terça-feira, 7 de outubro de 2014

Trechos de um diário de viagens pelo norte do Brasil II


O povo daqui é meio sério, meio “ar de preguiça”. Todos muito gente boa. Dão direções e indicações. É só fazer uma pergunta que logo uma conversa se forma. Mas o rosto costuma ser sério e a fala preguiçosa, por isso quase não entendo e tenho que perguntar de novo. Mas minha impressão é de que eu que pergunto com as palavras na ordem errada. E talvez o rosto sério seja por tentarem entender minha pergunta. Há um esforço sincero e simpático pelo entendimento, somos brasileiros.
A tal da preguiça na fala deve ter alguma coisa a ver com dormirem em redes. Já estou contaminada.

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Sai mosquito!
Que essa rede não te pertence

Ontem a chuva foi laranja aqui no Marajó

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Hoje fomos para Araruna. Fomos de bicicleta até a balsa que leva a Soure. Chegando em Barra Velha atravessamos na canoa nós e as bicicletas. Só ouvíamos o vento e os pássaros ao longe. De um lado, o rio que parece mar; do outro, mato. Ser empurrado pelo vento a favor na bicicleta é uma delícia depois do esforço de ir contra ele. O reflexo das nuvens na areia molhada é lindo, como pedalar no céu.

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Subindo, o rio Amazonas vai ficando estreito, a mata mais próxima. Há vários moradores de beira do rio em suas casas de palafitas. As mães e suas crianças se aproximam do barco em canoas. As crianças gritam um coro desconhecido, como animais esfomeados. Algumas pessoas do barco jogam sacolas bem fechadas contendo roupas, comida e não sei o que mais. É uma visão bonita, curiosa e corajosa, mas ao mesmo tempo tão forte. Tiro fotos e sinto o peso da beleza na pobreza.

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Terminei o livro de Bernie Krause com uma intensa tristeza da devastação que com nosso “progresso” ilimitado provocamos à natureza. Chega a ser irônico estar nesse barco, entrando na floresta Amazônica. Minha vontade era contemplar a musica da natureza e lidar com meu silêncio interior. Mas aqui todos berram música machucando os ouvidos de qualquer um. O som abafa e não acredito que chegue à floresta; mas penso no impacto fora e principalmente embaixo do rio com o barulho do próprio barco. Se para mim é tão barulhento, imagina para os animais dentro e fora d’água. Esperava ver mais da natureza beira-rio e não duvido nada que isso esteja relacionado. O choro fica preso e me sinto culpada pois também estou dentro dos aviões que sobrevoam paisagens naturais impedindo suas biofonias locais. O quanto nos prendemos a necessidades inúteis... Criamos necessidades para criar utilidades em inutilidades.
E dentro do barco um gorila macho alfa sem camisa e crucifixo de madeira no pescoço impõe seu tráfico de drogas. Cada gorila em seus galhos faz mais balbúrdia que os outros. Fico quietinha no meu, tentando fazer alguma diferença.

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Fumamos um todos juntos, dez dias sem fumar nem beber fazem diferença no corpo. O lugar, as palavras e a música me levam de volta ao chá. O dia de hoje é uma preparação para a consagração de amanhã. Tudo faz sentido.

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Sinto que o que escrevo é bem mais ralo do que o momento que desejo retratar. Mas contanto que o escrito me leve de volta àquele sentimento o ato já vale por si.

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Sentada na cadeira de praia de marca “mor” pela segunda vez, vendo o fim do dia na clareira. Aqui as cores vão mudando e escrevo com o último resquício de luz do céu. Me sinto bem. Com vontade de ficar em silêncio, embora tenha conversado o dia todo e, o mais difícil, em outra língua. Sanne é ótima e nos aproximamos muito.

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Demorei para querer fechar os olhos. E só a decisão de querer a segunda dose já pareceu corajosa para mim. É preciso coragem para querer entrar mais ainda dentro de si. Não sinto que resolvi muitas coisas, não estou tão cansada, talvez não tenha trabalhado tanto. Mas me conectei com a natureza, com os sons, com o ventre materno (como quero ser mãe!), com os guardiões da floresta, com o amor pelas pessoas. As primeiras estrelas surgem de novo.

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Sanne está partindo. Os meninos estão na cháoca e ela fumou um cigarro atrás do outro sempre dizendo que partiria no próximo. Ficamos tão íntimas em tão pouco tempo. Falamos muito, mesmo sendo gostoso ficar calado pós chá, a conversa fluiu. E os silêncios, quando vieram, não foram constrangedores. Nunca vou saber exatamente a busca dela, mas de alguma forma ela se curou. Aqui, ela lembrou das florestas perto da cidade dela na Holanda, onde os ciganos ficavam. E como tinham muitos cachorros e apanhadores de sonhos pelas árvores. A special place not so different from here.

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Essa cobra dourada dançando é o Tapajós se pondo.

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Luísa Pollo (parte I)

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