O Rio de Janeiro é realmente uma “cidade maravilhosa”, como diz a
canção, “cheia de encantos mil". O que encanta, no entanto, não são apenas
as suas inúmeras belezas, nem os seus inesquecíveis 450 anos de história, mas
os seus incríveis contrastes, que revelam as incomensuráveis contradições desse
“coração” do Brasil.
Por um lado o mar, por outro as montanhas. Por um lado a Zona Sul,
por outro a Zona Norte. Por um lado o morro, por outro o asfalto. Assim, entre
a natureza e a cidade, o cosmopolita e o provinciano, a pobreza e a riqueza, o
Rio de Janeiro representa um entre-lugar, por ser um lugar de várias
diferenças,e múltiplas realidades.
Entre gente boa e gente ruim, os cariocas também apresentam os
seus contrastes marcantes, e as suas contradições significantes. Por um lado,
se os cariocas são “bonitos”, “bacanas”, “sacanas”, “dourados”, “modernos”,
“espertos” e “diretos”, como canta a gaúcha Adriana Calcanhotto, por outro
lado, os cariocas são igualmente feios, chatos, corretos, escuros, antiquados, ingênuos
e indiretos, como se pode observar[1].
Então, se alguns cariocas “nascem bambas”, outros nascem sem ginga. Se
uns “nascem craques”, outros nascem pernas-de-pau. Uns “tem sotaque”, outros
não falam carioquês. Uns “são alegres”, outros são tristes. Uns “são atentos”,
outros são negligentes. Umas “são tão sexys”, outras são bem barangas. Uns “são
tão claros”, outros são bem sombrios. Assim, os cariocas podem ser tão finos
quanto grossos, tão chiques quanto cafonas, tão tranquilos quanto nervosos, tão
generosos quanto mesquinhos e/outão malandros quanto manés, sem que essas
características contrastantes, ou até contraditórias, sejam descaracterizadas.
Como estereótipos, as impressões podem ser tão verdadeiras quanto
falsas. Até as constatações podem aparecer, às vezes, impressionantes. Por
exemplo, o Rio de Janeiro já foi apontado como “a cidade mais simpática do
mundo”, segundo uma pesquisa realizada pela revista New Scientist, que também
classificou a cidade como “uma das mais violentas do mundo, notória por sua
taxa alta de criminalidade e seus incontáveis males sociais”[2]. Ao mesmo tempo,
parece que sobra antipatia e falta solidariedade na cidade, onde o povo
contraditoriamente (ou não) se une pela paz.
A justaposição dessas realidades tão contrastantes caracterizaria
o Rio de Janeiro como uma cidade “surreal”, na concepção do francês André
Breton, que escreveu que “o maravilhoso participa obscuramente de uma classe de
revelação geral, de que só nos chega o detalhe”, como, por exemplo, as “ruínas”
antigas ou os “manequins” modernos, ou qualquer outro “símbolo” que “comove a
sensibilidade humana por um tempo”[3]. Seja
entre o efêmero e o eterno, seja entre a vida e a morte, o maravilhoso então
surge dos contrastes e/ou das contradições, assim como em “quadros que nos
fazem sorrir” enquanto pintam a “inquietação humana”, segundo Breton. Deste
modo, a “cidade maravilhosa” que se (auto)retrata como “cartão postal”
tropical, local de uma das sete maravilhas do mundo moderno, revela a imagem
contemporânea de um ícone medieval, que abraça toda a baía e ilumina o mundo
mundano com o seu coração sagrado, e sangrando.
Na realidade, o Rio de Janeiro é uma cidade “maravilhosa”, e se o
tropicalista Gilberto Gil cantou que o “Rio de Janeiro continua lindo”, o
surrealista Breton antes escreveu que “o maravilhoso é sempre belo, qualquer
maravilhoso é belo, só mesmo o maravilhoso é belo[4]. Mas o Rio de Janeiro não é uma cidade
surreal, apesar de ser linda e maravilhosa. Pelo contrário, é uma cidade real
em suas diversas realidades. Assim, dir-se-ia que o Rio de Janeiro é uma cidade
real maravilhosa.
Para o cubano Alejo Carpentier, que concebeu a estética do “real
maravilhoso”latino-americano em contraste com a do “surrealismo” europeu,
invocada na “descrença”, o maravilhoso “surge de uma inesperada alteração da
realidade (o milagre), de uma revelação privilegiada da realidade, de uma
iluminação incomum ou que favorece singularmente as inadvertidas riquezas da
realidade, de uma ampliação das escalas e categorias da realidade”[5]. Proveniente de um certo“estado limite”, a
“sensação” do maravilhoso é, antes de tudo (ou nada), fundada em uma “fé” na
realidade do maravilhoso: é o maravilhoso do real e não da imaginação, do
concreto e não do abstrato, da história e não da ficção. E se Carpentier
presenciou esse fenômeno no Haiti, ele também percebeu que é, de
fato,“patrimônio da América inteira”.
Enquanto os baianos Gilberto Gil e Caetano Veloso contam como o
“Haiti é aqui”, no Brasil, o “real maravilhoso” encontra-se realizado no Rio de
Janeiro, patrimônio cultural da humanidade, onde tanto os passos e as canções
do samba, quanto as alegorias e as fantasias do Carnaval, não perderam o seu
“caráter mágico ou invocatório”, mas ainda guardam “um profundo sentido
ritual”, criando-se em torno deles “todo um processo iniciático,” como
Carpentier diria[6]. Sem lembrar dos jogos
de futebol, das novelas das nove, das noites de boemia e das missas de domingo.
Assim, repetir-se-ia que o Rio de Janeiro, onde a história se
(con)funde com o mito para revelar uma realidade maravilhosa, pela “virgindade
da paisagem” deflorada pelos homens, pela “formação”dessa cidade grande onde
não há um grande rio, pela “ontologia” de ser a Cidade de São Sebastião, santo
católico sincretizado orixá iorubá, pela “presença fáustica” dos índios
desalojados e dos negros descriminados, pela “revelação” que consiste em sua
constante dissimulação, pelas “fecundas mestiçagens” que ainda proporciona,
está“muito longe de ter esgotado seu caudal de mitologias”[7].
Para concluir, uma pergunta de Carpentier poderia ser reformulada
na seguinte questão: Mas o que é a história do Rio de Janeiro senão “uma
crônica do real maravilhoso?” Há de se declarar que o Rio de Janeiro, este
entre-lugar único e diferente, esta metrópole pré-pós-moderna, ex-capital da
nação que era tanto império quanto colônia, é realmente uma cidade maravilhosa,
cheia de contrastes mil. Uma cidade maravilhosa, contradição do Brasil....
Marco Alexandre de Oliveira
[1] Adriana Calcanhotto, "Cariocas", A fábrica do poema
(1994). http://www.adrianacalcanhotto.com/sec_musicas_letra.php?id=14
[2]http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,rio-e-a-cidade-mais-simpatica-do-mundo-diz-revista,20030618p7948;
http://www.newscientist.com/article/mg17824005.600-the-word-simpatico.html
[3]André Breton, "Manifesto do Surrealismo" (1924).
http://www.culturabrasil.org/breton.htm
[4]Gilberto Gil, "Aquele abraço", Gilberto Gil(1969).
http://www.gilbertogil.com.br/sec_disco_interno.php?id=4;
André Breton, "Manifesto do Surrealismo" (1924).
http://www.culturabrasil.org/breton.htm
[5]Alejo Carpentier,
"De lo real maravilloso americano" (1967).
http://www.literatura.us/alejo/deloreal.html
[6]Caetano Veloso e Gilberto Gil, "Haiti", Tropicália2
(1973). http://www.gilbertogil.com.br/sec_disco_interno.php?id=32;
Alejo Carpentier,
"De lo real maravilloso americano" (1967).
http://www.literatura.us/alejo/deloreal.html
[7]Alejo Carpentier,
"De lo real maravilloso americano" (1967).
http://www.literatura.us/alejo/deloreal.html
Marco Alexandre de Oliveira é professor adjunto do Departamento de Letras da PUC-Rio, onde ensina cursos de Literatura e Cultura Americana e de Língua Inglesa. É também o nome real do Gringo Carioca, poeta e autor do livro Reflexos e reflexões (Oito e meio, 2014).
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