quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Conta-se o conto até a última gota

Tudo começa e termina na vida com aquele som. O som líquido, aquático e cursivo comum às palavras. Do despertar nostálgico à indefinição confusa e infinita que compõe o léxico do existir. Às vezes me pego lembrando. Espera. Não. Sempre.

Tudo começa e termina na vida com aquele som. O som doce e molhado da sua voz. Acho que ali você nasceu. Gotejava palavras lânguidas como longas lambidas da língua. Linhas não são suficientes. Eu sempre fui um. Em algum momento fomos dois. Lembro do medo e de desconfiar que pudéssemos ser três. Ai, não. Espera. Há muito perdi a conta. Mas o que é que estava contando?

Algumas palavras gotejam na minha mente. Latejam sempre. Tanto, que as vezes me pego cantando. Espera. Não. Cantando o quê? Não, não, não. Tem que contar direito! Eu sei que você começou para mim em algum momento. Me lembro que éramos dois. Não. Três, finalmente. Acontece que nunca gostei de lugares cheios, mas tudo sempre começa e termina com aquela música. Qual era mesmo? Uma que você cantava e que me fez dançar também! Não, não. Espera. Já não consigo mais contar quantos cantam. Seríamos só nós dois?

Às vezes me pego lembrando. Mas quem era você? Não me vem à mente agora. É falha a memória. Talvez depois. Não, não, não. Espera! Lembro sim de um som. Era o som áspero e atordoante das suas novas palavras. Não consigo me lembrar o que você gritava. Você jorrava no ouvido. Doía. Doeu bem forte. Doeu duro. Profundo. Ali sei, naquele momento, que éramos dois. Dali sei que só restou um. Há muito perdi a conta. Mas, afinal, o que é que estava contando mesmo?

Às vezes me pego tentando lembrar onde você começou. Bem, não importa mais. Você escasseou e eu agora terminei.

Daniela Suarez Pombo

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Três Riscos, poema de Arthur Henrique Martins

risco I:
 
se tu és o penhasco,
não desejo outra queda.
 
risco II:
 
entrastes em minha casa
e contigo toda poeira da rua.
 
mas viestes com espanador em mãos.
 
risco III:
 
corpo rijo em pendulares.
de um lado a outro, tu no meio.
conservado o movimento em newton.
até que o tédio dos ângulos opostos rompeu a corda.
 
o mundo não tem braços.

Arthur Henrique Martins

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Um poema de Leonardo Janeiro

o destino talvez não venha bater à porta
nenhum movimento que o anuncie
nada a que se chame instante
entre antes e além

o destino muito provável que seja isso
eterno estar aquém
à deriva sempre sem início
onde chegar não tem

Leonardo Janeiro