segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Cecília Meireles: uma análise de poemas selecionados de Viagem, por Tatiana Cavalcanti


Nascida em 1901, Cecília Meireles foi uma das grandes vozes femininas— senão a maior—da poesia brasileira e nos deixou um extenso legado poético marcado pelo intimismo, pela musicalidade e sensibilidade. Segundo Novaes Coelho (2001), a poesia de Cecília exprime “não só a fusão das múltiplas e altas experiências formais e temáticas da poesia-século XX, mas principalmente o difícil avançar em meio à fragmentação dos valores e paradigmas, imposta pelo Modernismo” (p.14). Neste trabalho, proponho-me a analisar brevemente alguns poemas retirados do livro “Viagem” (1937), localizando-os na obra e no contexto histórico e literário da época.

Em suas primeiras experimentações poéticas, iniciadas poucos anos antes da Semana de Arte Moderna de 1922, Cecília se viu atraída pelo embate entre as duas correntes dominantes da época— o parnasianismo esteticista e o simbolismo espiritualista, mostrando-se especialmente interessada na tradição lírica simbolista portuguesa. Anos depois, no entanto, a autora rejeitaria essa sua poesia inicial, preferindo tratar os poemas de “Baladas para El-Rei” (1923) como o seu verdadeiro ponto de partida (NOVAES COELHO, 2001). Em 1937, após quatorze anos, Cecília enfim vem a publicar “Viagem”, livro que marcará a sua trajetória poética para sempre.

“Viagem” (1937), composta por 87 poemas líricos e 13 epigramas, foi a obra que ofertou a Cecília Meireles o primeiro prêmio de poesia da Academia Brasileira de Letras em 1938, colocando-a “na primeira linha dos poetas brasileiros, ao mesmo tempo que se distinguia como a única figura universalizante do movimento modernista” (DAMASCENO, 1967, p.19). Segundo o crítico Darcy Damasceno (Idem, p.20), enquanto os contemporâneos modernistas de Cecília se viam quase presos em seus “vícios expressivos”, no “anedótico” e no “nacionalismo, a poeta expandia os horizontes da conjuntura cultural da época, misturando tradição e inovação. Trazia indagações filosóficas relacionadas à vida e à morte, à religião e a outras temáticas de cunho universal, fazendo uso de um lirismo brilhante.

Neste estudo, tenho interesse em evidenciar o modo como a poesia ceciliana evoca imagens da natureza para construir suas percepções e sensações. Em Discurso, por exemplo, a autora diz que “Um poeta é sempre irmão do vento e da água”. Em sua obra, o contemplar é um constante exercício de apreensão das coisas do mundo, e ocorre de tal forma que não haja um afogamento cego nas emoções— há sempre um distanciamento daquela realidade e uma serenidade presente em seus versos. Em muitos casos, a poeta parece fazer uso da atividade poética como uma forma de se proteger contra os choques e insatisfações da vida.

Em Canção, assistimos ao naufrágio do sonho do eu lírico de que ele próprio não consegue se desvencilhar.

CANÇÃO 
 
Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
– depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio…

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.

Nos primeiros dois versos, seria possível termos a impressão de que se coloca o sonho no navio para que ele saia navegando, em um movimento que revelaria a esperança de que ele se realizasse em algum momento, assim como se coloca uma carta em uma garrafa no mar à deriva. No entanto, essa noção é rapidamente subvertida quando descobrimos que o eu lírico abre as águas com as mãos na intenção de levar o navio ao fundo do mar. Ele ainda sente os efeitos dessa ação nas mãos molhadas e na cor azul que escorre dos dedos, colorindo a areia.

Essa quebra de expectativa faz com que nos perguntemos o motivo de tal atitude, que parece uma espécie de autossabotagem— afinal, o eu lírico deixa seu sonho para morrer. Interessantemente, ele não parece mostrar nenhum tipo de remorso, e inclusive afirma que “chorará quanto for preciso, / para fazer com que o mar cresça”, e que o sonho, enfim, desapareça. Temos, ao que tudo indica, uma espécie de resignação em relação a se desfazer do sonho, talvez por ser inalcançável. É como se, ao fazê-lo, o eu lírico se livrasse das expectativas que criou para si mesmo, e tornasse ao início: “praia lisa, / ondas ordenadas”. Depois de tanto chorar— porque não é fácil o processo de se desfazer de algo que tanto se quis em algum momento—, vem a calmaria, e os olhos secam. As mãos, depois de árduo esforço, acabam quebradas, o que parece ser o único vestígio dessa tentativa de apagar as expectativas do passado.

Encontramos em Aceitação uma forma semelhante de conformação com o fato de não conseguir o que se deseja.

ACEITAÇÃO 
 
É mais fácil pousar o ouvido nas nuvens
e sentir passar as estrelas
do que prendê-lo à terra e alcançar o rumor dos teus passos.

É mais fácil, também, debruçar os olhos no oceano
e assistir, lá no fundo, ao nascimento mudo das formas,
que desejar que apareças, criando com teu simples gesto
o sinal de uma eterna esperança.

Não me interessam mais nem as estrelas, nem as formas do mar,
nem tu.

Desenrolei de dentro do tempo a minha canção:
não tenho inveja às cigarras: também vou morrer de cantar.

Nas duas primeiras estrofes de Aceitação, o eu lírico parece falar de um amor inatingível, uma vez que considera mais fácil realizar atos virtualmente impossíveis, como “pousar o ouvido nas nuvens” e então “sentir passar as estrelas” do que alcançar os passos da pessoa amada. Até mesmo “debruçar os olhos no oceano” e assistir ao que se passa no fundo do mar é mais simples do que desejar que essa pessoa apareça. A própria menção a uma esperança “eterna” revela a força que teria o gesto desse indivíduo se ele simplesmente surgisse na vida do eu lírico. O distanciamento criado entre o amor e o eu lírico desde o início, no entanto, já parece indicar que não haverá forma de alcançá-lo.

A estrofe seguinte, por sua vez, demonstra uma resignação— uma aceitação—  de que não há futuro em correr atrás desse amor impossível. Ao rejeitar os signos da natureza aos quais o eu lírico havia comparado a pessoa amada, mostra um desejo de tentar seguir em frente e esquecer tal desilusão. Para isso, o eu lírico se volta para aquilo que lhe dá os meios de expressar seus sentimentos e extravasar sua dor: uma canção própria. Nesse sentido, compreende-se a intenção da poeta de estabelecer uma comparação com a cigarra: assim como o inseto, que canta durante toda a sua vida, também é essa a vontade do eu lírico— não de morrer de cantar, mas de cantar até morrer. O poema termina, portanto, não em um tom penoso, mas determinado.

Assim, observamos a utilização de elementos naturais de forma altamente imagética nos dois poemas para que sejam provocadas reflexões na mente do leitor. Em Canção, a metáfora do mar que engole o sonho mostra a pretensão de suprimir um desejo que provavelmente causa dor, mas que poderá ter efeitos duradouros. Já em Aceitação, a evocação das nuvens, das estrelas, do mar e até mesmo da cigarra nos ajudam a refletir sobre temas como a mutabilidade das coisas, especificamente a desilusão amorosa e sua superação por meio da arte.

Tatiana Cavalcanti

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