segunda-feira, 18 de agosto de 2014

"Acordei..."


Acordei toda encolhida, como se as partes do corpo quisessem virar uma coisa só. Apertei forte a barriga querendo abortar essa paixão. Em vão. Ainda era noite, procurei o copo d'água no criado mudo e não achei. Estava toda seca e toda molhada ao mesmo tempo. Com sedes. Tateando no escuro achei o celular. Respondi a mensagem dramática da noite anterior: Estou apaixonada, foda-se o teu medo. Quis apagar enquanto carregava, mas logo apareceu o sinal de enviado. Me senti uma grande burra, enfiei a cara no travesseiro, gritei, apertei e mordi. Como a gente pode querer tanto alguém que te faz perder a fome por um minuto? Eu lia e relia aquela merda de mensagem. Tinha raiva dele, e tinha raiva de mim. Ele não tem culpa de existir, e eu não tenho culpa de sentir, e vice-versa. Pensei em mandar outra dizendo que estava bêbada, e pedindo desculpa, pra em seguida ter certeza que jamais faria isso. Meus dedos roçavam nas teclas do Motorola antigo. Eu ficava escrevendo o pequeno nome dele na tela, pensando no que digitar. Lembrei de um dia, depois que a gente já tinha se conhecido, ficado e transado, numa rua aqui perto de casa. Estávamos dentro de uma loja de espelhos, nos víamos multiplicados em umas 40 imagens. Eu parei de escutar o som da furadeira que vinha da rua, enquanto fazia carinho no lado direito do seu rosto. Meu olho entrou no dele e se perdeu, e desde então parece que ficou por lá. Ele pegou no chão um pequeno pedaço de espelho quebrado e me deu. Escreveu atrás: o teu olhar. E eu voltei olhando os meus olhos em cada ponto que ônibus parava, e lembrava dos olhos dele. São calmos. Já não queria mais abortar e agora queria parir. Mandei a mensagem: só queria gritar mas não tinha ninguém em casa, Estou apaixonada,e não quero nada a mais que isso. E dormi novamente, aliviada como se tivesse gritado isso pela janela. Nas paredes da minha cabeça ecoavam as vozes de Gal e Bethânia. Livre para amar, livre para amar, livre para amar.

Carlos Meijueiro


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