segunda-feira, 29 de abril de 2019

As crianças de Jah


as crianças de jah brincam na grama
do grande parque do mundo
parece um pouco maltratado
depois de tantas bombas
mas elas correm entre os escombros
e ainda é o grande parque do mundo
o velho gramado ferlinghettiano
(não ligue para essas flores estranhas
reação ao adubo das trincheiras)

as crianças de jah são energia pura
afugentando à bala
amiguinhos que chegam de bote
brincando de salvar
amiguinhos ainda menores
que eles brincam chamando de filhos
(game de ação instrutiva
realidade aumentada além do suportável)

as crianças de jah vão à escola
para aprender a somar e subtrair
não se tornam muito bons em dividir
o sistema educacional não é perfeito
mas tende a melhorar dialogando
com as crianças de igual para igual
o importante é o aspecto lúdico
as crianças de jah escrevem poemas
e inventam uma outra vida
e uma outra dentro da outra
apontam seus dedos lustrosos
uns para os outros numa guerra santa
pelo monopólio do indizível
alguns se explodem junto com a linguagem

as crianças de jah
pouco resta a dizer sobre elas
que já não tenha sido dito ou pensado
imaginado ou sugerido
desde que as crianças acordaram
e descobriram que depois de tudo
não eram nada mais que crianças
só lhes faltava a inocência
e o tempo
ejah

Fernando Abreu



Fernando Abreu nasceu em São Luís do Maranhão. Durante cerca de dez anos editou a revista de poesia “Uns & Outros”, como membro do grupo Akademia dos Párias. Tem três livros de poesias publicados: Relatos do escambau (Exodus, 1998), O umbigo do mudo (Clara Editora, 2003) e Aliado involuntário (Exodus, 2011). Como letrista, tem parcerias com Zeca Baleiro e Chico César, entre outros. Mantém o blog “Homem Comum”, onde publica basicamente poemas. Os poemas abaixo fazem parte do livro inédito “Contra todo alegado endurecimento do coração” (7Letras), com lançamento em breve.

sábado, 27 de abril de 2019

Leonardo Boff fala em Manguinhos, RJ


Detalhes, um poema de Pedro Du Bois


Busca nos detalhes
o ponto de apoio
anelo
anelado dedo com que se defende dos oferecimentos
e se esconde dos tormentos

detalhes o mantém à salvo das estéreis horas
de retornos fossem pedras carregadas nos bolsos
raivas concentradas na incapacidade do espelho

enrola o fio
o anel cintila
no dedo solto
em sobressalto

não há morte nos detalhes secos e ásperos
o tempo ajustado
solta as amarras
retira o anel.

Pedro Du Bois



Pedro Du Bois é nosso colaborador assíduo. Quem quiser conhecer mais do seu trabalho pode conferir no blog: http://pedrodubois.blogspot.com.br/

sexta-feira, 26 de abril de 2019

A tarrafa de livros, conto de Andréa Carvalho


Eu não descanso à noite. Preciso ficar acordado, em alerta, atento a todos os perigos que a escuridão pode propiciar. Todos os dias, ao anoitecer, procuro um lugar seguro para não dormir. Eu moro nas ruas. Antes que você se afaste de mim, deixa eu lhe dizer que, ao contrário do que muitos pensam, cada um leva esse tipo de vida por um motivo diferente. Eu não sou bandido, não uso drogas, não sou alcoólatra, não faço mal a ninguém. Sou pescador e sou como todos os meus companheiros de calçada, um cidadão com nome e biografia.

Deixei o meu rio para trás e caminhei por 18 dias para mergulhar em outro Rio, o de Janeiro. Contudo, este aqui me recebeu com tanta dureza quanto o de lá, que me expulsou com a sua aridez. As economias para financiar a minha jornada acabaram e eu não consegui trabalho, roubaram meus documentos, fiquei doente, acreditei em falsas promessas, me perdi, literalmente, me reencontrei absolutamente e consegui sobreviver.

Estou acostumado com a incerteza do amanhã e com o temperamento da natureza. Espectador de lindas madrugadas de boa pesca, já adormeci sob um cobertor de estrelas, mas também rezei para acalmar um temporal. Testemunhei alvoreceres dourados, mas já fervi dentro de um caldeirão refletido no espelho d’água. Talvez fosse meu preparo para encarar a batalha diária para me manter vivo nas ruas. Ancorado no meio do deserto de águas rasas em silêncio, enquanto esperava um escasso cardume de piabas encontrar a minha rede, eu lia histórias do mundo, poesias, contos, romances, atlas e até dicionários de idiomas estrangeiros. A biblioteca da vila era tão importante quanto o mercadinho, pois era de lá que eu conseguia alimento para a minha alma e me nutria rumo ao êxodo. Posso dizer que a minha viagem começou nos livros.

Na cidade grande, sofri preconceito pela minha origem humilde e pela falta de um diploma. No entanto, minha forte intuição e alguma sabedoria natural me fizeram ir ao encontro de uma inusitada forma de sobrevivência. Meu olhar de leitor assíduo, sentindo-se em abstinência, começou a buscar nos lixos e descartes a literatura desprezada por alguns, mas preciosa para outros. Comecei a recolher livros usados — num primeiro momento, para consumo próprio — para revendê-los nas calçadas, expostos sobre a minha inseparável rede de pesca, que funcionava como travesseiro, cobertor, assento ou simplesmente amuleto da sorte.

As doações também começaram a chegar, assim como as pistas de onde recolher mais tesouros abandonados. Precisei até de um carrinho de mão para circular com o que passei a chamar de barcoteca ambulante. Fiz uma proa colorida com recortes de revistas, uma cabine de garrafas plásticas para proteger os livros, e escrevi na popa com as maiores letras das manchetes de jornal: Barcoteca do Beto.

Jogava a minha tarrafa de livros onde o terreno parecia mais promissor.As capas coloridas me lembravam da época em que diversas espécies diferentes de peixes emergiam na trama que eu mesmo teci. Porém, quando as vendas baixavam demais, navegava para outro porto, assim como fazia nas épocas de baixa pescaria. Alguns clientes eram simpáticos, pagavam além do valor, outros davam uns trocados mesmo quando não encontravam nada de interessante e elogiavam meu trabalho. Todavia, sabia que também estava cercado de olhares de intolerância, repulsa e desprezo. Ouvi palavras de ódio e ameaças. Resisti algumas vezes, discuti em outras, mas decidi que sempre que me sentisse indesejado, recolheria a tarrafa, moveria as rodinhas da barcoteca e iria desbravar outros mares, pois os livros precisam estar onde são bem-vindos.

Certa vez, fiz parada em frente a uma linda construção colonial, local de passagem de muitos estudantes uniformizados acompanhados de seus professores. O lugar, além de cercado de verde, parecia-me ideal para alavancar as vendas das coleções de gibis e histórias infantis encalhadas há um tempo no meu acervo. A clientela de leitores deslanchou. Pesquisadores, universitários e quase todos os visitantes do local davam uma paradinha na minha rede, antes de entrar no magnífico quintal do paço. Por um bom tempo, eu tive a honra de ser conhecido como o livreiro do Museu Nacional. Às segundas-feiras, como não havia visitações, buscava mais livros para atender aos meus pequenos leitores. Durante o dia, era protegido pela sombra de uma árvore centenária à entrada da propriedade, de frente para um gramado verde que me enchia de esperanças. Minha estada por lá foi a melhor de todas. Consegui até um refúgio seguro e silencioso nos fundos do palácio — frequentado somente pelos animais noturnos — para poder finalmente cochilar um pouco durante a noite, tendo como vizinhança um jardim zoológico.

Numa madrugada, como de costume, despertei do sono leve de quem consegue adormecer na rua e dediquei um tempo à vigilância noturna da área. Não ouvi o som das sementes espalhadas pelos morcegos frugívoros caírem pelas folhagens. A conhecida coruja estava agitada no galho como cachorro dando sinal de invasor na casa dos donos e alguns gatos ariscos cruzavam as divisórias de plantas como se partissem em debandada. Levantei-me voltado para o habitual panorama da fachada traseira do museu e estremeci. A janela mais baixa do lado esquerdo estava completamente vermelha e fumegante. Era fogo e eu não sabia o que fazer. Em poucos instantes, a janela ao lado também começou a queimar.

Corri até o telefone público mais próximo e tentei falar com os bombeiros que, desconfiados, provavelmente pensaram se tratar de um trote, afinal, quem seria o sujeito que pedia socorro sem ter sequer um endereço para informar nos seus dados de identificação... Eu me desesperei a gritar “Fogo! Fogo!”como se fosse o único habitante de um planeta oco. Foi quando tive a ideia de lançar a maior pedra que consegui na janela de uma residência próxima. Um homem acendeu as luzes da casa e esbravejou:

— Vou chamar a polícia, vagabundo!

Respondi prontamente aprovando o pedido numa súplica desesperada:

— Chame rápido porque o Museu Nacional está pegando fogo!

Ele, no entanto, fechou a janela e apagou a luz, enquanto o incêndio do outro lado da rua tomava,a cada precioso minuto, a vida do meu único porto seguro.

Aguardei estático por cerca de meia hora com os olhos vidrados na transformação do palácio iluminado em uma gigantesca tocha rúbea, ao som do tilintar cruel das chamas consumindo tudo o que podiam. Até que a sirene dos bombeiros me despertou do estado de inércia para o choro compulsivo de quem perde o leme mais uma vez.

Andréa Carvalho

quinta-feira, 25 de abril de 2019

Todo dia é dia, um poema de Silvia Castro


Coração
Útero
Fértil
Emoção
Sangue
Suor
Lágrimas
Mulher inventa
Desfaz
Refaz
Inventa
O nó
Cria laços em luta
De todas as formas
E finca
Faz da vida, palco
Atenta
a todos os atos
O dia nosso
É dia todo
De ser muitas
E ser Só
Pernas pra que te quero
E de pé
Alinha um poema
Enquanto espera o café

Silvia Castro

Abertura da exposição "Rebote", de Marina Rheingantz & Mauro Restiffe, no Rio


quarta-feira, 24 de abril de 2019

Eu sou o Brasil profundo


Eu sou o Brasil profundo. E antes dela eu não sabia.
Quando vi samba de coco achei tudo muito esquisito.
“É porque você não está acostumado”, disseram.
O que é diferente não é banal e causa olhar arredio, estranhamento.
Os brasis reunidos não é coisa banal.
Eles proclamam uma voz uníssona de estranhamento mútuo.
Quando um mineiro de Juiz de Fora viu massa para se fazer cuscuz 
ele estranhou.
Assim como estranhei os acarajés.
“O pato no tucupi tem jambu”.
Eu sou o Brasil profundo. E antes dela eu não sabia.
Vi frevo e maracatu. A dança da fita já tinha visto na minha terra.
Vi saudades do mar.
E alívios da distância do Atlântico – que não fica no ar do desejo.
“O mar daqui é o céu”, dizem isso.
Vejo que o tempo do mar acabou. Sim, acabou o tempo do mar.
Eu sou o Brasil profundo. E antes dela eu não sabia.
Os brasileiros dos litorais não compreendem.
Brasília não foi feita para quem quer morar em Ipanema.
Eu não quero morar em Ipanema.
Eu não sou da civilização do mar.
Eu sou o Brasil profundo, que se anuncia e não se ouve.
Eu sou das Minas e de Goiás.
Do Piauí e do Mato Grosso.
Sim, ruíram os litorais!
Eles marcham para o além-mar, porque é o que sua visão alcança.
Eu marcharei para o Brasil!

Mardson Soares



Mardson Soares é nosso colaborador de Bom Jesus, no Piauí.

terça-feira, 23 de abril de 2019

por afeto por dentro dizia eu sou amor


dentro da galeria de arte
diziam das coisas do mundo da arte
diziam o nome do champanhe e do vinho
eu tomava a goladas cada gesto
do pingo na gola e do risco no sapato
os sapatos eram largados e firmes
a gota se desfiava no pescoço
era bonito o nome do filme que projetava
mas no entanto esquecera do nome
de que voltaria à casa
e de mais alguns instantes
era possível que não voltasse
àquele momento
poesia agora
e que imaginasse a cena antes de acontecer
mas durante a galeria por dentro
sentou ao chão com sua mãe ao lado
e escutou o coração da poesia dela
dizia amor
eu sou
era tão bonito a palavra em sua boca
que enrugava meus braços
e dizia afeto
realmente aquele momento

Gyzelle Góes


Gyzelle Góes é formada em Letras pela PUC-Rio e escreveu este poema inspirada pela exposição Poesia Agora.