domingo, 5 de outubro de 2014

Cor e som


Acendo o cigarro e apago o sol.
Na rua mil passos e mil casos:
a mais nova universitária ri em meio a muitos colegas — não vê tanta graça, mas vê
muita necessidade;
o garçom se abana pra fugir do calor do inverno — odeia aqueles moleques, vê uma
cerveja aí;
o estagiário da grande empresa não ouve o que os amigos falam — pensa no
boné que usa para esconder a calvície precoce, bomba é trocar cabelo por
músculos;
os maconheiros se amontoam nas esquinas, sempre do lado oposto à mão dos
carros. Fumam e pensam mil coisas. Fumam e esquecem mil e uma coisas;
o indigente tenta conversar com os maconheiros — ele diz ter nome, mas para
não ser indigente não basta ter nome, é necessário pessoas que saibam seu
nome;
o dono discute com o que tentava fumar dentro do bar — vou tomar multa, vou
tomar multa;
o vendedor de amendoins tenta vender amendoins, e quem sabe algumas histórias
também;
o casal briga — ela sabe que não se importa, ele sabe que só se importa com ela;
a garota (tão bonita ela, gente!) se exibe. Ah, como gosto dos olhares!;
o cachorro tenta arranjar uns restos de alguma mesa — de qualquer uma, qualquer
resto, e se possível, de todas todos;
o DJ bota as músicas escolhidas a dedo, durante três madrugadas muito
trabalhosas (ninguém dá a mínima, entretanto);
a bêbada (ela sempre fica bêbada rápido e passa vergonha) vomita e chora ao
mesmo tempo. Até sabe porque vomita, mas o porquê do choro se alterna a
cada fração de segundo;
os policiais olham os maconheiros, e os maconheiros fogem do olhar dos policiais
— quem eles acham que enganam?;
o pai procura a filha — ela falou que ia ficar na casa da amiga, ela vai ver!;
a filha ri ri ri bebe bebe bebe e vê o pai. Corre. Some;
o irmão vai pela primeira vez a um bar — não para de sorrir. Nem gosta muito do
bar, mas ficou tão feliz por sua irmã ter chamado!;
a irmã pede para que os amigos maneirem nos papos enquanto seu irmão vai ao
banheiro — ai, por que chamei ele?;
eu olho, e vejo meu corpo misturar-se à noite.

Sou olhos e ouvidos, sem língua e sem mãos.
Engulo o mundo sem mastigar, e a cada vez sinto-o mais indigesto.

Damiens

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