quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Uivo Carioca

(Ode à Allen Ginsberg)

I

Eu vi as melhores mentes da minha geração destituídas de insanidade, uivando a nua histeria, carregando pelos arcos da Lapa o sonho de uma droga moral, um justo entorpecimento pra sujeira que cobre as ruas dos garis alaranjados pelos uniformes que se tornaram pele,

que moldaram anjos que limpam nossos becos levando consigo o que deixamos para trás, da imundice que é o que estripamos de nossas consciências, deixando os serafins laranjas levarem nossos pertences, o passado que consumimos, os objetos que não somos mais,

que criaram rodas de samba formando fogo para uma noite fria e inóspista, rodeada pelo males que são as cabeças das figuras que caçam no breu de uma coluna entre copos de cachaça,

que sustentaram flamengos para provar que o tempo é cíclico e a alma um retorno aos seios de nosso amor, flamengo eu vi como você cresceu, flamengo eu sei que você nos mata nessa entropia sádica de se dizer bairro da gênese, nos oferecendo em sacrifício para um ou dois deuses que morreram em suas ciclovias,

que andaram tanto para provar que nada é como os arcos da cidade velha, que tombamento é só uma desculpa para apreciar infiltrações e que vimos como afogou nosso ímpeto quando entregou as chaves das nossas portas para os vampiros que se vestem de terno,

que sabiam que escarlate são os olhos dos cavaleiros que vimos correr em 17 de junho, que negra é a síncope que agora cobre meus cabelos como chuva, dos seios que não ousei desmamar, da forma como enviamos cartas para Minas Gerais procurando algum poeta que soubesse nos dizer algo significante,

que comprou uma TV no dia da bastilha do Congresso brasileiro, que viu sombras dançando nos telhados e parapeitos se fazerem generais, sonhando com o dia em que o ladrilho das gentes ia ser encrustado no enorme mosaico amoral das repartições públicas,

que amou todos como que se fossem a última encarnação de uma alguma entidade persa, perdida entre o desencanto do universo que a renegou ao esquecimento das padarias de Santa Tereza,

que tergiversaram ao ver as tolas asas da hipnose do abutre, quebradas entre verbos drummonianos do sempreamar, pluriamar, e mil e uma besteiras que nos venderam na dogmática da poésis,

que se entregaram à carta de uma amante de dez anos atrás, e assim ficou lá preso ouvindo os debates e pensando em votar em branco, assinando documentos com as mãos trêmulas  sem perceber que nem sua assinatura o define mais,

que quis plantar hortas comunitárias e assim o fez de fronte a um canteiro de obras que agora sujam suas preciosas frutas e hortaliças com pó de cimento e assim petrificam suas mãos, seus olhos, suas unhas tortas de mago citadino,

II

Que te fez se entregar ao louco encanto desse sonho vil?

Mefisto! Sujo pertencimento ao limbo nacional! Sujo real e imoral!

Mefisto! O amor destituído da razão! Nobre encárcere das almas pensantes!

Mefisto! As crianças que aterrorizam a noite levando sonhos em bandejas do Habib’s!

Mefisto! O prazer de gritar no trânsito e buzinar, buzinar, buzinar! A contradição dos motores e das blitz arbitrárias que param todo movimento!

Mefisto! Carne e fantasma dos nossos falsos irmãos e do monarca urbano! Falsa moeda de troca para comprar televisões e ver o congresso ruir! Falsas máscaras negras que entoam cantos anárquicos da Rússia!

Mefisto! Onde nossas janelas encontram a negra faceta da falta de propósito! A fogueira que tanto nos oferece luz como queimaduras! A fogueira que não purifica, mas arde o sol de nossas vidas!

Mefisto! Todo capital investido em investimentos seguros de longo prazo! Todo dinheiro que pensa no amanhã, nas nuvens, no cósmos e na adoração pela clarividência!

III

Meu amor! Estou com você no Rio

onde você deve estar sentindo a fadiga

Estou com você no Rio

onde nada corre além do vento dos mares

Estou estou com você no Rio

onde os frangos ainda giram sem parar nas televisões

Estou com você no Rio

onde a pedra portuguesa me faz sentir imperfeito

Estou com você no Rio,

onde o ônibus me obriga a ser espectador

Estou com você no Rio

onde um dia olhamos pra nossas íris na simetria pirotécnica dos nossos crânios em chamas e nos
chamamos de humanos, seres e anjos

Estou com você no Rio

nos meus sonhos rimos e choramos e continuamos acreditando que as rachaduras no asfalto são mapas do mundo, donde saímos pros bares da vida sem sequer saber dançar

João Daniel de Carvalho




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