais. Sua filha — lésbica e quase camponesa — recebe-o cordialmente, mesmo sabendo do caso de assédio que revira as manchetes dos jornais. Em conversas esporádicas, faz-se tentar compreender ao menos à filha: seus diálogos têm algo da sinceridade paternal. A casa de Lucy — sua filha — é assaltada por três negros. David fica preso no banheiro enquanto os três estupram a filha. O trauma, desde então, passa a ser o incidente da convivência. Lucy se recusa a sair de sua terra; seria acovarda-se frente a uma questão social, recolocar em prática o apartheid, fugir, por medo da morte. O pai tenta-lhe convencer das facilidades da mudança, da importância de exorcizar seus fantasmas: nada adianta.

As relações se engalfinham em terras longínquas, onde o poder público toca, quando muito, só com os olhos. Petrus, seu vizinho e caseiro, faz confortável a situação; a terra que lhe foi cedida aos poucos se expande e divide cerca com a propriedade de Lucy, cerca que sequer existia. Suas ambições começam a fenecer; o conflito histórico se mostra maior que as pretensões de uma geração inteira. A terra e o embate de raça; tônus recíproco das relações sociais.

Coetzee, em uma narrativa retrátil e novelesca, faz um texto visceral. A atenção à história dá-se nas proezas estilísticas do texto entrecortado e sarcástico; realista e questionador. “Soraya é alta e magra, de cabelo preto comprido e olhos escuros, brilhantes. Tecnicamente, ele tem idade para ser pai; só que, tecnicamente, dá para ser pai aos doze”. São postas, então — neste linguajar —, as condições da disputa, e não as resoluções: este romance não quer achá-las, elas não existem nas enfermidades opressivas; não há simplesmente como desfazer de um dia para o outro o ódio que ronda gerações. Brancos versus negros; moralidade versus imoralidade; segurança versus insegurança; literatura versus vida real: todas as ambivalências deste livro são feitas não enquanto elegíacas, somente. São construções que não querem se colocar em posições hierárquicas, em pólos distintos: trata-se de ordens filosóficas imbricadas na imprecisão gerativa da condição humana, no conflito cotidiano insurrecto pela posse. Não há solução para o trivial das tragédias cotidianas.

Na Grécia, nos tempos da República, a tragédia exercia peremptória razão social. A partir da sublime desgraça, do fardo dos deuses e semi-deuses, os homens aprendiam. Faziam dos seus atos espelhos atrozes dos ensinamentos das artes, de modo geral. A desonra de um estupro figura nas estatísticas da África do Sul. O joguete moral do ato consiste numa dominação fálica, sexual. Os homens negros ao estuprarem Lucy dão provas de uma das opressões sul-africana; querem além do roubo um outro apetrecho, sádico e pernicioso. Imprimem-se na tragédia dos jornais, na fúria das gerações, querem para além da posse física, a posse existencial: apoderam-se da vida da mulher com imagens que lhe vão correr o imaginário por toda a vida, como uma cicatriz. A colonização africana foi bem mais que um povoamento mal medido, foi um estorvo. A tragédia grega, nesse romance, é o nódulo que indica o tumor, entretanto, sua aparência é meramente alegórica, serve para compor o cenário e condenar a arritmia das questões sociais. O ensinamento só pode valer partindo de um surto reacionário.
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Por fim, toda a narrativa termina como começou — num gesto prosaico, sem mesura. A vida das personagens recai sobre suas rotinas e frustrações: a condição humana é se degradar ante a morte, pouco a pouco, como um estupro faz com a lembrança, ligada, quer queiramos, quer não, aos conflitos humanos que espoliam a sensação letárgica de ser feliz num mundo de contradições. Coetzee nos choca por sua sinceridade, nada mais.
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