domingo, 26 de abril de 2015

Chamas, de Salvador Passos


no alto dos mastros do marasmo
o câncer já prenunciado
morre
e o cântico entoado
pelas ruas
é raivoso & revoltado

nada de lirismo

no ar
o cântico alucinado
o cancro poético de tudo
como um vírus
espalha
o pânico ensimesmado
proclamando a mais grave pandemia
epidemia de epifanias
vírus nocivo
as bases do sistema destruídas
por uma simples utopia
o surto
a catarse
o escarro
o vômito fétido
o exorcismo do liberalismo panfletário
aristocrático
protozoários autoritários
a elite dos mamíferos
mamando nas tetas do sistema
e o poeta a ler poemas como Nero
lançando fogo sobre as certezas de uma outra Roma
a romaria dos economistas desesperados
e seu aroma ardendo nas fogueiras

Salvador Passos

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Medula, de Alex Moura


o movimento
a raiz
o laço
que

lastro
é forte

a solução
a agulha
sempre
uma
esperança
medula

código genético
seis semanas
célula-tronco
emana
transgênico
transgênero
tudo é vida
e tem gente
que
ainda
duvida

o olho
falha
o farol
fala
a solução
fragmentos
o lastro
decepção
mil pedaços

teste
de farmácia
de laboratório
a menina virgem
não é mais
tá no sangue
no dna
nasceu
pra dar

Alex Moura

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Cidade real maravilhosa, de Marco Alexandre de Oliveira


O Rio de Janeiro é realmente uma “cidade maravilhosa”, como diz a canção, “cheia de encantos mil". O que encanta, no entanto, não são apenas as suas inúmeras belezas, nem os seus inesquecíveis 450 anos de história, mas os seus incríveis contrastes, que revelam as incomensuráveis contradições desse “coração” do Brasil.

Por um lado o mar, por outro as montanhas. Por um lado a Zona Sul, por outro a Zona Norte. Por um lado o morro, por outro o asfalto. Assim, entre a natureza e a cidade, o cosmopolita e o provinciano, a pobreza e a riqueza, o Rio de Janeiro representa um entre-lugar, por ser um lugar de várias diferenças,e múltiplas realidades.

Entre gente boa e gente ruim, os cariocas também apresentam os seus contrastes marcantes, e as suas contradições significantes. Por um lado, se os cariocas são “bonitos”, “bacanas”, “sacanas”, “dourados”, “modernos”, “espertos” e “diretos”, como canta a gaúcha Adriana Calcanhotto, por outro lado, os cariocas são igualmente feios, chatos, corretos, escuros, antiquados, ingênuos e indiretos, como se pode observar[1].  Então, se alguns cariocas “nascem bambas”, outros nascem sem ginga. Se uns “nascem craques”, outros nascem pernas-de-pau. Uns “tem sotaque”, outros não falam carioquês. Uns “são alegres”, outros são tristes. Uns “são atentos”, outros são negligentes. Umas “são tão sexys”, outras são bem barangas. Uns “são tão claros”, outros são bem sombrios. Assim, os cariocas podem ser tão finos quanto grossos, tão chiques quanto cafonas, tão tranquilos quanto nervosos, tão generosos quanto mesquinhos e/outão malandros quanto manés, sem que essas características contrastantes, ou até contraditórias, sejam descaracterizadas.

Como estereótipos, as impressões podem ser tão verdadeiras quanto falsas. Até as constatações podem aparecer, às vezes, impressionantes. Por exemplo, o Rio de Janeiro já foi apontado como “a cidade mais simpática do mundo”, segundo uma pesquisa realizada pela revista New Scientist, que também classificou a cidade como “uma das mais violentas do mundo, notória por sua taxa alta de criminalidade e seus incontáveis males sociais”[2]. Ao mesmo tempo, parece que sobra antipatia e falta solidariedade na cidade, onde o povo contraditoriamente (ou não) se une pela paz.

A justaposição dessas realidades tão contrastantes caracterizaria o Rio de Janeiro como uma cidade “surreal”, na concepção do francês André Breton, que escreveu que “o maravilhoso participa obscuramente de uma classe de revelação geral, de que só nos chega o detalhe”, como, por exemplo, as “ruínas” antigas ou os “manequins” modernos, ou qualquer outro “símbolo” que “comove a sensibilidade humana por um tempo”[3].  Seja entre o efêmero e o eterno, seja entre a vida e a morte, o maravilhoso então surge dos contrastes e/ou das contradições, assim como em “quadros que nos fazem sorrir” enquanto pintam a “inquietação humana”, segundo Breton. Deste modo, a “cidade maravilhosa” que se (auto)retrata como “cartão postal” tropical, local de uma das sete maravilhas do mundo moderno, revela a imagem contemporânea de um ícone medieval, que abraça toda a baía e ilumina o mundo mundano com o seu coração sagrado, e sangrando.

Na realidade, o Rio de Janeiro é uma cidade “maravilhosa”, e se o tropicalista Gilberto Gil cantou que o “Rio de Janeiro continua lindo”, o surrealista Breton antes escreveu que “o maravilhoso é sempre belo, qualquer maravilhoso é belo, só mesmo o maravilhoso é belo[4].  Mas o Rio de Janeiro não é uma cidade surreal, apesar de ser linda e maravilhosa. Pelo contrário, é uma cidade real em suas diversas realidades. Assim, dir-se-ia que o Rio de Janeiro é uma cidade real maravilhosa.

Para o cubano Alejo Carpentier, que concebeu a estética do “real maravilhoso”latino-americano em contraste com a do “surrealismo” europeu, invocada na “descrença”, o maravilhoso “surge de uma inesperada alteração da realidade (o milagre), de uma revelação privilegiada da realidade, de uma iluminação incomum ou que favorece singularmente as inadvertidas riquezas da realidade, de uma ampliação das escalas e categorias da realidade”[5].  Proveniente de um certo“estado limite”, a “sensação” do maravilhoso é, antes de tudo (ou nada), fundada em uma “fé” na realidade do maravilhoso: é o maravilhoso do real e não da imaginação, do concreto e não do abstrato, da história e não da ficção. E se Carpentier presenciou esse fenômeno no Haiti, ele também percebeu que é, de fato,“patrimônio da América inteira”.

Enquanto os baianos Gilberto Gil e Caetano Veloso contam como o “Haiti é aqui”, no Brasil, o “real maravilhoso” encontra-se realizado no Rio de Janeiro, patrimônio cultural da humanidade, onde tanto os passos e as canções do samba, quanto as alegorias e as fantasias do Carnaval, não perderam o seu “caráter mágico ou invocatório”, mas ainda guardam “um profundo sentido ritual”, criando-se em torno deles “todo um processo iniciático,” como Carpentier diria[6].  Sem lembrar dos jogos de futebol, das novelas das nove, das noites de boemia e das missas de domingo.

Assim, repetir-se-ia que o Rio de Janeiro, onde a história se (con)funde com o mito para revelar uma realidade maravilhosa, pela “virgindade da paisagem” deflorada pelos homens, pela “formação”dessa cidade grande onde não há um grande rio, pela “ontologia” de ser a Cidade de São Sebastião, santo católico sincretizado orixá iorubá, pela “presença fáustica” dos índios desalojados e dos negros descriminados, pela “revelação” que consiste em sua constante dissimulação, pelas “fecundas mestiçagens” que ainda proporciona, está“muito longe de ter esgotado seu caudal de mitologias”[7].

Para concluir, uma pergunta de Carpentier poderia ser reformulada na seguinte questão: Mas o que é a história do Rio de Janeiro senão “uma crônica do real maravilhoso?” Há de se declarar que o Rio de Janeiro, este entre-lugar único e diferente, esta metrópole pré-pós-moderna, ex-capital da nação que era tanto império quanto colônia, é realmente uma cidade maravilhosa, cheia de contrastes mil. Uma cidade maravilhosa, contradição do Brasil....

Marco Alexandre de Oliveira

[1] Adriana Calcanhotto, "Cariocas", A fábrica do poema (1994). http://www.adrianacalcanhotto.com/sec_musicas_letra.php?id=14
[2]http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,rio-e-a-cidade-mais-simpatica-do-mundo-diz-revista,20030618p7948; http://www.newscientist.com/article/mg17824005.600-the-word-simpatico.html
[3]André Breton, "Manifesto do Surrealismo" (1924). http://www.culturabrasil.org/breton.htm
[4]Gilberto Gil, "Aquele abraço", Gilberto Gil(1969). http://www.gilbertogil.com.br/sec_disco_interno.php?id=4;
André Breton, "Manifesto do Surrealismo" (1924). http://www.culturabrasil.org/breton.htm
[5]Alejo Carpentier, "De lo real maravilloso americano" (1967). http://www.literatura.us/alejo/deloreal.html
[6]Caetano Veloso e Gilberto Gil, "Haiti", Tropicália2 (1973). http://www.gilbertogil.com.br/sec_disco_interno.php?id=32;
Alejo Carpentier, "De lo real maravilloso americano" (1967). http://www.literatura.us/alejo/deloreal.html
[7]Alejo Carpentier, "De lo real maravilloso americano" (1967). http://www.literatura.us/alejo/deloreal.html

Marco Alexandre de Oliveira é professor adjunto do Departamento de Letras da PUC-Rio, onde ensina cursos de Literatura e Cultura Americana e de Língua Inglesa. É também o nome real do Gringo Carioca, poeta e autor do livro Reflexos e reflexões (Oito e meio, 2014). 

quinta-feira, 16 de abril de 2015

DESAFIO POÉTICO DAS VOGAIS


Na edição número 24 do Plástico Bolha, em que o desafio era não utilizar a letra A, textos incríveis chegaram a nós - embora muitos tenham reclamado da dificuldade para driblar a abundante letra. Dessa vez, decidimos expandir a proposta: quatro desafios de uma vez! Intimamos nossos incansáveis leitores a escreverem e enviarem poemas sem E, I, O ou U. Não queremos ninguém deixando de enviar por colapso de indecisão: se você não consegue evitar o E, tente fugir do I, e assim por diante. Envie seu desafio poético para jornalplasticobolha@gmail.com

Alguns. e a vida, poema de Sarah Israel


se passa assim
assim vemos e às vezes
nem
enxergamos
como muda
e continuamos a.

Respostas. e livros
são para nosso combustível
queimar
funcionar
são como nosso ar
e mais ar só por rimar.

Leituras. e canetas
servem para eternizar
como foto-
         grafia
desse modo te desenho
ao meu lado
para um sempre
com as mesmas letras
e mais. Ilusão.
            Aves.
            Asas.
Sem engenho
eu
uso a tinta das veias.

Sarah Israel

quinta-feira, 9 de abril de 2015

Lançamento: "Escuta", de Eucanaã Ferraz



Mil pássaros, poema de Yasmin Barros


Saí da faculdade
nesta quinta-feira chuvosa.
Tomei não o primeiro ônibus que vi,
pois este foi embora antes que eu o alcançasse.
Confesso que no caminho,
imersa no mundo dos smartphones
(qualquer hora acabamos afogados)
não dei muita atenção ao engarrafamento,
que até parecia pior do que realmente foi.

Sentei-me à janela, mas
— que erro o meu —
sentei-me do lado errado.
De onde estava, não podia
ver a praia.
Erguendo os olhos, porém,
já cansada do celular,
pude avistar um senhor.
Ofereci a ele o meu lugar
e após o sorriso que acompanhou o seu
"não, querida, muito obrigada",
decidi por virar-me à janela.

A claridade me incomodou,
o que não pareceu fazer sentido
considerando que tão cinza estava o céu.
Mas talvez fosse um holofote
para me fazer ver
o estranho fenômeno que me leva a este poema.

Havia aves.
Não uma ou duas.
Centenas.
Não cento e duas.
Milhares.
(É sempre assim o céu de Ipanema?)

Fiquei não sei quanto tempo olhando
apreciando
admirando.
(Será que eles sabem como são livres?)
(Será que eles sabem quantos de nós gostariam de um par
de asas, não de braços,
porque os braços não nos permitem voar?)

Peguei o celular e tirei uma foto
de péssima qualidade
— nem sei bem por que o fiz.
Acho que achei que justo seria
não guardar só pra mim
este momento de poesia.

Pensei que todos no ônibus notariam a foto que tirei
e os que ainda não tinham visto
(seria possível não ver tantos pássaros negros no céu?)
logo perceberiam
e se perderiam naquela visão
da forma como eu me perdi.

As pessoas, porém,
pareciam não notar
— tão imersas no mundo dos smartphones —
(um dia ainda vão se afogar).

De repente a Vieira Souto
não era seus prédios,
não era seu valor
(na verdade nunca foi),
não era nem mesmo sua praia.

De repente a Vieira Souto
era milhares de manchas negras
no céu acizentado
desta quinta-feira chuvosa.

De repente eu só queria
saber para onde iam
saber por que eram tantos
saber por que nunca na vida eu vira algo assim.
Mas, sem sequer responder minhas perguntas,
o ônibus virou à esquina.

Agora eram as árvores
e eu já não via mais o céu.
Via a vitrine de mil lojas
mil vestidos
mil blusas
mil sapatos
mas nada era tão belo quanto os meus
mil pássaros.

Para onde iam?
Por que eram tantos?
Por que nunca em minha vida
eu vira  algo assim?
Desci na praça e
— que alívio! —
havia aves.
Não uma ou duas.
Centenas.
Não cento e duas.
Milhares.
Mas ninguém as via.

Não me importava que não me vissem
— talvez até tropeçassem em mim —
mas não havia problema, desde que vissem
mil pássaros.

Mas não viam mil pássaros.

Caminhei, caminhei,
e quase caí na calçada.
Não vi a pedra no meio do caminho
porque o chão não era belo como o céu.

O chão não tinha mil pássaros.

Obrigada a olhar para a frente
disse adeus aos meus mil pássaros.
Passei então pela entrada do metrô
na certeza de que o subterrâneo
não me mostraria mil pássaros.

Sentei-me à janela, mas
— que acerto o meu —
sentei-me do lado certo.
De onde eu estava, não podia
ver a praia.
Mas pude ver mil pássaros.
Seriam eles mais belos do que a praia?

Penso agora que os pássaros parecem as palavras neste papel
coincidentemente escritas com caneta preta,
porém em uma folha não tão cinza quanto o céu
desta quinta-feira chuvosa.
O único problema é que
em vez do ar puro e livre
recebem o ar abafado do metrô apertado.
Em vez do meu olhar admirado
recebem o olhar desaprovador das que incomodo com meu papel.

Desculpem, senhoras,
as palavras não esperam.
As palavras são como os pássaros, senhoras.
Se não as escrevesse,
voariam para um lugar
que eu não sei onde é
e eu nunca mais as veria.

Porém, já vai chegando minha hora de parar.
Parece que este poema é tão longo quanto a distância
de Ipanema à minha casa.
Parece que este poema tem tantas palavras

quanto havia de pássaros no céu.

Yasmin Barros