O povo daqui é meio sério, meio “ar de preguiça”. Todos
muito gente boa. Dão direções e indicações. É só fazer uma pergunta que logo
uma conversa se forma. Mas o rosto costuma ser sério e a fala preguiçosa, por
isso quase não entendo e tenho que perguntar de novo. Mas minha impressão é de
que eu que pergunto com as palavras na ordem errada. E talvez o rosto sério
seja por tentarem entender minha pergunta. Há um esforço sincero e simpático
pelo entendimento, somos brasileiros.
A tal da preguiça na fala deve ter alguma coisa a ver com
dormirem em redes. Já estou contaminada.
(...)
Sai mosquito!
Que essa rede não te pertence
Ontem a chuva foi laranja aqui no Marajó
(...)
Hoje fomos para Araruna. Fomos de bicicleta até a balsa que
leva a Soure. Chegando em Barra Velha atravessamos na canoa nós e as
bicicletas. Só ouvíamos o vento e os pássaros ao longe. De um lado, o rio que
parece mar; do outro, mato. Ser empurrado pelo vento a favor na bicicleta é uma
delícia depois do esforço de ir contra ele. O reflexo das nuvens na areia
molhada é lindo, como pedalar no céu.
(...)
Subindo, o rio Amazonas vai ficando estreito, a mata mais
próxima. Há vários moradores de beira do rio em suas casas de palafitas. As
mães e suas crianças se aproximam do barco em canoas. As crianças gritam um
coro desconhecido, como animais esfomeados. Algumas pessoas do barco jogam
sacolas bem fechadas contendo roupas, comida e não sei o que mais. É uma visão
bonita, curiosa e corajosa, mas ao mesmo tempo tão forte. Tiro fotos e sinto o
peso da beleza na pobreza.
(...)
Terminei o livro de Bernie Krause com uma intensa tristeza
da devastação que com nosso “progresso” ilimitado provocamos à natureza. Chega
a ser irônico estar nesse barco, entrando na floresta Amazônica. Minha vontade
era contemplar a musica da natureza e lidar com meu silêncio interior. Mas aqui
todos berram música machucando os ouvidos de qualquer um. O som abafa e não
acredito que chegue à floresta; mas penso no impacto fora e principalmente
embaixo do rio com o barulho do próprio barco. Se para mim é tão barulhento,
imagina para os animais dentro e fora d’água. Esperava ver mais da natureza
beira-rio e não duvido nada que isso esteja relacionado. O choro fica preso e
me sinto culpada pois também estou dentro dos aviões que sobrevoam paisagens
naturais impedindo suas biofonias locais. O quanto nos prendemos a necessidades
inúteis... Criamos necessidades para criar utilidades em inutilidades.
E dentro do barco um gorila macho alfa sem camisa e
crucifixo de madeira no pescoço impõe seu tráfico de drogas. Cada gorila em
seus galhos faz mais balbúrdia que os outros. Fico quietinha no meu, tentando
fazer alguma diferença.
(...)
Fumamos um todos juntos, dez dias sem fumar nem beber fazem
diferença no corpo. O lugar, as palavras e a música me levam de volta ao chá. O
dia de hoje é uma preparação para a consagração de amanhã. Tudo faz sentido.
(...)
Sinto que o que escrevo é bem mais ralo do que o momento que
desejo retratar. Mas contanto que o escrito me leve de volta àquele sentimento
o ato já vale por si.
(...)
Sentada na cadeira de praia de marca “mor” pela segunda vez,
vendo o fim do dia na clareira. Aqui as cores vão mudando e escrevo com o
último resquício de luz do céu. Me sinto bem. Com vontade de ficar em silêncio,
embora tenha conversado o dia todo e, o mais difícil, em outra língua. Sanne é
ótima e nos aproximamos muito.
(...)
Demorei para querer fechar os olhos. E só a decisão de
querer a segunda dose já pareceu corajosa para mim. É preciso coragem para
querer entrar mais ainda dentro de si. Não sinto que resolvi muitas coisas, não
estou tão cansada, talvez não tenha trabalhado tanto. Mas me conectei com a
natureza, com os sons, com o ventre materno (como quero ser mãe!), com os
guardiões da floresta, com o amor pelas pessoas. As primeiras estrelas surgem
de novo.
(...)
Sanne está partindo. Os meninos estão na cháoca e ela fumou
um cigarro atrás do outro sempre dizendo que partiria no próximo. Ficamos tão
íntimas em tão pouco tempo. Falamos muito, mesmo sendo gostoso ficar calado pós
chá, a conversa fluiu. E os silêncios, quando vieram, não foram
constrangedores. Nunca vou saber exatamente a busca dela, mas de alguma forma
ela se curou. Aqui, ela lembrou das florestas perto da cidade dela na Holanda,
onde os ciganos ficavam. E como tinham muitos cachorros e apanhadores de sonhos
pelas árvores. A special place not so different from here.
(...)
Essa cobra dourada dançando é o Tapajós se pondo.
(...)
Luísa Pollo (parte I)
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