(por Felipe Aguiar Chimicatti)
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As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.
Mas as coisa findas
muito mais que lindas
essas ficarão.
Carlos Drummond de Andrade
.tornam-se insensíveis
à palma da mão.
Mas as coisa findas
muito mais que lindas
essas ficarão.
Carlos Drummond de Andrade
É a seguinte epígrafe, de Carlos Drummond de Andrade, que dá carretel ao livro de contos Seminário dos Ratos: “Que século, meu Deus! — exclamaram os ratos / e começaram a roer o edifício” De certo é o conto homônimo que carrega maior distensão com relação aos demais: tem em seu foro político maior sátira, em conformidade à data da primeira publicação do livro, o ano de 1977 — ditadura militar, governo Geisel. O conto é um retrato jocoso da composição política do poder, uma investida alegórica a toda a bandalheira da coação que, nos final da década, deixava amostras de sua precariedade. Daí os ratos: São eles metáfora exemplar e, como descrito na narrativa, roubam o lugar dos aristocratas roendo tudo: os fios das baterias dos carros, dos telefones, a comida do banquete: “o cozinheiro-chefe ficou entusiasmado, nunca viu lagostas tão grandes”, mesmo assim os ratos as roem, deixando só o cômico desespero de todos numa fuga resignada. São deles, então, as rédeas do seminário.
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Quando José Castello insiste nas assertivas temáticas de Lygia — a loucura, o amor, a paixão, o medo e a morte —, “temas clássicos, que nos atormentam desde os gregos, e que a expõe [Lygia] ao grande risco da repetição do banal”, esse propõe o fio de sua variedade temática. Apesar do conto que ilustra o livro ter aspecto pouco diverso (justo pelo tom da sátira cênica — o conto se faz projeção teatral do poder condoído), todos os demais se declinam em torno da universalidade do sentimento humano. Sua poética é tão particular — dela, Lygia, abordando nós, seres humanos —, que não são raras as vezes que as inflexões dão a nós, leitores, a veemência de nos fazermos reconhecer nos escritos. Paira no universo de suas personagens — fugidias e escorregadias — um aspecto soturno, dado à condição do sonho, da memória, da digressão. Os pequenos gestos, dúbios e poéticos, os antagonismos, os medos — da vida, da morte —, os devaneios, as investidas inveteradas por felicidade, a insegurança: nada disso pretende compor um cenário fantástico, dado à realização do irrealizável: sabe ela bem que o caráter da fantasia passa antes pela condição da incompreensão, das projeções literárias que não tem comprometimento com o real na ordem do inafiançável. Nessa medida, seu livro embebe a barreira da vida com a literatura em experiências de fantástica verossimilhança. Suas histórias são de homens mundanos, transeuntes de um tempo particularmente nosso; contemporâneo, razão pela qual seu texto não perece.
O conto A Consulta é exemplo crasso de leituras e apreensões de mundo da autora. Em uma nítida relação com os escritos de Machado de Assis e Edgar Allan Poe, Lygia discuti sobre a loucura num tom declaradamente delicado: os contornos do surto. A narrativa em terceira pessoa faz confundir a loucura pela sua acepção taxativa. “Ninguém é doido. Ou, então, todos”, escreveu Guimarães Rosa no conto A Terceira Margem do Rio; Machado fez da Casa de Orates o espaço da dúvida — ou — os vasos comunicantes que questionam a instituição manicomial. Poe, no conto O sistema do Doutor Tarr e do Professor Fether, também incute enquanto dúbia a discussão, mesmo que ao seu modo, sombrio e genioso. Mas Lygia parece ainda querer se afastar deles. Os recursos de narração textual não se prendem a uma crítica repetida, feita antes pelo cânone. São eles correlações com o prosaico absurdo das coisas, partindo de uma humanização da loucura. Quanto mais contido no limiar da literatura e da possibilidade discursiva; mais propício, como ilustram os contos de o deste livro. As situações, de modo geral, partem dos incidentes quotidianos, tão caros as nossas perspectivas de vida e morte. A Consulta é um conto onde um internalizado que, fazendo-se passar pelo analista, acaba por analisar um homem que chega se queixando do incontido medo da morte que sente. A cena parece estar contida no universo da fantasia, mesmo tendo toda sua imposição verossímil.
Outro recurso diz respeito às vozes do texto, ora em primeira, ora em terceira pessoa, embora a autora faça maior predileção pela primeira pessoa. Daí um traço manifesto de sua escrita neste livro. Telles quer colocar o narrador participante, infundi-lo na prosa, aproximando-o do discurso, trazendo humanidade participativa ao relato. Na ótica de suas temáticas, faz-se favorável tal incursão; quer falar da universalidade dos sentimentos, quer dizer das aflições seculares dos homens, ainda que pelo prisma de seu tempo. Seu texto não é dureza feita de recordação eminente. Parece que em cada conto um espaço obtuso preenche o peito, roubando ar, e, para além da memória do nome das personagens, fica o sentimento inerente à leitura. É mais provável emprestar lembrança as “coisas findas” do que propriamente as “coisas tangíveis” nos textos de Lygia Fagundes Telles; razão pela qual seu livro é um livro que se contêm na existência: quer falar antes da memória: matéria prima do reconhecimento. Como anunciou Fernando Pessoa, “O poeta é um fingidor / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente”. Mas, para fingir a dor que deveras sente, é necessário conhecê-la... E Lygia parece conhecer profundamente o que finge sentir.
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Lygia Fagundes Telles nasceu em 1923, um ano após a Semana de Arte Moderna. Enquanto cursava educação física na Faculdade do Largo São Francisco, inicia em 1940 o curso pré-jurídico na mesma instituição. Faz-se, então, aluna de direito. Não é de admirar que já nesse tempo mantivesse contatos literários vários, incluindo Mario e Oswald de Andrade. Mas é com seu primeiro romance - Ciranda de Pedra, de 1954 - que a autora ganha definitiva projeção. É de Antônio Cândido a idéia de que, a partir dessa obra, Telles alcança a sua maturidade literária. Sua contribuição à literatura nacional é vasta, tendo sua obra traduzida também para dez idiomas, incluindo o tcheco, o alemão e o russo. A autora ainda compõe às cadeiras Academias Paulista e Brasileira de Letras, tendo em sua trajetória uma quantidade considerável de prêmios e condecorações.
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