quinta-feira, 18 de julho de 2013

A vida pela hora da morte! - Sempiternos adágios



As manifestações populares do mês passado (junho de 2013), no Rio de Janeiro, tiveram como estopim o aumento de vinte centavos no preço das passagens do transporte coletivo. Mas o movimento ultrapassou em muito o protesto contra o aumento do preço da passagem de ônibus! Na realidade, os vinte centavos incluíam o indignado e até então sufocado protesto contra a carestia, a inflação, a falta de recursos básicos nas áreas de educação e saúde, contra a vigência da corrupção, dos impostos extorsivos cobrados dos cidadãos, da falta de transparência na aplicação do dinheiro público, das negociatas que envolvem obras estatais, etc. ― Vox populi, vox Dei!

Pois é!  A Res publica, na figura de Dilma Rousseff, foi forçada a ouvir a vox juvenum, a voz dos jovens nas ruas do Brasil, e foi forçada a declarar a legitimidade do movimento. E nem poderia ser diferente, pois a ideia de que uma opinião compartilhada por todos não pode ser falsa já se encontra na literatura grega desde Hesíodo e, na romana, desde Sêneca, o Velho, em que se lê que “a língua do povo é sagrada” (Sacra populilingua est) que confirma o dito medieval A voz do povo é a voz de Deus.

Em Roma, acreditava-se, até mesmo, que a primeira palavra ouvida ao sair-se porta afora poderia ser uma palavra profética. Assim, se um romano tivesse algum assunto a tratar e estivesse em dúvida sobre que decisão tomar, a primeira palavra ouvida na rua seria a voz de um deus. Em outras palavras, seria a resposta à dúvida. De fato, nosso romano indeciso sempre poderia invocar o deus Aius Locutius, que certamente se manifestaria, nem que fosse pela força do pleonasmo de seu nome.  Aio significa “afirmo”, “digo”, “falo”. Locutus sum, por sua vez, é a origem da forma Locutius, e significa “falei”, “disse”.  Deveras loquaz este misterioso deus Falo e digo e repito ou Aio Locúcio!

Parecem ter sido vítimas desta misteriosa e divertida divindade pagã aqueles funcionários da notícia que, antes da declaração oficial de legitimidade do movimento das ruas, ridiculamente o repudiaram e desclassificaram. ― Pois é, Arnaldo Jabor, “anarquismo inútil” é forte até mesmo em um discurso de retratação pública! O ridículo de vozes deste tipo me fez associar os sintagmas “vinte centavos”, “preço do transporte”, “passagem” a outro adágio estampado em cartazes de manifestantes do movimento: ― O tomate está pela hora da morte!  Uma bem humorada paráfrase do velho A vida está pela hora da morte.

Se o custo de vida anda alto, o da morte, paradoxalmente, anda altíssimo. E aí vai uma questão a ser pensada: se em vida já pagamos altas taxas de juros e impostos, por que temos de pagar pela morte? Não seria o caso de protestar também contra o custo do transporte para o mundo dos mortos? Sem abordar o abjeto assunto da “máfia dos cemitérios”, a morte nunca foi grátis. O pagamento da passagem para a morte não é novo e nem moderno. Assim nos testifica a figura de Caronte, o barqueiro do mundo dos mortos da mitologia grega.

Diz o mito que quando a alma abandonava o cadáver, ela era conduzida ao mundo subterrâneo dos mortos por Hermes, que a deixava às margens do rio Aqueronte. Dali, se o corpo tivesse sido sepultado e mediante o pagamento de um óbolo, era permitido à alma entrar na sombria barca de Caronte. Cruzando as tenebrosas águas do Aqueronte, a barca atracava na margem oposta, e a alma chegara em definitivo ao Hades, o reino de Plutão e Perséfone, cujo imponente saguão era guardado pelo tricéfalo Cérbero, o cão do mundo subterrâneo.

Um óbolo, portanto, era o preço da passagem para o mundo dos mortos. É por isso que na Grécia antiga existia o costume religioso de se colocar a dita moeda na boca ou por sobre a pálpebra do morto. O óbolo era a medida grega de menor valor: a sexta parte de uma dracma ou meio grama de prata.  Nosso centavo de real, que já nem mais circula, apesar de continuar a ser computado no preço de mercadorias e produtos, não serve como comparação. Já vinte centavos, quem sabe?

Só que, em nossa história, os vinte centavos de aumento seriam cobrados (não fosse o Movimento Passe Livre) pelo transporte de pessoas vivas em viagens diárias, verdadeiras vivências de um inferno surreal. Nenhum carioca, obrigado a usar o transporte público, terá dificuldade em imaginar a barca de Caronte! Ele a conhece dos ônibus e do metrô que servem à população.

Ao fim e ao cabo, não é de estranhar que tenhamos a morte em tão alta conta: ― Fulano vale mais morto que vivo! Pela fria lógica de mercado, um morto tem um polpudo saldo de créditos por tudo que pagou em vida, sem esquecer o custo derradeiro: o do funeral. Ainda que macabra, fica a irônica sugestão de uma nova reivindicação, não de todo descabida. ― Abaixo o óbolo de Caronte: cemitérios públicos livres para todos!