por Miriam Sutter
As manifestações populares do mês passado (junho de
2013), no Rio de Janeiro, tiveram como estopim o aumento de vinte centavos no
preço das passagens do transporte coletivo. Mas o movimento ultrapassou em
muito o protesto contra o aumento do preço da passagem de ônibus! Na realidade,
os vinte centavos incluíam o indignado e até então sufocado protesto contra a
carestia, a inflação, a falta de recursos básicos nas áreas de educação e saúde,
contra a vigência da corrupção, dos impostos extorsivos cobrados dos cidadãos,
da falta de transparência na aplicação do dinheiro público, das negociatas que
envolvem obras estatais, etc. ― Vox
populi, vox Dei!
Pois é! A Res publica, na figura de Dilma
Rousseff, foi forçada a ouvir a vox juvenum,
a voz dos jovens nas ruas do Brasil, e foi forçada a declarar a legitimidade do
movimento. E nem poderia ser diferente, pois a ideia de que uma opinião
compartilhada por todos não pode ser falsa já se encontra na literatura grega
desde Hesíodo e, na romana, desde Sêneca, o Velho, em que se lê que “a língua
do povo é sagrada” (Sacra populilingua
est) que confirma o dito medieval A
voz do povo é a voz de Deus.
Em Roma, acreditava-se, até mesmo, que a primeira
palavra ouvida ao sair-se porta afora poderia ser uma palavra profética. Assim,
se um romano tivesse algum assunto a tratar e estivesse em dúvida sobre que
decisão tomar, a primeira palavra ouvida na rua seria a voz de um deus. Em
outras palavras, seria a resposta à dúvida. De fato, nosso romano indeciso sempre
poderia invocar o deus Aius Locutius,
que certamente se manifestaria, nem que fosse pela força do pleonasmo de seu
nome. Aio significa “afirmo”, “digo”, “falo”. Locutus sum, por sua vez, é a origem da forma Locutius, e significa “falei”, “disse”. Deveras loquaz este misterioso deus Falo e digo e repito ou Aio Locúcio!
Parecem ter sido vítimas desta misteriosa e
divertida divindade pagã aqueles funcionários da notícia que, antes da
declaração oficial de legitimidade do movimento das ruas, ridiculamente o repudiaram
e desclassificaram. ― Pois é, Arnaldo Jabor, “anarquismo inútil” é forte até
mesmo em um discurso de retratação pública! O ridículo de vozes deste tipo me
fez associar os sintagmas “vinte centavos”, “preço do transporte”, “passagem” a
outro adágio estampado em cartazes de manifestantes do movimento: ― O tomate está pela hora da morte! Uma bem humorada paráfrase do velho A vida está pela hora da morte.
Se o custo de vida anda alto, o da morte,
paradoxalmente, anda altíssimo. E aí vai uma questão a ser pensada: se em vida já
pagamos altas taxas de juros e impostos, por que temos de pagar pela morte? Não
seria o caso de protestar também contra o custo do transporte para o mundo dos
mortos? Sem abordar o abjeto assunto da “máfia dos cemitérios”, a morte nunca
foi grátis. O pagamento da passagem para a morte não é novo
e nem moderno. Assim nos testifica a figura de Caronte, o barqueiro do mundo
dos mortos da mitologia grega.
Diz o mito que quando a alma abandonava o cadáver,
ela era conduzida ao mundo subterrâneo dos mortos por Hermes, que a deixava às
margens do rio Aqueronte. Dali, se o corpo tivesse sido sepultado e mediante o
pagamento de um óbolo, era permitido à alma entrar na sombria barca de Caronte.
Cruzando as tenebrosas águas do Aqueronte, a barca atracava na margem oposta, e
a alma chegara em definitivo ao Hades, o reino de Plutão e Perséfone, cujo
imponente saguão era guardado pelo tricéfalo Cérbero, o cão do mundo
subterrâneo.
Um óbolo, portanto, era o preço da passagem para o
mundo dos mortos. É por isso que na Grécia antiga existia o costume religioso
de se colocar a dita moeda na boca ou por sobre a pálpebra do morto. O óbolo
era a medida grega de menor valor: a sexta parte de uma dracma ou meio grama de
prata. Nosso centavo de real, que já nem
mais circula, apesar de continuar a ser computado no preço de mercadorias e produtos,
não serve como comparação. Já vinte centavos, quem sabe?
Só que, em nossa história, os vinte centavos de
aumento seriam cobrados (não fosse o Movimento Passe Livre) pelo transporte de pessoas
vivas em viagens diárias, verdadeiras vivências de um inferno surreal. Nenhum
carioca, obrigado a usar o transporte público, terá dificuldade em imaginar a
barca de Caronte! Ele a conhece dos ônibus e do metrô que servem à população.
Ao fim e ao cabo, não é de estranhar que tenhamos a
morte em tão alta conta: ― Fulano vale
mais morto que vivo! Pela fria lógica de mercado, um morto tem um polpudo saldo
de créditos por tudo que pagou em vida, sem esquecer o custo derradeiro: o do funeral.
Ainda que macabra, fica a irônica sugestão de uma nova reivindicação, não de
todo descabida. ― Abaixo o óbolo de
Caronte: cemitérios públicos livres para todos!
Um comentário:
Como é bom poder interpretar os fatos do dia-a-dia à luz de inteligências como a da prof. Miriam Sutter. Numa realidade exclusivamente comercial, visando apenas o lucro, manipulando as mentes através de novelas idiotas e propagandas enganosas, precisamos de alguém capaz de nos fazer reportar ao nosso passado mais antigo, pois é ali que se encontra a fonte de tudo o que vivemos agora. Neste atual mundo de zumbis, onde ninguém quer saber de nada, pois se acha muito insignificante para pensar seja no que for, é da maior importância que os intelectuais realmente dignos desse nome -- sem "ideologias" preconceituosas -- venham a lume. Parabéns ao blog pelo artigo.
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