Ando por aí como se embriagado de febre, por mais fria
que esteja a minha própria pele. É por dentro que queima, queima de vergonha e
de dor, queima sabe-se lá porquê — sei apenas que queima; sinto arder a
garganta, sem fumo que se encontre, nada senão brasas.
Tapa-me os olhos um véu posto por ninguém, ou talvez por
mim mesmo; não sei se quero sequer erguê-lo, que confortável é a luz pálida que
me chega à vista.
Humano sou, humano terei nascido, e no entanto sinto-me
pesado como um elefante; vazio, contudo, no cerne do meu ser.
Diga-me, Padre, é isto que faz com que estes olhos não se
queiram cerrar? E se porventura o fazem — por que, Senhor, relutam tanto em
abrir-se outra vez?
Falo sem saber exatamente com quem, sem esperar resposta
de ninguém; preso neste confessionário eterno, vagueio por entre o Limbo e o
Inferno, que para mim não existem — mas por eles já passei.
Penso enquanto meu corpo se incendeia, penso e
pergunto-me se de facto já não me acostumei às chamas, tanto quanto me
acostumei a não ver o azul como azul de facto; reflito e ardo, ardo até não
restar mais nada, carcaça ambulante que me torno!
E que tenho eu agora, quando já me incinerei até o
tutano, quando as saídas de emergência se trancaram diante de mim?
Incompreensível massa de reflexões, mosaico monocromático
que monto com os meus próprios sentimentos, quando sou capaz de achá-los; esta
bagagem de mão radioativa que eu, inimigo somente de mim mesmo, não consigo
mostrar a viv’alma.
É isto que carrego, Padre. O último resquício de um
perdido; sem luar que guie a casa. E cego
— completamente cego já —, prostro-me diante do cárcere iminente,
disposto a trocar a mala por respostas, saída mais miserável!
Mas não há Padre ou sete níveis do Inferno que sejam
capazes de ditar o destino de uma criatura presa no próprio hiato.
E que respostas me poderão dar quando não sei sequer que
perguntas fazer?
Cambaleando, cambaleando.
Passa-me a febre, e no entanto sinto a exaustão dos seus
frutos. Levantar-se-ão eventualmente os joelhos, que caíram há tanto tempo como
o infinito; não agora, não agora, que preciso ainda do descanso dos justos —
sim, justo eu, que nunca fui justo para mim mesmo.
Ah!, se me pudesse voltar a visão, se acaso ma
devolvessem — então, sim, Padre, estaria livre, e não carregaria este peso nas
mãos. E haveria de desaparecer tudo isto!
Mas há tempo a esperar, e uma penitência a cumprir.
Nem demasiado perdido para ser condenado, nem venturoso o
suficiente para ser salvo!, Vagueio por este confessionário no meio do nada,
como todas as almas transgressoras que já existiram e todas as desgraçadas que
ainda hão de existir. Sou todas e sou nenhuma, sou eu e sou ninguém; sou
sozinho e queimo, sou frio e assoberbado; sou tudo, e sou humano,
desesperadamente humano.
E, como humano que sou, absolvo-me dos meus próprios
pecados. Que caiam aos meus pés como folhas — hão de cair!
Gabriela Werdan
Gabriela Werdan é estudante de Química e nossa colaboradora diretamente do Porto, em Portugal.
Um comentário:
E minha filha! ;-)
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