domingo, 21 de abril de 2019

In Nomine Patris, texto de Gabriela Werdan


Ando por aí como se embriagado de febre, por mais fria que esteja a minha própria pele. É por dentro que queima, queima de vergonha e de dor, queima sabe-se lá porquê — sei apenas que queima; sinto arder a garganta, sem fumo que se encontre, nada senão brasas.

Tapa-me os olhos um véu posto por ninguém, ou talvez por mim mesmo; não sei se quero sequer erguê-lo, que confortável é a luz pálida que me chega à vista.

Humano sou, humano terei nascido, e no entanto sinto-me pesado como um elefante; vazio, contudo, no cerne do meu ser.
Diga-me, Padre, é isto que faz com que estes olhos não se queiram cerrar? E se porventura o fazem — por que, Senhor, relutam tanto em abrir-se outra vez?

Falo sem saber exatamente com quem, sem esperar resposta de ninguém; preso neste confessionário eterno, vagueio por entre o Limbo e o Inferno, que para mim não existem — mas por eles já passei.

Penso enquanto meu corpo se incendeia, penso e pergunto-me se de facto já não me acostumei às chamas, tanto quanto me acostumei a não ver o azul como azul de facto; reflito e ardo, ardo até não restar mais nada, carcaça ambulante que me torno!

E que tenho eu agora, quando já me incinerei até o tutano, quando as saídas de emergência se trancaram diante de mim?
Incompreensível massa de reflexões, mosaico monocromático que monto com os meus próprios sentimentos, quando sou capaz de achá-los; esta bagagem de mão radioativa que eu, inimigo somente de mim mesmo, não consigo mostrar a viv’alma.

É isto que carrego, Padre. O último resquício de um perdido; sem luar que guie a casa. E cego  — completamente cego já —, prostro-me diante do cárcere iminente, disposto a trocar a mala por respostas, saída mais miserável!

Mas não há Padre ou sete níveis do Inferno que sejam capazes de ditar o destino de uma criatura presa no próprio hiato.

E que respostas me poderão dar quando não sei sequer que perguntas fazer?

Cambaleando, cambaleando.

Passa-me a febre, e no entanto sinto a exaustão dos seus frutos. Levantar-se-ão eventualmente os joelhos, que caíram há tanto tempo como o infinito; não agora, não agora, que preciso ainda do descanso dos justos — sim, justo eu, que nunca fui justo para mim mesmo.

Ah!, se me pudesse voltar a visão, se acaso ma devolvessem — então, sim, Padre, estaria livre, e não carregaria este peso nas mãos. E haveria de desaparecer tudo isto!

Mas há tempo a esperar, e uma penitência a cumprir.

Nem demasiado perdido para ser condenado, nem venturoso o suficiente para ser salvo!, Vagueio por este confessionário no meio do nada, como todas as almas transgressoras que já existiram e todas as desgraçadas que ainda hão de existir. Sou todas e sou nenhuma, sou eu e sou ninguém; sou sozinho e queimo, sou frio e assoberbado; sou tudo, e sou humano, desesperadamente humano.

E, como humano que sou, absolvo-me dos meus próprios pecados. Que caiam aos meus pés como folhas — hão de cair!

Gabriela Werdan



Gabriela Werdan é estudante de Química e nossa colaboradora diretamente do Porto, em Portugal.

 

Um comentário:

Alexandre Werdan disse...

E minha filha! ;-)