domingo, 31 de agosto de 2014

Os dias


Quando Deus criou o mundo, gente,
nem teve vento, teve
sopro.

Quando criou o mundo,
nem teve gente,
teve lodo.

Quando Ele criou,
nem sabia bicho,
sabia água.

E quando água,
sabia nada. E quando bicho,
sabia um trisco,
e lava.

Quando Deus criou o mundo,
nem tinha mundo,
tinha fundo e tinha carpa.
E era tudo espírito.

Quando espírito
era tudo água.

Tiago Maviero

sábado, 30 de agosto de 2014

Araras


Pronto, abelha! Aqui sua crônica. Satisfeita? Assim espero... Peço licença agora pra dividir com o leitor a sua história, a nossa.

Chegava eu em Araras, onde fui com minha mãe visitar o terreno em que ela está construindo; tinha em mãos papel e caneta, e na cabeça uma ideia: escrever algo sobre meu falecido pai. Sobre como a expulsão de Adão e Eva do paraíso me parecia um tanto análoga à situação de um jovem quando sai da casa dos pais. Sobre a morte de deus.

Vim esboçando algumas frases ainda na estrada, a letra horrível, na contracapa de um livro que estava jogado no banco de trás. Quando paramos no centrinho comprei um caderno.

Chegando ao terreno, saí do carro e me sentei direto num montinho de entulho que havia e ataquei sem dó o papel.

- Filho, você não vai subir comigo pra ver como tá ficando a obra?

Nem respondi. Estava trabalhando na minha obra. Eis que entra em cena nossa amiga. Enquanto escrevia, uma abelhinha (ou algum bicho que zune, que chamarei de abelha) começou a me pentelhar. Pior, parecia que dava voltas ao redor de mim. Parecia de propósito.

- Puta que o pariu - pensei - um assunto tão sério e você me atazanando. Ela impedia qualquer concentração requerida pelo tema. Mudei de lugar, ela veio atrás. Gostaria de enfatizar o quanto parecia ser de propósito. Era pessoal.

Pedi à minha mãe a chave do carro e entrei para tentar escrever meu texto. E não é que podia vê-la batendo sua cabecinha no vidro. Fui forçado pelo calor a abrir a janela. O zumzumzum constante, e, acredite quem quiser, ela entrou no carro, me obrigando a sair.

O certo aí era eu ter ficado muito puto. Seria minha primeira reação. Mas não. Entendi que ela queria me dizer algo. Talvez fosse até mesmo meu pai falando através dela: - olha, a vida é aqui, agora. O zumzumzum, minha própria consciência, incômoda, mas fundamental.

Aqui, abelhinha; espero que goste. Agora me deixa ir ver a obra.

Santiago Perlingeiro


sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Antes que o dia acabe


antes que o dia acabe
entrego-me aos lobos maus, vestidos de vovozinhas
que oferecem em suas garras lustradas
uma cura tentadora aos meus dias ocos.

antes que o dia acabe
arrumo uma briga de bar com um vagabundo qualquer
tendo boêmios e malandros como espectadores
só para sentir meu pulso latejando e meus olhos ardendo.

antes que o dia acabe
pouparei os outros da minha presença
flerto com a indiferença
até onde durar minha descrença
ou sentença.

antes que o dia acabe
alimentar-me-ei de música alta, do rock a bossa nova
e com olhos fechados e ouvidos aguçados
deixarei a melodia fluir por mim como sangue novo.

antes que o dia acabe
serei narcisista e prepotente
me amarei ao menos um dia
amor próprio não faz mal a ninguém.

antes que o dia acabe
serei infante, infame
intolerante vociferador
inocente usurpador
sem pudor.

antes que o dia acabe
o caos ha de me esfacelar os neurônios
valha-me deus, onde está o divino silêncio?
e o tic-tac do tempo para que eu possa acompanhá-lo?

antes que o dia acabe
preciso de um abraço apertado de quem amo
mas meu amor é incolor, inodoro e mudo
e só espero que meus olhos desesperados sejam o suficiente para ti...

...antes que o dia acabe

Saulo Aguiar


esqueçam as terras que não possuem água em cima.


em atlântico, há uma
concha
lagarta entregue
devota, seu
corpo traz
as marcas das
ondas de lá pra

exilada
de costas na mesa dura imóvel nada representa sob a luz fria e seca
tristefim

Luisa Arraes


quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Bar Nietzschevah


Dona Serafina
Será fina
Quando pegar na vela a cera fina
(Na sua orgia pessach-lina
Entre perus, frutas secas
E roupas cheirando à naftalina)
Deixando seus dedos ruborizarem
Com o brilho ainda mais cintilante
Do que o dos rubis à mostra em seu pescoço.
No agir de sua insana consciência
Em meio à escuridão iluminada de suas jóias
Em meio à fartura vomitada à mesa
Com o auspício dos campos de concentração
(De renda)
Em meio a sua retórica de Alzheimer
Em meio a suas memórias de Weimar
Mãos artríticas de bombas que inflamam
As articulações da alma
Segurando seu colar
Com a boca torta
E o coração forte, porém complacente
Declara a seus descendentes,
Assim, inadvertidamente
E na sabedoria do acaso doente:
“Foi roubado no meio de uma chacina,
Mas quando a liberdade é roubada,
O crime não se sente”.
Volta-se a sua função obrigatória de deglutir
Sem sentir
Fala qualquer frase em Ídiche
E termina de comer sua quiche.

Felipe Zava


terça-feira, 26 de agosto de 2014

Manual dos olhos


1. Faz o sinal para o ônibus que sempre pega.
2. Sobe, paga, senta.
3. Fecha os olhos. Não abre até sentir que o destino chegou.

1. No metrô, o chão tem rotas traçadas para cegos. Encontra uma reta, numa hora deserta.
Fecha os olhos.
2. Segue o caminho até a curva, faz a curva, tenta subir a escada sem ver.
3. Segura na memória o tato do túnel todo, comprido, liso, o medo daquela vala.

1. Encontra um muro comprido, uma grade, um corrimão bem longo no caminho.
2. Fecha os olhos e tateia até o fim.
3. Ouve música, canta, toca um instrumento. O tempo não é distância, é ritmo.

1. Dançando, olha no fundo dos olhos do par e conduz. Depois se deixa conduzir. Cuidado para não cair.
2. Alinha a respiração à do par. Agora sincopa: quando um inspira, o outro expira, por muito tempo. Difícil.

1. No banho, põe óculos de natação, e abre os olhos no chuveiro.
2. No mar, afunda até a linha d'água sumir. É céu em todas as direções. Não tem fundo.

1. Lembra que a praia está detrás destes prédios. Depois tem o horizonte. Para todos os lados é assim.
2. Lembra que tem um quarto igual a este aqui em cima. E outro. E outro. Depois tem a chuva caindo e aí o céu pra sempre.
3. Lembra que as pessoas estão todas nuas por debaixo da roupa.

1. No espelho, tapa um olho e se vira de perfil. Com o outro se espia dormindo (salvo os caolhos).
2. Tapa seu rosto com um espelho, para quem está conversando encontrar os próprios olhos. Reveza.

1. De bicicleta, vira o retrovisor para si e fixa os próprios olhos.
2. Agora olha só para o alto.

1. Andar na rua de costas. A testar.


Não se assusta com o que começa a ver. Postes mudam de lugar, ônibus rugem e pessoas são pássaros que riem, bípedes de sangue quente.

André Aranha


Premio Paulo Britto de Prosa & Poesia

Estão abertas as inscrições para o prêmio Paulo Britto de Prosa & Poesia! Não perca!
(link para o edital)

Trechos de um diário de viagem pelo norte do Brasil


"No segundo dia no barco as pessoas já começam a pirar. Ouço a palavra de Jesus constantemente ao redor, no meio da noite mala revistada por roubo de celular e até eu começo a julgar e lidar com dores de cabeça. A mulher gorda da rede em frente grita pela mamãe o tempo inteiro, está de ressaca do porre que tomou e nem levanta da rede, jogando seu show do milhão versão celular. As crianças também estão mais quietas. Fizeram um labirinto com peças de dominó por onde passam seus carrinhos, deitadas no chão. A música não está tão alta, mas silêncio aqui não existe.

Estou cansada. Manoel de Barros é abuso de beleza, a paisagem se tornou repetitiva e até espio um número lá atrás para andar com meu sudoku. O que resta de bom é ir pra frente do barco, onde o tecnobrega forró universitário, que já até sei cantar, não chega. O vento traz um suspiro fresco da mata.

Sento no chão, no cantinho onde dois enormes benjamins carregam dez celulares ao mesmo tempo. Caetano me acalma e depois Milton me salvará. Os semi-conhecidos cruzam pelo barco, trocamos olhares e sorrisos. Já somos quase íntimos. Milton tem muito a ver com isso aqui, evocando as florestas, os rios e os peixes.

Olho pros que ainda restaram no barco. Os que vão ficar e os que também vão descer. Me despeço com alegria no coração de cada rosto visto, cada história ouvida. Minha aventura continua e também a deles. Só o destino para fazer cruzar mais uma vez. Santarém está à vista. Uma última conversa com um vizinho de rede. Um brutamontes de luzes loiras e rede xadrez verde limão. Fala tão rápido que não entendo quase nada. Ele levanta carros por 50 reais.

Depois daí veio a Casa Azul, pra nunca mais sairmos"

Luísa Pollo


segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Inverso do Avesso — Plástico Bolha e Poeme-se

 
O Plástico Bolha e a Poeme-se se juntaram para levar o seu versos para uma camiseta poética!
 
Para isso, criamos o concurso cultural "Inverso do Avesso" que irá estampar o poema vencedor em uma camiseta da Poeme-se, além de distribuir diversos outros prêmios. Confira abaixo como participar e envie logo o seu!
 

 
 
Regulamento Concurso Inverso do Avesso:

Inscrição

1. Serão aceitos poemas de qualquer escritor vivo, inédito ou não, de qualquer idade ou localidade.

2. Os poemas inscritos deverão conter no máximo de 140 caracteres (contando os espaços). Serão desconsiderados textos que ultrapassarem este limite.

3. Não haverá restrição quanto a estilo ou modalidade poética.

4. Título podem ou não estar inclusos; (caso haja titulo, será considerado parte dos 140 caracteres).

5. Cada autor poderá participar apenas 1 (uma) vez.

6. Os poemas deverão ser da autoria do próprio concorrente.

7. Apenas serão aceitos versos enviados para o e-mail: contato@jornalplasticobolha.com.br.

8. Os versos deverão constar no corpo do e-mail entre aspas.

9. Junto ao texto, o concorrente deverá informar no e-mail:

• Nome completo
• Nome ao publicar
• RG
• Telefone
• Endereço

10. A data de envio vai do dia 25/08 (vinte e cinco de Agosto) ao dia 09/09 (nove de Setembro) de 2014.

11. A entrega dos prêmios será feita por Correios e será realizada após a data do lançamento oficial da Camiseta poética.

 
 
 
Premiação

1o lugar

a) Verso de sua autoria publicado/estampado em uma camiseta da POEME-SE.
b) Verso de sua autoria publicado no site e demais meios virtuais do Plástico Bolha e da Poeme-se.
c) 2 (duas) camisetas com seu poema e mais 50% de desconto na loja virtual da Poeme-se.
d) 3 (três) exemplares da Antologia de Poesia Plástico Bolha.
e) 1 (um) kit completo do jornal Plástico Bolha.

2o lugar

a) Verso de sua autoria publicado no site e demais meios virtuais do Plástico Bolha e da Poeme-se.
b) 40% de desconto na loja virtual da POEME-SE.
c) 2 exemplares da Antologia de poesia Plástico Bolha.
d) 1 kit do jornal Plástico Bolha.

3o lugar

a) Verso de sua autoria publicado no site e demais meios virtuais do Plástico Bolha e da Poeme-se.
b) 40% de desconto na loja virtual da POEME-SE.
c) 1 exemplar da Antologia de poesia Plástico Bolha.

Aos 20 finalistas

a) 30% de desconto na loja virtual da POEME-SE.

A todos os participantes

a) 20% de desconto na loja virtual da POEME-SE.

 
 
 
Júri

O júri será composto por poetas, colaboradores e pessoas ligadas à ação e à história do jornal Plástico Bolha e da Poeme-se:

• Alice Sant’Anna
• Augusto Guimaraens
• Camila Justino
• Gledson Vinícius
• Helena Martins
• Lucas Viriato
• Rodrigo Freitas
• Santiago Perlingeiro
• Tomé Lavigne
• Yassu Noguchi

Semente do mundo


És um broto,
Feixe de luz que alveja o abismo
Grudou no ventre
Qual cravo que vai despontar

És um clarão feroz.
Rebento que não quero que rebente,
Mas vai me arrebatar
Fazendo de mim cativa
No primeiro pranto de nascença

Minha vida medra
Ao suave tinido da tua inexistência.
Sussurrando,
Vais manar da terra
Teu suspiro cresce num grito
E teu amor me afoga
Doce promessa de botão de flor

Eu sou a várzea,
terra fértil
E tu és moço, tão moço que irromper é só anúncio
Mas virás áureo
Meu crisântemo, minha flor d’ouro
Entalha por dentro meu corpo, meu pequeno adorno

Com teus floreios, minha criança,
Enche-me de amor.

Isabela Peixoto


domingo, 24 de agosto de 2014

Enterro da Rosa


"– Roubada foi
Do túmulo de meu amor
Que afronta aos entes queridos
Não se rouba uma flor"

Todos exasperados
Onde está o ladrão?
Procura de cá e de lá
Mas que baita confusão

Uns choram de tristeza
Outros riem de desespero
A velha agarrada à bengala
Põe a mente num cativeiro

O chão úmido está
Sujo com barro de solados desgastados
O lugar está mofado
E continuam os soluços abafados

Mas e nada de flor
Nada de reposição
O morto não poderá descansar
Sem nenhuma prestação

Ninguém agüenta mais
– Tem que enterrar
Diz a velha com a bengala
Que no momento, só sabia resmungar

Vamos respeitar
Ela é a mulher da vida do morto
Ou pelo menos era
Antes de tudo se torna assim: meio oco

Eis que se ouve um grito
A sobrinha Marieta anuncia:
– Achei a mulher roubada!
Estava jogada atrás da porta

O soluço cessa
A flor é devolvida ao seu lugar
A confusão se encerra
E a velha põe-se a chorar

A flor já foi achada
A vida já tinha sido levada
Junto daquela alma inquieta
Podem enterrar

E no final
Lá se foi, a flor,
Ironia, quem sabe
Deixar um pouco de vida
Junto daquele ser já morto

Beatriz Mota



sexta-feira, 22 de agosto de 2014

cansei


Cansei.
Não há palavras,
nem suspiros,
prendo no peito
um “ah” enorme.

Cansei.
Olhos caíram, mãos tremem,
e o chiado vem;
não há nada além de um nó
na garganta.

Cansei.
E larguei a caneta,
abri o vinho
e tentei descansar;
mas não há palavras
pra levar a vida.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Aprendizagens do dia


Tudo se instala sobre a névoa
Da chuva de um tédio ou mais um dia
Sem qualquer aprendizagem.
Se encolhe lentamente sobre as almofadas
No modo a escolher algum animal marinho
A se parecer com seus pés úmidos
Arrastados pelas ruas, mas ontem,
Hoje, o nome lhe arqueja fósseis presentes
Ou a respiração de uma lula gigante
Mas não é nada ou são os sons minúsculos
Pingos que soletrassem a suspeita de
Alguma visita lhe trazer o passado por
Essa porta. A vida dos peixes se encolhe
Diante de um mar radioativo, seus pés
Tentaram as noites por debaixo dos lençóis
Sem qualquer movimento rápido.
Ela tenta se desfazer dos pequenos ventos
Do que a névoa não detém: aparições
Desfazer do que a vida não dá conta:
Essa infância interminável como lanças
De polvos destoando os objetos da casa:
A escrivaninha herdada, a boca esse vocábulo
De pântanos seu céu em estalos
Balbucia mas é silêncio,
Convence ao que rebrilha nas frestas
Do fundo do mar, da névoa
Da chuva ou do cigarro
Do corpo que se move no duplo
Sendo-o na senda insuspeita
Dos objetos que lavram
Palavra vida
À concessão das pedras
Das grutas feitas apenas
Ao derramamento.

Maria Carolina De Bonis


quarta-feira, 20 de agosto de 2014

A história dos instantes que fogem


O Amanhã amanheceu
de pernas abertas para o Sol;
o Sol fecundou nos seixos do Rio.
A menina pensou ser árvore
mas era só semente
dos giras-sóis.

Carolina Gonçalves


Em plena reunião


a boca tremeu formando um bico fora de hora,
ainda bem que ninguém percebeu
que engoli um bocejo.

Luis Sapir


terça-feira, 19 de agosto de 2014

Não tem altura o silêncio das pedras


Estamos no mar. Mais exatamente, no Canal da Manga, sim, da Manga. Braço de mar integrante da imensidão do Oceano Atlântico. Mas isso não importa. Estamos no mar da Normandia. Espremidos por terra no passado e no futuro, no limite da razão. Mas isso também não importa.
O que é o mar?
Segundo meu dicionário, a palavra mar deriva do latim mare: uma longa massa de água salgada que cobre grande parte da superfície terrestre.
Eu não gosto dessa definição.
Prefiro dizer que o mar é o mar. E que água é água e que sal é sal. Já em relação a superfície terrestre prefiro não fazer comentários.
Por que fala-se tanto de mar em músicas, poesias, prosas? Por que é no mar que vou me perder? Por que comparo minhas lágrimas ao mar. Por que afundo tudo no mar?
Eu não penso muito no mar.
Eu gosto de pedras, instead.
Eu gosto do peso da pedra. Eu gosto da quietude da pedra. Eu gosto de sua ignorância, de sua arrogância, de sua aspereza. Da sua falta de cheiro. Da sua falta de som, de discurso, de importância.
Eu gosto de pedras ao mar.
Pedras que abraçam penínsulas, pedras que fazem-se ilhas. Pedras em baixo e em cima de nós.
Pedras quietas em um mundo de transeuntes apressados, inquietos, sem peso, igualmente cheios de ignorância, arrogância e aspereza. No entanto com cheiro, som, discurso e importância, abraçando uma península.
Não tem altura o silêncio das pedras; nos diz Manoel de Barros.


Ana Elisa Lidizia


segunda-feira, 18 de agosto de 2014

"Acordei..."


Acordei toda encolhida, como se as partes do corpo quisessem virar uma coisa só. Apertei forte a barriga querendo abortar essa paixão. Em vão. Ainda era noite, procurei o copo d'água no criado mudo e não achei. Estava toda seca e toda molhada ao mesmo tempo. Com sedes. Tateando no escuro achei o celular. Respondi a mensagem dramática da noite anterior: Estou apaixonada, foda-se o teu medo. Quis apagar enquanto carregava, mas logo apareceu o sinal de enviado. Me senti uma grande burra, enfiei a cara no travesseiro, gritei, apertei e mordi. Como a gente pode querer tanto alguém que te faz perder a fome por um minuto? Eu lia e relia aquela merda de mensagem. Tinha raiva dele, e tinha raiva de mim. Ele não tem culpa de existir, e eu não tenho culpa de sentir, e vice-versa. Pensei em mandar outra dizendo que estava bêbada, e pedindo desculpa, pra em seguida ter certeza que jamais faria isso. Meus dedos roçavam nas teclas do Motorola antigo. Eu ficava escrevendo o pequeno nome dele na tela, pensando no que digitar. Lembrei de um dia, depois que a gente já tinha se conhecido, ficado e transado, numa rua aqui perto de casa. Estávamos dentro de uma loja de espelhos, nos víamos multiplicados em umas 40 imagens. Eu parei de escutar o som da furadeira que vinha da rua, enquanto fazia carinho no lado direito do seu rosto. Meu olho entrou no dele e se perdeu, e desde então parece que ficou por lá. Ele pegou no chão um pequeno pedaço de espelho quebrado e me deu. Escreveu atrás: o teu olhar. E eu voltei olhando os meus olhos em cada ponto que ônibus parava, e lembrava dos olhos dele. São calmos. Já não queria mais abortar e agora queria parir. Mandei a mensagem: só queria gritar mas não tinha ninguém em casa, Estou apaixonada,e não quero nada a mais que isso. E dormi novamente, aliviada como se tivesse gritado isso pela janela. Nas paredes da minha cabeça ecoavam as vozes de Gal e Bethânia. Livre para amar, livre para amar, livre para amar.

Carlos Meijueiro


domingo, 17 de agosto de 2014

Pra sempre


Flores do campo, tulipas turquesas
Cheiro de grama e terra molhada
Balanço branco de madeira
E ao fundo, nossa casinha
Simples, da terra, do esforço,
Mas tão nossa, tão íntima,
Viva, cercada de ervas e temperos
Naturais, da nossa horta
Da rede, o barulhinho do mar calmo,
Como uma canção de ninar
Pra descansar no teu peito à noitinha
Novos livros velhos, prateleiras,
E fotos da revolução, dos ídolos, dos poetas
A vitrola e todos os LPs de colecionadores loucos
Enquanto tu escreves à energia solar
Nosso cantinho de meditação, nosso altar de conchas
E estrelas-do-mar...
E pra plantar: as mãos sempre cheias de sementes e ideias
Eu chego, sorrateira, te abraço sorrindo
Tu me olhas, teus olhos de caleidoscópios brilham
E me beijas com a boca de café e chocolate
Te faço um cafuné, me aconchego no teu colo
Fico pequena em ti:
"Meu amor", sussurro, "está crescendo vida em mim..."
E tu me diz, profundamente emocionado,
Que hoje é sempre o pra sempre.

Lia Ferreira, parceira antiga do blog


sexta-feira, 15 de agosto de 2014

janelas


janelas são objetos que me atraem e acabo por fazer associações: janela e cinema, janela e fotografia, janela e televisão, janela e rua. eu gosto de entrar no ônibus e sentar na parte de trás pra ver todo o corredor, mas melhor ainda é a ultima janela do lado oposto ao motorista - é sala de cinema em movimento. centésimos de segundo, as pessoas ficam mais bonitas vistas de relance, sem reconhecer os fatos e organizar as formas. vejo as coisas passando e fico querendo passar com elas. chovia e o transito estava mais denso que o comum na cidade. eu estava sentada na ultima janela do lado oposto, como prefiro, mas a chuva não deixava a abrir. desenhei um quadrado com o embaçado e aquele era o filme passando na minha frente, em dupla exposição. na verdade eu já começava a me aborrecer com o transito quando você me baixou das nuvens – foi a melhor cena do filme que nunca vi. não sou supersticiosa e não acredito em amores a primeira vista, mas aquele quadro ploungée da janela respingada do ônibus era o teu melhor retrato. o ônibus parecia imóvel em meio a todos os outros carros. quis descer e ficar na sua altura. te ver dormir, sem te despertar. nessas horas queria ser touro e não câncer, pra não ter que me rasgar mais. essa aparição instantânea que existiu um só instante foi o suficiente para você nem olhar pra mim até que o sinal abrisse de novo, sem nem ainda, sem nem ao menos...

Mariana Lenzi


quinta-feira, 14 de agosto de 2014

VOCÊ


Você. Você, que me fez falar a palavra AMOR. todos os dias. TODOS. sem exceção. Que me deixou trocar SEU nome por AMOR, e de repente nenhum nome de batismo poderia ser mais forte que "AMOR!". Então nos rebatizamos, ambos, juntos, como um coração : AMOR! cantos e cânticos de "Amoooor". "Amor" lá, "amor" cá. Então o planeta terra virou nosso MOTEL, a terra é nosso chão, nós somos filhos da PAIxão, adoecemos sim, como não? Vacina e peste.nos curamos da paixão. a patologia nos  mata. Morremos, como os nossos pais. Morrem mortos viúvos.Eis que a imortalidade, anja alada, nos salva do abismo. viramos DEUSES. E então.......É AMOOOOOOORRRRRRR. Renascemos. E o bebê do amor nasce!!!!gargalhando no colchão! AAAah, O Amor é um casa bem quentinha. Fazemos comida e mesmo assim contratamos uma diarista chamada Paixão, ela ri, é evangélica, ouve rádio, conta piada e nossas roupas ela passa. mas só, e apenas só o nosso amor lava cozinha escreve canta briga compõe goza ouve fala toca brinca de ser bóbóca. vamos caminhar, não precisa me dar a mão, eu sei que você sabe voar. te amo. obrigratidão. A dor do amor é ver a pessoa que mora no seu coração virar uma estranha bem na sua frente. Daí você percebe que na verdade o AMOR é um espelho refletindo luz violeta. Aí, é melhor catar os cacos.

Niko Demos


terça-feira, 12 de agosto de 2014

Lançamento hoje!


Pessoal, hoje acontecerá o lançamento do livro - Ler, comparar, pensar. Reflexoes sobre literatura e cultura - da autora Daniela Versiani, com apresentaçao de Marília Rothier Cardoso. A partir das 19h de hoje na livraria da Travessa de Ipanema: fica a dica!


segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Plástico Bolha #35 já no site



Caiu na rede a última edição do jornal Plástico Bolha!
Poemas, contos, entrevistas, ilustrações, desafio poético, dicas de site... é coisa à beça!
E os autores da vez são:

Adiron Marcos
Alice Sant'anna
Anderson Pires da Silva
Angelo Abu
Antonio Mattoso
Beatriz Castanheira
Bete Peixoto
Carlos Frederico Manes
Clara de Góes
Cleonice Berardinelli
Domingos Guimaraens
Gregório Duvivier
Heinz Langer
Larissa Andriolli
Laura Assis
Leonardo Ferrari
Maíra F.
Maria de Andrade
Marilia Kubota
Marina Wisnik
Matheus José Mineiro
Mauro Ferreira
Nicolas Behr
Otávio Campos
Paulo Henriques Britto
Pedro Lago
Pedro Zylbersztajn
Raïssa DeGoes
Sofia Mariutti
Tomé Lavigne





"esse meu parapeito meu inferno"


esse meu parapeito meu inferno
astral que se destaca nas
sucintas imagens celestiais
que se cobre em convulsões
maternas que abdica dos
espíritos primevos que se
fere em deslocamentos
amorosos em paixões
abortadas pela intempérie
já ninguém quer dançar
comigo esse meu parapeito
meu inferno astral que aceita
argumentos solúveis que
silencia os comboios partidos
que não comunga em paredes
encobertas que distancia qualquer
forma de afeto esse meu
parapeito meu inferno
astral que na dúvida retrai
a maré que no medo repele
ladeiras que no ímpeto
oculta os anseios esse meu
parapeito meu inferno astral
que não cessa em preces
convexas que corta o cabelo
curto ainda me pergunta se
eu acredito nas estrelas

Gabriel Gorini


um poema de Mônica Meira



quarta-feira, 6 de agosto de 2014

um poema de Maria Leão da Rosa


Hace días que me duelen los pechos,
Que, pequeños, cabrían en sus manos
Si quisieras acariciarme.

El sueño que tuve
No hizo moverse el reloj

Mi pecho duele de luto.
Lo extraño.
Y también a ti.

Maria Leão da Rosa


Não escreva poemas de amor


Não escreva poemas de amor.
talvez,
o amor não mereça um
poema. Um verso de amor
pode acabar morto,
como um guardanapo
marcado de batom

no lixo,
entre os negativos velhos
os controles sem pilha,
eis onde pode acabar
o meu poema de amor

Não escreva, talvez
poemas de amor
vai que depois ela não é poema
e você já escreveu
ou ainda
vai que o poema é bom

mas

como calar a poesia
vendo-a dormir, as palpebras
tremulantes. A respiração leve
que em seu calmo ir e vir, lembra
uma cadeira de balanço. uma
canção de ninar.

como calar a vontade
se, com os olhos bem atentos,
a companhia vira paisagem
e o calmo ir e vir -
do corpo ao ar -
é como a brisa de um parque

todos os latidos
cacarejos, assobios,
a sola do sapato dos
corredores,
a bicicleta com uma rodinha!

cotovias, Flamboyants, até
a tangerina do pic-nic.
O alfabeto da poesia
inclui todos, menos o o amor

então eis o que é
talvez não seja certo
talvez
não seja arte. mas
é certo que escrevo
não porque a amo
escrevo porque
o meu amor é um parque

Picanha Aguillar


segunda-feira, 4 de agosto de 2014

vidinha qualquer

(ao Fred Baumgratz)

acordar
peitar o dia
cumprir tarefas irrelevantes
buscar por objetivos medíocres
aprisionar-se a aspirações egoístas

deparar-se com o meio do caminho
perceber a latência do presente
projetar-se ao que é porvir
desistir do dia
adormecer

Bianka de Andrade


(retirado do livro Desejada Dor
pela Editora Anome Livros, 2013)



Julgamento


São os olhos
Olhos vermelhos
Olhos irônicos
Olhos de todos

Te elevam
Observam a sua ascensão
Brilham para você
Piscam, observam, brilham, mentem.

Te atingem
Lançam flechas em suas costas
Te puxam, prendem, e derrubam
Flechas lançadas em tons de verde.

Te afundam
Brilham novamente
Mas não para você
Brilham à luz do fracasso.

São os dedos
Dedos podres
Dedos afiados
Dedos de todos

Te elevam
Apontam para cima
Te carregam
Afagam, apontam, carregam, iludem

Te atingem
Apontam para você
E disparam
O acusam, de baixo para cima.

Te afundam
Aqueles que o levantaram
O apontam para baixo,
E acompanham a sua queda.

São os dentes
Dentes sujos
Dentes famintos
Dentes de todos

Te elevam
Se mostram para você
Refletem o seu sucesso
Exaltam, se mostram, refletem, julgam

Te atingem
Fincam na tua carne
O verdadeiro sentimento
Que não reflete a quem os vê.

Te afundam
Se mostram para você
Irônicos e verborrágicos
Fortalecem o seu enfraquecer

Olhos de todos
Dedos de todos
Dentes de todos

Seus, apenas seus.

Monteiro de Castro


Igarapé


Navegara por muitas e muitas léguas
Na vã tentativa de se desvencilhar
Da ausência súbita de quem não há,
Coletando os musgos das pedras,
Perdera-se para em si se encontrar.

Navegara porque era preciso saber
Sobre o barro que compõe o homem,
Bem como as traças que lhe comem.
Era preciso olhar, ouvir e escrever:
Os corpos que fluem e que somem.

Navegara, pois, sem rumo, sem regra,
Bradando ao eco do mundo: “Não!”.
“Pode-se suportar a existência são?”
Iniciara-se nas lições das pedras,
A fim de reinventar a luz da Razão.

De lição em lição, alcançara o “Sim”.
Compreendera a integridade do Tempo:
Da dor do futuro do pretérito ao rebento.
Surpreendendo-se em cada rio sem fim;
À procura de mais e mais suplementos

Ao desaguar no caminho das canoas -
Igarapé -, percebera que se é movediço.
Lá, cercado por arbustos ressequidos,
Imprimira-lhe o rosto a água refletora,
Refazendo-se em outra margem de rio.

Gabriel Tardelli


sexta-feira, 1 de agosto de 2014

A Cabeleira de Berenice


Descoberto um novo planeta
a trezentos e vinte milhões de anos-luz
girando ao redor de Alfa Diadema
numa grande nebulosa solúvel de estrelas
Enxame de galáxias que explodem
e se expandem em redemoinhos de poeira
ao lado de Guarda-Chuva e de Olho Negro
Já foi cauda de leão, prometida a Afrodite,
a constelação da Cabeleira de Berenice

Jeovane Cazer


A cadeira


Estava em um parque, praça ou trilha; um pedaço da cidade que respondia por “arborizado”. Estava lá entre as árvores, os esquilos e as pessoas e seus tênis de corrida, a cadeira. Uma cadeira giratória de escritório, desamparada, como a poltrona patriarcal na casa da viúva. A criança em mim quis sentar nela e rodar; rodar e rodar, pela graça de ficar tonta: era o barato da época. Mas eu tranquei essa criança há muito tempo, apesar da gaiola aberta tatuada na nuca.

A cadeira tinha o estofado do encosto à mostra, talvez a fratura exposta que a inutilizou. Mas porque o traslado do cubículo para a sombra do salgueiro? Me senti como a cadeira. E não podendo sentar nela – por uma lei da Vida Adulta – sentei no banco de madeira, onde os homens e os pombos esperavam que eu sentasse. Os pombos eu alimentei com migalhas do meu lanche; os homens se alimentaram de mim esmigalhando certezas, as que já tive um dia. Como era bom ter certezas, mesmo as inúteis como saber quais monossílabos tônicos são acentuados. O cu não é acentuado, ainda assim, recebe o assento, mesmo que seja uma cadeira abandonada na praça.

Aquela cadeira acentuava-se entre as árvores. Era como um agudo desgarrado, que se perdeu de “escritorio". Começou a chover. As migalhas que jaziam no chão murcharam. A blusa colou em mim: o primeiro abraço que recebi hoje. Tive que me afastar da cadeira, não poderia levá-la comigo apesar das rodinhas sugerirem fácil transporte.

Foi ao me levantar que vi, num último vislumbre para a cadeira, uma criança sentada nela, enquanto outra a empurrava. A chuva também não as assustava. E o mais terrível: elas riam, e alto. Sem medo de incomodar, sem medo da gripe, do tétano na mola velha do assento, do tombo no chão de terra e pedrinhas. Para as duas crianças, apenas certezas.

Maira M. Moura