quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

O estilo kitsch eu renegava

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Cordilheira, além de ser um dos romances brasileiros mais elogiados do último ano, dá a ver um escritor, Daniel Galera, na esteira do desenvolvimento de um estilo original de escrita, por assim dizer. O interesse de sua técnica busca alcançar novos lugares de expressividade para o universo ficcional, e no caso de Cordilheira, seu quarto livro, os procedimentos narrativo-ficcionais também flertam com aqueles de uma narrativa cinematográfica, como em seus outros trabalhos. A perspectiva do observador, narrando, constitui a verdade do relato. Relato esse que se torna um ato de caracterização das personagens, em primeiro lugar a do narrador, bem como da criação de mundos, por uma estética hiper-realista. Estética hiper-realista tangenciada pelo tratamento dos limites tênues entre realidade e ficção, ou ilusão, tanto pela temática, quanto pela técnica. O interesse parece ser colocar em questão os limites entre literatura e vida. As construções subjetivas e lingüísticas do mundo que operamos, na arte e na vida, confundem-se com a vida mesma, na suposta imediatez com que se nos apresentam. No entanto, todos esses detalhes técnicos vêm ao caso, só em um segundo momento, posto que são artifícios que tentam dar nexo, plausibilidade, ao sentimento das personagens. No entanto, quando nos deparamos o repertório de clichês que temáticas como essas levantam, vêm à nossa lembrança milhares de livros que trataram desse tema já esgarçado.

Mas o diferencial da trama, que se desenvolve a partir da jornada de uma escritora órfã, numa viagem a outro país na esperança de realização dos desejos mais íntimos, materializados na concepção de um filho. Contudo, o quer acontece é uma rede de acontecimentos que questionam o desejo de estetizar, ficcionalizar a vida, sob a batuta final de uma advertência. A literatura, assim como a vida não devem ser levadas tão a sério, o que não quer dizer que a narradora, ou o autor, em algum momento consigam dar cabo de tal empreitada. Tão melhor assim, pensei. Sem a pompa, sem a auto-importância. (p.164). Apesar do desejo de brincar mais com a vida, reside uma literatura que envolve profundamente o leitor, intencionalmente, identificando-os ou não com a experiência conturbada da errância emocional das personagens, lançando luz sobre as raízes do egoísmo de uma vida construída sob uma perspectiva somente, aquela do narrador. Diz a narradora: O estilo kitsch eu renegava, mas sua veracidade eu era obrigada a reconhecer (p.157).
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terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Poetisando Tragos, poema de Dênis Rubra

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Cama:
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eu, você,
o Marlboro light em box,
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as cinzas no cinzeiro
seguindo a harmonia do nosso suor.
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fumo a vida com você
até o ultimo trago.
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Dênis Rubra
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Dênis Rubra é nosso leitor da UERJ. Este poema está em seu primeiro livro, que será lançado em 2010 pela editora Multifoco. Quem quiser conhecer mais, pode visitar seu blog aqui.
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sábado, 19 de dezembro de 2009

O intangível dos contos de Telles

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As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisa findas
muito mais que lindas
essas ficarão.

Carlos Drummond de Andrade
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É a seguinte epígrafe, de Carlos Drummond de Andrade, que dá carretel ao livro de contos Seminário dos Ratos: “Que século, meu Deus! — exclamaram os ratos / e começaram a roer o edifício” De certo é o conto homônimo que carrega maior distensão com relação aos demais: tem em seu foro político maior sátira, em conformidade à data da primeira publicação do livro, o ano de 1977 — ditadura militar, governo Geisel. O conto é um retrato jocoso da composição política do poder, uma investida alegórica a toda a bandalheira da coação que, nos final da década, deixava amostras de sua precariedade. Daí os ratos: São eles metáfora exemplar e, como descrito na narrativa, roubam o lugar dos aristocratas roendo tudo: os fios das baterias dos carros, dos telefones, a comida do banquete: “o cozinheiro-chefe ficou entusiasmado, nunca viu lagostas tão grandes”, mesmo assim os ratos as roem, deixando só o cômico desespero de todos numa fuga resignada. São deles, então, as rédeas do seminário.
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Quando José Castello insiste nas assertivas temáticas de Lygia — a loucura, o amor, a paixão, o medo e a morte —, “temas clássicos, que nos atormentam desde os gregos, e que a expõe [Lygia] ao grande risco da repetição do banal”, esse propõe o fio de sua variedade temática. Apesar do conto que ilustra o livro ter aspecto pouco diverso (justo pelo tom da sátira cênica — o conto se faz projeção teatral do poder condoído), todos os demais se declinam em torno da universalidade do sentimento humano. Sua poética é tão particular — dela, Lygia, abordando nós, seres humanos —, que não são raras as vezes que as inflexões dão a nós, leitores, a veemência de nos fazermos reconhecer nos escritos. Paira no universo de suas personagens — fugidias e escorregadias — um aspecto soturno, dado à condição do sonho, da memória, da digressão. Os pequenos gestos, dúbios e poéticos, os antagonismos, os medos — da vida, da morte —, os devaneios, as investidas inveteradas por felicidade, a insegurança: nada disso pretende compor um cenário fantástico, dado à realização do irrealizável: sabe ela bem que o caráter da fantasia passa antes pela condição da incompreensão, das projeções literárias que não tem comprometimento com o real na ordem do inafiançável. Nessa medida, seu livro embebe a barreira da vida com a literatura em experiências de fantástica verossimilhança. Suas histórias são de homens mundanos, transeuntes de um tempo particularmente nosso; contemporâneo, razão pela qual seu texto não perece.

O conto A Consulta é exemplo crasso de leituras e apreensões de mundo da autora. Em uma nítida relação com os escritos de Machado de Assis e Edgar Allan Poe, Lygia discuti sobre a loucura num tom declaradamente delicado: os contornos do surto. A narrativa em terceira pessoa faz confundir a loucura pela sua acepção taxativa. “Ninguém é doido. Ou, então, todos”, escreveu Guimarães Rosa no conto A Terceira Margem do Rio; Machado fez da Casa de Orates o espaço da dúvida — ou — os vasos comunicantes que questionam a instituição manicomial. Poe, no conto O sistema do Doutor Tarr e do Professor Fether, também incute enquanto dúbia a discussão, mesmo que ao seu modo, sombrio e genioso. Mas Lygia parece ainda querer se afastar deles. Os recursos de narração textual não se prendem a uma crítica repetida, feita antes pelo cânone. São eles correlações com o prosaico absurdo das coisas, partindo de uma humanização da loucura. Quanto mais contido no limiar da literatura e da possibilidade discursiva; mais propício, como ilustram os contos de o deste livro. As situações, de modo geral, partem dos incidentes quotidianos, tão caros as nossas perspectivas de vida e morte. A Consulta é um conto onde um internalizado que, fazendo-se passar pelo analista, acaba por analisar um homem que chega se queixando do incontido medo da morte que sente. A cena parece estar contida no universo da fantasia, mesmo tendo toda sua imposição verossímil.

Outro recurso diz respeito às vozes do texto, ora em primeira, ora em terceira pessoa, embora a autora faça maior predileção pela primeira pessoa. Daí um traço manifesto de sua escrita neste livro. Telles quer colocar o narrador participante, infundi-lo na prosa, aproximando-o do discurso, trazendo humanidade participativa ao relato. Na ótica de suas temáticas, faz-se favorável tal incursão; quer falar da universalidade dos sentimentos, quer dizer das aflições seculares dos homens, ainda que pelo prisma de seu tempo. Seu texto não é dureza feita de recordação eminente. Parece que em cada conto um espaço obtuso preenche o peito, roubando ar, e, para além da memória do nome das personagens, fica o sentimento inerente à leitura. É mais provável emprestar lembrança as “coisas findas” do que propriamente as “coisas tangíveis” nos textos de Lygia Fagundes Telles; razão pela qual seu livro é um livro que se contêm na existência: quer falar antes da memória: matéria prima do reconhecimento. Como anunciou Fernando Pessoa, “O poeta é um fingidor / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente”. Mas, para fingir a dor que deveras sente, é necessário conhecê-la... E Lygia parece conhecer profundamente o que finge sentir.
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Lygia Fagundes Telles nasceu em 1923, um ano após a Semana de Arte Moderna. Enquanto cursava educação física na Faculdade do Largo São Francisco, inicia em 1940 o curso pré-jurídico na mesma instituição. Faz-se, então, aluna de direito. Não é de admirar que já nesse tempo mantivesse contatos literários vários, incluindo Mario e Oswald de Andrade. Mas é com seu primeiro romance - Ciranda de Pedra, de 1954 - que a autora ganha definitiva projeção. É de Antônio Cândido a idéia de que, a partir dessa obra, Telles alcança a sua maturidade literária. Sua contribuição à literatura nacional é vasta, tendo sua obra traduzida também para dez idiomas, incluindo o tcheco, o alemão e o russo. A autora ainda compõe às cadeiras Academias Paulista e Brasileira de Letras, tendo em sua trajetória uma quantidade considerável de prêmios e condecorações.
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quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

A mulher e a milenar entrega

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Era uma vez uma mulher que odiava apenas uma vez e que gostava de tudo ao mesmo tempo, mas não gostava de si. Sua cor favorita era a solidão, e se vestia dela todos os dias. Sua música preferida era o silêncio do ritmo do jazz. Contudo aconteceu o dia do “de repente”: se despiu pela primeira vez e a solidão tomou a cor da carne, do gozo. E se sentiu completa.
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Caminhava a ermo tentando procurar não sei o quê. Nua, não percebia o quanto era despercebida. Não se importava com isso e nem com o que não tinha. Queria apenas estar plena de si. Entrou em uma loja de roupas, escolheu a mais indefinida e cara vestimenta e se olhou no espelho: não adiantava, sua nudez ainda estava lá, intacta. Não se incomodou de não chamar a atenção da vendedora e nem se importou com o olhar aterrador dela ao ver a roupa sair esvoaçante para a rua. Mesmo assim, deixou o dinheiro lá, no balcão.
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Entrou em um bar repleto de homens. Já fazia algum tempo que não consumia um. Serpenteou-se serenamente por entre as cadeiras mexendo nos ombros de um, nos braços do outro, sorridente e cativante. A sua nudez molhava translucidamente as pernas. Olhava para todos, sedenta e triste, sentada no balcão. Esperava apenas um para tomar a coragem. Apenas um.
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Foi difícil chamar a atenção de todos aqueles pobres coitados, vidrados na tela da tevê, em um jogo miserável entre dois times da segunda divisão. Olhou para o garçom, para o balconista, tentando atrair a atenção de ambos para o início do ritual. Não conseguiu. Ociosa, levantou-se da cadeira para ir embora, quando sentiu uma pressão no braço esquerdo e dois olhos reluzentes a encará-la. Virou rapidamente a cabeça, mas já era tarde. Ele estava intimamente voluntarioso, tentando dominá-la pelas mãos, pelas pernas, pelo pescoço. Animado, sabia exatamente o que fazer, deslumbrado com tamanha sorte. Ela ainda tentava lutar para ver o seu rosto, que há tanto tempo procurava na multidão. Mas já era tarde. Sabia que tinha sido achada, até o momento em que se perderiam novamente. Não se importava, sempre foi assim, desde o início dos tempos, desde antes de Caim matar Abel. Pobre Abel.
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Ele ainda brincava com o seu corpo, liberado propositalmente, até chegar ao ventre. Era o sinal para a entrega. Ela, suavemente, envolveu os braços do homem com os seus, passando pela cintura, forte, até chegar lentamente às costelas. E sentiu, na esquerda, a ferida aberta e pulsante, como uma boca aberta a devorá-la. E pensou aliviada e feliz: “Ah, Adão... Porque demoraste tanto?...”
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Verônica Ferreira
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quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Duas Sílabas, poema de Fernando Andrade

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Uma vez que o afeto se instala
no pequeno beco dos fundos
ele cresce sem respiro
sem o ar dos semelhantes
e não espera algo mais
ou qualquer algo.

Apenas a voz da gentileza
é capaz de abrir todos os ramos do bem.
Somente uma pequena doçura
que por mais incrédula
seja única em uma geração
faz o mundo desabar em céus azuis
em luas cheias e em ondas claras,
além das palavras que o sujeito pensa
(surreais nas maneiras de hoje).

Não por mim mesmo,
mas pelo bem dos meus próximos ou distantes,
que todos sejam próximos.
É o que tua voz deseja.
E não é necessário mais do que duas sílabas,
tão simples.

Duas sílabas da tua voz
para que o mundo seja um só!
Que se perpetue tua ternura entre nós.
Mas disso eu sei: quero outras de você
para outros de mim...

Pois, pêndulo me é conveniente,
o ciclo do bombear dos meus passos
faz minha locomoção,
mas, estático é meu coração
sem vida nesse planeta
no espaço em algum lugar
sem o cantar do teu dizer sincero.

Sobre a natureza é tua doçura
e já não resta escrita para representá-la
ou de alguma forma descrevê-la.
É a invenção do sentido do corpo
e do envelhecer da eternidade.

Tão pouco te ouvi,
apenas duas sílabas da tua voz.
E sobre elas
tanto sei o que dizer.
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Fernando Andrade
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domingo, 13 de dezembro de 2009

Um filósofo um poeta — simpósio na PUC-Rio

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UM FILÓSOFO UM POETA
diálogos entre a literatura e a filosofia

PUC-Rio
16 a 18 de dezembro

PROGRAMAÇÃO
(haverá tradução)


Dia 16/12 - Sala 102k

16:00h - MÁRCIA DE SÁ CAVALCANTE SCHUBACK (Södertorn University)
À margem do estranho: Heidegger, Trakl

16:40h - GILVAN FOGEL (UFRJ)
“No abismo...”

17:50h – Coffee Break

18:00h - JASON WIRTH (Seattle University)
Milan Kundera, Hermann Broch, and the entitlements of thinking

Dia 17/12 - Sala 102k

16:00h - MARÍLIA ROTHIER (PUC-Rio)
Guimarães Rosa entre doutos professores e vaqueiros atilados

16:40h - SOFIA DE SOUSA SILVA (UNIFESP)
Breve programa para uma iniciação em Ruy Belo

17:50h – Coffee Break

18:00h - ELIZABETH SIKES (Seattle University)
On the evolutionary task of the poet

Dia 18/12 - Sala 481L

16:00h - ANTÔNIO QUEIRÓS (PUC-Rio)
Platão, leitor de Aristófanes

16:40h - JOSEPH LAWRENCE (College of the Holy Cross)
Plato's poetic redemption of Socrates' tragic disregard for poetry
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sábado, 12 de dezembro de 2009

BLOG DO BOLHA EM SEU 1º ANIVERSÁRIO!!!

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O Blog do Bolha completa o seu primeiro ano de atividades. Em 12 de dezembro de 2008 inauguramos este espaço com o objetivo de divulgar lançamentos literários, eventos culturais, análises de livros e, principalmente, apresentar aos leitores um pouco da produção literária das novas gerações que, por questão de espaço, não cabe apenas nas páginas do nosso jornal impresso.

Ao longo desse ano, foram 425 postagens, mais do que uma por dia, em que publicamos mais de 180 textos inéditos — entre prosa e poesia — e divulgamos mais de 100 eventos e lançamentos. Com isso, o Blog do Bolha caminha lado a lado com o Jornal Plástico Bolha impresso e o Site Plástico Bolha, em uma rede de literatura independente aberta para quem quiser divulgar seus trabalhos e idéias de forma alternativa e gratuita.

Agradecemos à nossa equipe, aos nossos 87 seguidores e aos milhares de leitores que vieram para estourar as bolhas literárias ao longo desse primeiro ano. Que continuemos juntos em 2010! Ploct!
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Plástico Bolha no jornal O Globo de hoje...

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Amigos leitores, essa é para contar que o Plástico Bolha está n’O Globo de hoje, na página 9 do caderno Ela, em matéria sobre a Cleonice Berardineli. A matéria da jornalista Melina Dalboni cita nossa campanha pela eleição de Dona Cleo para a cadeira número oito da Academia Brasileira de Letras, que pode ser lida aqui. Confiram lá que ficou legal!
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Novos lançamentos da coleção "ás de colete"

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sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Segundo número da revista Modo de Usar

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Lançamento do segundo número da revista Modo de Usar, com nossos amigos de bolha Alice Sant´Anna, Gregório Duvivier, Ismar Tirelli Neto , Luiz Coelho, Marília Garcia , Ricardo Domeneck, entre outros! Amanhã, na livraria Berinjela, a partir das 10h.
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quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Câncer — poema de Flávio Cavaca

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Trópico situado ao norte do Equador,
neoplasia maligna,
— caranguejo,
octogésima oitava constelação
em que se divide o vasto céu noturno.
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Flávio Cavaca
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Lançamento da revista ficções 18, no Rio

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terça-feira, 8 de dezembro de 2009

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

domingo, 6 de dezembro de 2009

Presságios a e pós Auschwitz

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A chuva caia forte naquele dia, uma pequena nevoa cobria as pastagens, que deixava um ar de frio e sem vida planar na atmosfera dos sentidos. Enquanto dezenas de vagões, de interior escuro e de pessoas, percorriam os trilhos violentos de uma causa estúpida e de pessoas idem, tendo em suas laterais pequenas esperanças, que nos iludiam, fazendo-nos acreditar, acreditar que tudo era um sonho surreal, e que na alvorada estaríamos em nossas camas despertando para nossas vidas. Mas não era nada além do real, era o próprio real.

A paisagem passava rápido, não conseguia escutar coisa alguma, tendo meu tímpano alojado no ermo de mim mesmo e o vazio em meus olhos imprecava aos horizontes, no momento que estático meu ser se punha. Mesmo assim, lutava com minhas forças a arranca-me de meu corpo, pois meus presságios eram aterrorizantes demais para agüentar.
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Posto que num dado momento, certa imagem a dilacerar meu ser paralisado, uma doce criança camponesa a me fitar, aquele acontecimento que durara um estalar de tempo no tempo real, em meu tempo parecia uma eternidade, cabecinha cabisbaixa e olhos tristes para mim, em que lágrimas brotavam-lhe olhos afora, e ao chão secavam-se como se em fogo caíssem para evolar-se. Um fato que parecia querer me ensaiar para algo, mas que a mensagem ao receptor chegava ainda crua.

A temerária locomotiva enfraquecia sua força perante a boca de tijolos e cimento, que à sua frente ia se agigantando com objetivo de nos pré - engolir a vida ao adentrarmos em seu complexo de atrocidades, erigido em um campo belo e maquiado por um sistema, florescendo de suas entranhas, pétalas do ser desumano na rosa do humano.

O gelar em meu corpo, de meu rosto ao encontro com pétalas do ser desumano, eis que, em meus olhos desesperançosos, a anunciação de meu fim finalmente. Aberta as portas dos vagões, descíamos milhares, todos com sentimentos interligados. E íamos sem saber para onde. E neste intervalo do ir e do chegar, passávamos por diante uma chaminé de tamanho estrondoso, e que infindamente, exalava fumaça por sua grande boca, que expelia pessoas.

Enfim, chegamos à frente de uma porta, eis que a atravessando, adentrávamos no cômodo poderoso, que por seus braços abraçava milhares de uma só vez, para com sua boca, nos dar o último beijo.

Cuspiam-nos pelas chaminés para dissiparmos no espaço. Efeito de uma cegueira moral, que decapitava vida em nome de uma ação estúpida, que não tinha sentido e nem porquê, mas mesmo assim eram cultivados por pétalas do ser desumano.

Hoje, cerca de 65 anos após nos cuspirem a vida, mas que ainda, partículas de fumaças de nosso ser insistem em ser, as chaminés do preconceito continuam queimando no bicho homem, continuam exalando fumaças, continuam expelindo pessoas, tendo sua forma tão quanto maquiada como antigamente, e agora, não há uma chaminé só a queimar.
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Fabiano Mafia Baião
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sábado, 5 de dezembro de 2009

Poesia cinematográfica — de Yuri Amorim

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Reenveiou-lhe o sangue derramado, restituindo a vida ao corpo.
A bala devolve-se ao cano do revólver, estremecendo invisíveis paredes de oxigênio.

Olhos dessobressaltando-se em close.
Dedos trêmulos desfazendo a pressão no punhal sofisticado.
Derradeiras palavras temíveis sendo engolidas.
Uma gota desiludida sambando bochecha mal barbeada, brincando de contrariar a gravidade, escapa à retina.
Passos contrários afastam dois seres fadados.
O susto da porta derrubada e a derrubada porta ao chão resignam-se e voltam às suas devidas marcas.
Um olhar perde-se na janela.
Anuvia, empalidece e apaga.

A fita foi rebobinada.
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Yuri Amorim
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quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Instante — um poema de Carlos AA. de Sá

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Manhã de inverno.

Na praia deserta
eu caminhava
devagar
opresso
esmagado
pelo horizonte.

Entre a areia clara
e o mar barrento
— faixas estendidas
infinitamente —
eu
solitário
e ambulante ponto.

Será que ao menos nesse instante
Deus me viu?
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Carlos AA. de Sá
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Carlos AA. de Sá é jornalista e estreou na literatura em 1972 com o livro de poemas Canto Tentado. Já teve diversos trabalhos publicados na imprensa campista, mineira e no jornal carioca Tribuna de Imprensa. Também já saiu em publicações estrangeiras, como a revista espanhola Batarro. No jornal Plástico Bolha, ele fechou com chave de ouro a edição #25, com seus Cartões-Postais, e agora está na edição #27 com o Poema do Cajueiro. Além disso, Carlos também é o aliado cultural do Bolha em São João da Barra, RJ, onde distribui os exemplares do jornal na Casa de Cultura Zenriques.
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quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Outro verão — um texto de Tânia Tiburzio

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Toda vez que passo em frente aquela banca de jornais lembro que foi lá que você esqueceu dois maços de cigarros antes de irmos para a praia. Lembro também que calor úmido de janeiro não nos repelia, ao contrário nos atraia, porque nossos corpos grudados dissipavam o calor que nos consumia não por fora, mas por dentro. O mar azul, palavras que eu sussurrava em seus ouvidos perfeitamente compreendidas, apesar de não serem ouvidas. O sol agarrado aos telhados das casas, a música soando alta e continuadamente pela sala, por toda a rua, por todo o verão. Suaves delírios, o gosto do sal pelo corpo, a cama desfeita, a algazarra das refeições, o ventilador girando, girando e minha cabeça, meus sonhos girando com ele. A chuva fria no meio da noite e outros cigarros mentolados sendo acessos no lugar daqueles esquecidos em cima do balcão de uma banca de jornais na esquina da Paulista.
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Tânia Tiburzio
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terça-feira, 1 de dezembro de 2009

A sinceridade retórica de J. M. Coetzee

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Coetzee, J. M. Desonra. São Paulo. Companhia da Letras, 2000.
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Não é de admirar que sejam tão veementes contra
o estupro, ela e Helen. Estupro, deus do caos e da
mistura, violador da reclusão. Estuprar uma lésbica
é pior que estuprar uma virgem: o golpe é maior.

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Um romance desconcertante. John Maxwell Cotzee — sul africano de dupla formação, lingüística e matemática — começou a escrever há algum tempo, tendo seu primeiro livro publicado em 1969: Dusklands. Em 2003 recebeu o prêmio Nobel de literatura. A partir da leitura de Desonra é possível perceber a importância de seus escritos, de raro valor contemporâneo: viés sólido, de pungente crítica sócio-política enfiada na alegoria da personificação, cara demais à literatura. David Lurie é um professor acadêmico da Escola Técnica da cidade do Cabo (Cape Town), na África do Sul. É adorador do literato William Wordsworth e estudioso de Byron. Oscila seu tempo entre estudos sistemáticos de literatura inglesa e o magistério. Sente-se, entretanto, recorrentemente pungido ao sexo, e não hesita em fazê-lo, mesmo que acarrete em depressões morais: “Fui um servo de Eros: é isso que ele quer dizer, mas será que tem coragem? Era um deus que agia em mim”. Justifica-se nas razões da carne, razão dum cinismo mantenedor e vigorosamente coerente. Em ação motivada pelo acaso acaba se envolvendo com uma aluna, experimentando pelo sexo a interferência do seu ofício: chega ao ponto de, através das avaliações, construir a relação sexual de posse e domínio — relações erógenas que partem dos números (a nota dos testes). Ao referir-se a Melanie, sua aluna e amante, no dia em que perdeu uma aula e um teste, posiciona-se: Ao preencher a ficha de depois, ele marca uma presença para ela e dá-lhe nota sete. Ao pé da página, a lápis, anota para si mesmo: ‘provisório’. Sete: nota dos indecisos, nem boa, nem má”.

Explode a imprecisão acadêmica. Ele é acusado pela Universidade por intermédio de uma queixa da própria aluna. Pais, amigos e um suposto affair da garota atribulam-lhe a vida. Passa por um processo interno da instituição de ensino, assumindo os erros por completo, recusando, inclusive, ler o processo e as acusações. Sente-se velho demais para mudar ou se retratar. Consiste em sua existência um depreciado pedantismo acadêmico, da vernácula verdade de crer nos livros acima de tudo, nos recursos poéticos com lições prontas da vida. Tem cinqüenta anos e bastante restrição à sociedade, quer o mínimo de hipocrisias em seus modos, mesmo que eles o coloquem assim em posições desconfortáveis e aviltantes. Não que não se faça hipócrita — por vezes é —, no entanto, impõe seus próprios limites às explicações que residem dento da moral e dos bons costumes.

Muda-se para a África interiorana, África pós-apartheid, África das disputas pela terra, dos embates raciais. Sua filha — lésbica e quase camponesa — recebe-o cordialmente, mesmo sabendo do caso de assédio que revira as manchetes dos jornais. Em conversas esporádicas, faz-se tentar compreender ao menos à filha: seus diálogos têm algo da sinceridade paternal. A casa de Lucy — sua filha — é assaltada por três negros. David fica preso no banheiro enquanto os três estupram a filha. O trauma, desde então, passa a ser o incidente da convivência. Lucy se recusa a sair de sua terra; seria acovarda-se frente a uma questão social, recolocar em prática o apartheid, fugir, por medo da morte. O pai tenta-lhe convencer das facilidades da mudança, da importância de exorcizar seus fantasmas: nada adianta.

As relações se engalfinham em terras longínquas, onde o poder público toca, quando muito, só com os olhos. Petrus, seu vizinho e caseiro, faz confortável a situação; a terra que lhe foi cedida aos poucos se expande e divide cerca com a propriedade de Lucy, cerca que sequer existia. Suas ambições começam a fenecer; o conflito histórico se mostra maior que as pretensões de uma geração inteira. A terra e o embate de raça; tônus recíproco das relações sociais.

Coetzee, em uma narrativa retrátil e novelesca, faz um texto visceral. A atenção à história dá-se nas proezas estilísticas do texto entrecortado e sarcástico; realista e questionador. “Soraya é alta e magra, de cabelo preto comprido e olhos escuros, brilhantes. Tecnicamente, ele tem idade para ser pai; só que, tecnicamente, dá para ser pai aos doze”. São postas, então — neste linguajar —, as condições da disputa, e não as resoluções: este romance não quer achá-las, elas não existem nas enfermidades opressivas; não há simplesmente como desfazer de um dia para o outro o ódio que ronda gerações. Brancos versus negros; moralidade versus imoralidade; segurança versus insegurança; literatura versus vida real: todas as ambivalências deste livro são feitas não enquanto elegíacas, somente. São construções que não querem se colocar em posições hierárquicas, em pólos distintos: trata-se de ordens filosóficas imbricadas na imprecisão gerativa da condição humana, no conflito cotidiano insurrecto pela posse. Não há solução para o trivial das tragédias cotidianas.

Na Grécia, nos tempos da República, a tragédia exercia peremptória razão social. A partir da sublime desgraça, do fardo dos deuses e semi-deuses, os homens aprendiam. Faziam dos seus atos espelhos atrozes dos ensinamentos das artes, de modo geral. A desonra de um estupro figura nas estatísticas da África do Sul. O joguete moral do ato consiste numa dominação fálica, sexual. Os homens negros ao estuprarem Lucy dão provas de uma das opressões sul-africana; querem além do roubo um outro apetrecho, sádico e pernicioso. Imprimem-se na tragédia dos jornais, na fúria das gerações, querem para além da posse física, a posse existencial: apoderam-se da vida da mulher com imagens que lhe vão correr o imaginário por toda a vida, como uma cicatriz. A colonização africana foi bem mais que um povoamento mal medido, foi um estorvo. A tragédia grega, nesse romance, é o nódulo que indica o tumor, entretanto, sua aparência é meramente alegórica, serve para compor o cenário e condenar a arritmia das questões sociais. O ensinamento só pode valer partindo de um surto reacionário.
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Por fim, toda a narrativa termina como começou — num gesto prosaico, sem mesura. A vida das personagens recai sobre suas rotinas e frustrações: a condição humana é se degradar ante a morte, pouco a pouco, como um estupro faz com a lembrança, ligada, quer queiramos, quer não, aos conflitos humanos que espoliam a sensação letárgica de ser feliz num mundo de contradições. Coetzee nos choca por sua sinceridade, nada mais.
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segunda-feira, 30 de novembro de 2009

domingo, 29 de novembro de 2009

sábado, 28 de novembro de 2009

Labirinto — 1º lugar de Poesia

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I

Labirinto sem saída,
Te amo de um jeito simples:
Como um narcisista
Que se olha no espelho.

II

Teu rosto eterno retorna
Emaranhado de fios, novelo
De nove voltas sem saída
Que desfaço
Sete vidas fito um gato
Luminescente no sorriso
Vazio cruel e cariado
De uns dentes doces
Meu sexo

Teu rosto eterno retorna
Escorrendo por buracos, nos baixios
Se me penetra te devoro
Nove vezes sete mortes
Versus nove sem saída
Lascívia de heras na esteira
Mastigo as tripas e os espinhos
Nos teus cachos de parreira
Meu filho

Teu rosto eterno retorna
Retorcido nos escombros
Em movimento no youtube
Estático no jornal.
Na insônia redivivo
Teus nomes de desejo
O Google me devolve (obsessivo)
Silêncio perseguido
Meu surto

Teu rosto eterno retorna
Fulgurante como as trevas
Que escapa pelos olhos
Que engulo com os lábios
Farpas, pregos, língua, sapos
Coagulados na garganta (o nome)
Violento salto sem terra
Meu nunca

Teu rosto eterno retorna
Carregado de pústulas
Corroído por vermes
Descascado na tortura
Da imagem cultivada
Cicatriz no tempo
lâmina, o corpo num rosto
Forjado em incerteza
Meu deserto.
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Ana Beatriz Ferreira Batista
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Ana Beatriz Ferreira Batista foi a grande vencedora da categoria poesia com este Labirinto. O 1º Prêmio Paulo Britto é uma realização do PET do Departamento de Letras da PUC-Rio, com o apoio do Jornal Plástico Bolha. Parabéns aos vencedores!
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sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Escreviver — 2º lugar de Poesia

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Se alguém pudesse ver tudo que eu penso provavelmente não acreditaria. É um parque de diversões sem bilhete pra entrar, e assim fica lotado. Eu sou mais fraco que eu. Minha fragilidade se abre para um mundo que pouco conheço; escrevo para conhecê-lo melhor. Ao fim de cada frase agradeço como no fim de uma oração.
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Na minha fragilidade o mundo entra em mim e é uma avalanche. Morrer seria desperdício. Sou a bola de neve que cresce quase que ao infinito e fica mais forte. Despenco pelas ladeiras. Viver me acumula tanto.
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Queria dizer que escrever é como tirar leite de vaca. É a alma nua ajoelhada diante daquele animal sagrado e o cumprimento do ritual: espremer, puxar. Limito-me a um balde a cada dois dias.
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Há certos dias que parecem uma anunciação. É assim: você levanta da cama e lembra de novo dos raios de sol. Escrever é colher esses raios de sol em dias de anunciação: inventa-se mundos. Aprecio as tatuagens, embora com uma certa distância. Mas é que queria ir escrevendo minha história em meu próprio corpo. Palavras escritas na carne. Palavra-corpo. O horizonte amarelo que esmaece vermelho no fim de tarde.
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As palavras formam jogos complicados em minha mente. Barulho de cartas espalhadas. Minha recusa em agir é um tanto consciente e irreal. É o portão que se fecha segundos antes do carro chegar e a frustração. O vaivém do balanço naquele fim de tarde.
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Tudo o que escrevo são jatos de tinta na parede e não há ninguém com um pincel para alisá-los. São meus esforços incompletos que se estiram pelo chão gritando. Sinfonia. A lâmpada e dentro dela um inseto morto há algum tempo (já o havia visto antes). Estala e incandesce: viver e suas surpresas dentro.
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Não saber sobre o que escrever já se tornou constância. A parede lisa e os borrões de tinta. Total que – não achei expressão semelhante em português a esta em espanhol que parece trazer tudo a um clímax e encerrar um resumo – total que já não sei. Sinfonia, não – rapsódia.
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Por isso escrevo mundos e escrevo vida e vivo. Vivo porque escrevo – o absurdo. O clique do gatilho prestes a explodir e o clique das teclas uma após a outra em ritmo descompassado. I’ve never loved nobody fully, always one foot on the ground. Custa escrever a palavra amor. A-mor. É que lembra morte. Amar é morrer-escrever, talvez. O teclado encharcado de lágrimas.
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Se escrever é só metaforizar então melhor parar (bem como parar de rimar ar com ar). Amor, a morte, a continuação. Escrever é também citar, às vezes. Já duas em apenas dois parágrafos. E o coração cheio de pulsação por vida mas a incapacidade. São mil citações de fora, palavras gestos continuações. Continuar vivo parece prescindir o esquecimento das citações. Mas quem sou eu, esse conjunto de citações e um pouco de originalidade? Senão. Escrevo parecido com alguns escritores que admiro. Nada se crea, todo se transforma (mais uma). Eu me transformando em mim.
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Melhor escrever para crianças. A criança em mim. Infância e rancor. Palavras que ficaram contidas. Explosão. A pétala da flor que não conseguiu se abrir e murchou. A lagarta que nunca saiu do casulo e as asas que não ruflaram de par em par.
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A pior das dores é aquela que não é sua. É entrar dentro de um filme e sentir-se personagem. Não quero escrever por identificação. Ser autobiográfico ou não, dane-se, não importa, importa enxergar. Venha ver o pôr-do-sol. Palavras-espelho. Palavras e paisagens e pores-de-sol. Escrevo porque me faltam as palavras e de repente aparecem.
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E o fim do texto. Imaginei que seria um happy end. Escrevo rápido e releio às vezes. Escreviver. Melhor deixar assim em aberto: a possibilidade: pisar no pedal e fixar a nota do piano: a flor que renasce: o reino que está por vir e a esperança: o dia que se chama hoje: meu caminho em direção ao mar
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Miguel Del Castillo, que foi o grande vencedor na categoria Prosa, também conquistou o segundo lugar de Poesia com este Escreviver. Parabéns Miguel!
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Remix musical número 1 — 3º lugar de Poesia

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Leros e leros. Que só me dão tédio.
Hoje está passando um filme de terror. O horror, o horror.
Que mulher danada essa que eu arranjei. Só me enche a paciência. Ontem, quando eu cheguei em casa, às sete horas...ela não estava.
Pobre meu pai. Mas está ficando rico.
Por trás dos edifícios. Há mais edifícios. E é difícil.
Eu tenho os dias contados, isso é certo, e não pela morte inevitável de todos nós, mas pela minha morte mesmo, mais inevitável ainda.
Fugi pela porta do apartamento. Estava muito sufocado.
Viajei de trem. Não de metrô.
O ar poluído polui ao lado. Tudo me parece poluído hoje em dia.
Viajei de trem, eu viajei de trem. Não de carro.
Um aeroplano pousou em Marte. Quero ir para Marte.
Viajei de trem. E não de aeroplano.
Queria estar perto do que não devo. E, às vezes, estou mesmo.
Seus olhos grandes sobre mim. Coisa linda.
Suje os pés na lama. Os meus já estão imundos.
Os automóveis estão invadindo. Haja engarrafamento. Entre as flores escondidas. Acho que o tempo é mesmo de esconder as flores. O auditório aplaudiu a canção. Não era minha, claro. Que eu estou no paradeiro... no paradeiro de quê?
Não é vivendo que se aprende, Odete. Mas a gente vai vivendo. E não aprendendo.
Há quem diga que eu dormi de touca. Desperdicei, mesmo, aquele que seria o período mais bonito de minha vida. Há quem diga que eu não sei de nada. Deve mesmo ser verdade, já que desperdicei parte de minha juventude. Eu, por mim, queria isso e aquilo.
Mas não consegui muita coisa. Eu quero é botar meu bloco na rua. Mas ele está mesmo no meu quarto.
Meu nome é Raulzito Seixas. Mas nem gosto das minhas músicas.
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Rodrigo Cazes Costa
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quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Carta para Ana — 1º lugar de prosa

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I.
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Tão estranho não ter a quem escrever, Ana. Todos os da casa se foram. Carlos casou-se; Vitória foi tentar a vida na cidade. Sobramos eu e a mãe, a casa toda atrás de nós. A mãe não pode ler, está cega e vive pedindo-me que lhe leia algo, que lhe conte alguma história. Estou sem histórias, Ana. Não consigo mais contar da morte do pai que inventei
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(o canalha na verdade se foi)
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aquele funeral fictício, eu chorava e a mãe também ao meu lado no meio do cemitério sem mais ninguém por perto
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– Seu pai não era querido Joel?
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– Era sim mãe o caso é que o enterro caiu em dia de semana fica difícil pro povo faltar o serviço
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a mãe pedindo-me que lhe vestisse de preto todos os dias por causa do luto, eu sentindo raiva daquele desgraçado que nos deixou, deixou-me com minha mãe cega e com dois aluguéis atrasados da casa, estamos sem televisão pois cortaram a eletricidade, disse à mãe que o aparelho quebrou, disse que não precisamos de TV afinal posso contar-lhe histórias e temos o rádio de pilhas para ouvir, mas estou sem histórias
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(já não escrevo, minha mão não presta a não ser para escrever a você cartas que nunca enviei, todas as minhas memórias que rasgo dois dias depois)
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minha mãe perguntando-me como está a cidade, se o futuro já chegou por aqui, pedindo-me que a leve ao rio mas não há mais rio, secou como todos sabem, o rio em que eu e você tomávamos banho, está lembrada, Ana?, divertíamo-nos brincando de cabra-cega, mergulhávamos como um dia vimos na TV que transmitia as Olimpíadas, e você me prometia que quando crescêssemos iríamos juntos para a cidade, sobramos eu e a mãe, a casa toda atrás de nós, e não sei ainda para que cidade você foi. A mãe perguntando-me por você
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– Joel que é feito da Ana?
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– Morreu
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informo-lhe, como se nunca o tivesse feito, e ela se choca a cada vez que dou essa mesma notícia, você morreu e enterrou-se só em alguma cidade que desconheço, a mãe vestida de preto olhando para o nada, a escuridão à sua frente, fazendo mais um cachecol de tricô sem serventia alguma na quentura desse sertão.
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Não posso mais ouvir música, acabou-se a pilha do radinho e minha mãe canta um velho hino de sua igreja, como pode a velha ainda ter fé no meio desse calor sem mato, sem rádio, sem televisão, a mãe canta como se tivesse seus quinze anos, cantora de coral, disseram uma vez que a levariam para cantar na cidade grande, meu pai se apaixonou pela cantora e não a deixou sair do sertão, aquele canalha que agora nos abandonou, morreu, o enterro fictício, minha mãe de preto cantando na volta para casa, pedindo-me uma história, cantando que existe a esperança, que o céu tem rios que não secam, o São Francisco seco e ela querendo tomar banho, cantando e ensaiando com as mãos secas as notas no piano que também sabia tocar, mexendo os dedos um a um como quando faz tricô, e eu assistia com lágrimas nos olhos, Ana, como quando você se foi e não disse adeus, as mãos inchadas, fortes e fracas da minha mãe, estava vestida de preto e cantava enchendo os pulmões, levantando, rodando pela casa, esbarrando na TV que não funciona mais, a velha iluminava a casa e sorria, que no céu há rios que nunca secam, cantando e tocando piano, como pode ainda ter fé a desgraçada, Ana?
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Eu inventando como foi que o pai morrera, dizendo que tomasse cuidado para não cair e ela rodopiava, minha mãe com quinze anos cantando no coral, dançando a valsa com meu pai
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aquele
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minha mãe que devia tomar dois remédios por dia mas não tenho o dinheiro, não tenho mais histórias nem luz, minha mãe dançava sozinha, sem marido, ela era luz e sorria no meio da casa sem flores, como quando éramos crianças e ela cantava para nós de perto, dizendo que não nos preocupássemos que a primavera já chegava, que a chuva já vinha, que o pai já conseguia um emprego, minha mãe comigo no colo rodopiando pela casa festiva, as lágrimas saindo-me dos olhos, não conseguia pará-la, eu desistindo de alertar-lhe a respeito dos objetos no seu caminho, girando e enfim sorrindo também, como no dia em que você me disse que éramos gigantes, que nunca morreríamos ou nos separaríamos, Ana, como quando você me disse que tão logo crescêssemos iríamos juntos para a cidade grande.
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II.
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Ontem fui até o rio, Ana, ou o que costumava ser o rio, e atirei-me à lama que substituiu há algum tempo a água que lá pousava. Saí todo sujo, os meninos correndo gritando
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– Tia tem um maluco lá no rio
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e eu não sei mais se sou louco ou normal, a mãe diz que sou o preferido, que só eu mesmo pra ficar ao lado dela cega, as pessoas chegando até nossa casa pra vê-la
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– Dona Neusa está tudo bem com o Joel? Ontem ele ficou rodando deitado no rio parecia um maluco
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minha mãe sentando
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– Não mentira não pode ser o Joel
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eu me aproximando dela, perguntando o que havia acontecido, explicando que esse povo é que é doido e fica inventando história pra perturbar a gente
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– Está certo filho você pode ir à feira comprar dois quilos de batatas e alguns jilós?
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comprei meio quilo e um jiló mas disse à mãe que fiz tudo como ela pedira, o dinheiro acabou mais uma vez, Ana, a Vitória ingrata nem pra aparecer aqui em Pão de Açúcar ou ao menos mandar um dinheirinho, já deve estar rica lá em São Paulo, o Carlos nem quero pensar, tomara que nunca consiga ter aquele filho, só de pensar no que ele fez com você, Ana, coisa de animal, nunca vou perdoá-lo mesmo que você volte aqui me pedindo de novo, dizendo que você consentiu, já disse que não sou homem de retirar minhas palavras
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– Joel olha ontem eu e o Carlos
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fui revoltado ao encontro do idiota que não entendeu nada quando recebeu um soco no meio do rosto e nunca mais lhe dirigi a palavra, nunca mais, nós dois na mesma casa se esbarrando, o Carlos tentando falar alguma coisa, e eu passava por ele mudo sem nem olhar nos olhos, você
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– Joel olha ontem
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sem pudor, sem vergonha, hoje eu penso como você pôde, Ana, depois de tudo aquilo, que nunca nos separaríamos, eu dormia pensando em você, no seu biquini amarelo, pensava em nós dois em Pão de Açúcar, nosso casamento na Igreja Batista seria bonito e teria flores por todo lado, as damas de honra poderiam ser as suas sobrinhas, o arroz, você entrando deslumbrante pela porta, o pessoal do coral cantando e minha mãe provavelmente não resistiria, eu dentro de você, nossos filhos, tudo isso se perdeu, Ana, se perdeu quando você
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– Joel olha
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se foi, não te vi mais, seus olhos me lembravam a cor do São Francisco, a palma da sua mão branca, sua pele mulata que dava até medo de abraçar. Hoje tenho uma mãe cega, uma TV que não funciona, um radinho sem pilhas, aluguéis atrasados e mais nada depois que você se foi, fugi naquele dia de chuva que todos esperavam menos eu, em dias assim o rio voltava a parecer com o que já fora
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– Joel
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não quis ouvir
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– Jo
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e hoje te escrevo porque preciso te ouvir. Pergunto-me se algum dia terei um destinatário, se terei seu endereço, Ana, e finalmente não rasgarei minhas cartas e minhas memórias dois dias depois.
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III.
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Ana, resolvi parar de rasgar minhas cartas. De agora em diante vou guardá-las no armário para o caso de um dia você voltar e poder, quem sabe, dar de cara com elas ao vir me visitar, dizendo que estava de volta a Pão de Açúcar, que não aguentava mais estar longe de mim, que aquilo tudo com o Carlos não havia sido nada, que suas sobrinhas seriam nossas damas de honra e espalhariam arroz por toda igreja, que você quis ligar e enviar cartas mas não conseguia de jeito algum lembrar meu número e meu endereço, que estava com saudades do São Francisco e não podia acreditar na lama em que o nosso rio havia se transformado.
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IV.
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Estou mergulhado nesse rio de memórias, Ana, nas quais me perco. E já não sei se nos beijamos ou se era apenas a minha vontade, já não lembro por que brigamos, por que soquei o Carlos, por que você partiu. Tudo que agora conto e recordo terá de fato acontecido?
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Miguel Del Castillo, aluno de Arquitetura da PUC-Rio, foi o grande vencedor da categoria prosa do Prêmio Paulo Britto com esta Carta para Ana. Miguel, que é editor da Revista NOZ, já publicou vários poemas no Blog do Bolha e está estreando nas páginas do jornal impresso na atual edição #27.
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terça-feira, 24 de novembro de 2009

O caçador de sombras — 2º lugar de prosa

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Esgotaram-se os pássaros e seus cantos fiaram-se num silêncio entrecortado por uma brisa vacilante que lamentava de vez em vez as vidas perdidas no campo de batalha. Misturado ao som ritualístico da Morte, abria-se para a platéia de um só espectador uma cortina de cheiro de sangue, que tingia o ar com notícias que chegariam desesperadoras aos ouvidos ansiosos e distantes dali.

Ele andava pelo palco formado por cadáveres e, por mais que seus passos estivessem tão pesados quanto sua cabeça, seguia o roteiro, segurando a respiração e com a espada ainda empunhada na mão. No entanto, a espada tinha sua ponta virada para a terra, desenhando nela, através do sangue de outrem que escorria por sua lâmina, seu próprio caminho. Acompanhavam-no ainda as risadas dos amigos e as carícias da mulher sonhada, que em mais uma noite alentou suas esperanças de um futuro calmo. Assombrações da noite passada, tão vivas e presentes em sua mente que faziam-no não esquecer do que era feita a dor.

Seus passos eram ritmados por uma música de câmara, tocada pelo órgão interno em seu peito, segundo as batidas de seu desespero seco e entalado. Assim foi seguindo, até virar trapo e tombar no chão. A boca ficou cheia de terra e sangue que entravam também pelos seus poros. Isso não mais o incomodava. Por favor, que abaixassem os holofotes agora. Queria morrer na escuridão do último ato e se tornar eterno nas bocas dos jovens atores que viessem depois dele.

A Morte, contudo, não tem dono. Ela vem quando quer e não quando é convocada. Então, vendo-se ainda vivo, abriu os olhos. Ali era o Inferno e em breve o demônio cantaria seu nome. E pode ouvi-lo, numa graça de Ave Maria, que o arrepiou por debaixo de sua armadura, outrora tão brilhante quanto o próprio escudo de Aquiles.

Levantou-se, apoiando-se em sua espada, e seguiu o chamado que mais parecia um choro baixo, quase miado, no meio dos sons da Morte, que lhe estalava a língua como se para seduzi-lo. Revirou alguns corpos, ou eram sacos de farinha trajados de pessoas?, até deparar-se com um homem que vestia o uniforme rasgado do inimigo.

Os olhos do ator coadjuvante, numa emocionante interpretação, estavam voltados para o céu como se por entre as roldanas, cabos de ferro, passadiços e contra-regras, pudesse ver um véu de estrelas cobrindo-lhe o túmulo.

O ator principal, aqui se faz necessária a explicação por questão de créditos e egos, notou que no peito rasgado do homem havia uma ferida feita por sua espada. Há incontáveis dias agora, num tempo perdido no espaço, seu mestre ensinou-lhe a arte de matar e assinar a presa ao mesmo tempo. E, pela primeira vez, ele se arrependeu de ver ali, inegavelmente, a sua marca no último homem vivo.

Caiu de joelhos ante a dor. Sabia matematicamente que o homem morreria, pois era o melhor soldado de seu batalhão e quando empunhava uma espada era para matar. Apesar da situação, teve que congratular o homem por ser bravo e continuar acorrentado a sua vida até o fim. Remorso misturou-se à admiração e inveja, criando uma mélange que o fez segurar forte o cabo de sua espada.

Antes que qualquer ato pudesse ser criado, alongando mais essa cena, seu punho foi agarrado pelo homem com uma força de quem ainda tinha vida e que não se entregaria antes da hora. Reverenciou-se com despeito, afinal era ele o personagem principal.

O homem encarava-o como se o céu estivesse traçado nas linhas de seu rosto. Veio à mente a possibilidade de ter sido reconhecido como o invocador da Morte calada. E essa já vinha cheirando o cangote do homem, bebericando a sua vida em pequenos e saborosos goles, que também iam deixando-o zonzo. Um balbucio vazio, quase bêbado, tentava se equilibrar nos lábios do homem, mas caíram por terra antes de chegarem aos seus ouvidos.

Não demorou muito. Nem para ele notar que em sua mão fora colocado o retrato de uma mulher. Nem para o homem ver Deus em seus olhos e não inspirar mais.

Sob os aplausos surdos de uma platéia fantasma morria o último homem vivo.

Um grito despertou o tempo e sacudiu os pássaros que voltaram a tecer seu luto.
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Enquanto o sol ia se pondo, ele via as marcas de sangue seco em suas mãos transformando-se em negras. Negras como o abismo diante de si, como o cheiro do seu futuro. Fechou os olhos e apertou firme os punhos doloridos e marcados. Quebraria a própria vida com aquele aperto se pudesse, mas a Morte era uma paqueradora que seguia suas próprias regras e, às vezes, parecia partidária apenas do amor platônico. Soltou a própria força sobre si, querendo sentir vida antes de morrer. Suas unhas sujas entravam na sua carne, fazendo-o sangrar, pela primeira vez, seu próprio sangue. Apertou mais a mão e voltou-a para o solo. Seu sangue era uma oferenda à Morte. Doce ou amargo, fosse qual fosse o sabor, que a Morte decidisse dele experimentar agora e o resto que sumisse no turbilhão das horas, engolfado pelos bicos dos críticos abutres que nos céus já desfilavam, ao som de asas tamborins, a sua plumagem de falso luto.
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As estrelas observavam aquela criatura sentada à beira do palco, provavelmente pensando se ele duraria ou não o suficiente para encontrá-la. E eles estavam mais próximos do que qualquer um poderia imaginar. Ela, a mulher por ele sonhada incontáveis vezes, estava ali, com ele, em suas mãos, sorrindo tristemente no retrato dado à outro homem.
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Ele olhou para as estrelas como se tivesse entendido seu sussurro e contemplou o retrato manchado de sangue. A imagem dela queimou seus olhos por um momento. Então ela existia de fato. Não eram sonhos numa imensa cama fria. Ele acariciou o rosto gelado dela. Era sua última visão da vida antes da Morte. Agora seres mortos faziam seu caminho por onde passava, prontos para ajudá-lo a não mais ser. Não poderia nunca mais voltar à sua velha vida, ao seu velho eu de atorzinho desconhecido. Ele também estava morto, apenas seu corpo é que não sabia disso, pois era regularmente possuído por outros que não ele. Não se diria um sobrevivente. Era apenas uma besta vivente caçando sombras, perseguindo a Morte, até ela dele se encantar e resolver entregar-se a ele como a um amante, deixando-se entrelaçarem num explosão definitiva.
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Esperar-se-ia ainda séculos de atos e desatados destinos para que este dia acordasse na memória de um autor. Um grito de esperanças e sonhos quebrantados, começado muitos séculos antes, quando os seres nem nome tinham e o título ainda não era “O Caçador de Sombras”. Por enquanto, não havia mais texto nas páginas do roteiro. Tudo em branco. As luzes deste ato foram apagadas. O palco verteu-se em escuridão. As cortinas foram fechadas e depois retiradas para lavagem. Mesmo assim ainda ouvia uma espécie de ovação ao longe. E o guerreiro, de volta à sua imensa cama fria, com lençóis de áspero cetim cor de sangue e terra, caçava mais uma sombra dentro de si. Esgotaram-se os sonhos com a mulher amada. Estava apenas à espera da Morte, pronto para enlaçar-lhe por entre as pernas e domá-la definitivamente, fazendo-a sua em meio as sombras com as quais ela tanto gostava de lhe provocar. O que pareceu ter acontecido por ínfimos segundos. A Morte chegou perto de dar-se por vencida, mas era apenas um truque para requentar a relação.
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Chamou-lhe o nome para que abrisse os olhos e emergisse de si desembocando num clarão branco que quase o cegou. Foi penetrando nessa branquidão dolorosa, caçando sombras que sobre ele se inclinavam, e pacientemente deixando que as assombrações se transformassem, ganhando os contornos de uma enfermeira a lhe sorrir numa triste alegria, coisa que só boas atrizes eram capazes de fazer. Era um sorriso extremamente fotogênico, notou.
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Chiara di Axox
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Chiara di Axox já publicou diversos textos no jornal Plástico Bolha. O caçador de sombras ficou em segundo lugar na categoria prosa do Prêmio Paulo Britto.
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segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Brincadeira — 3º lugar de Prosa

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Quando se observa a vida de cada indivíduo,
de modo geral, destacando apenas seus traços
mais significativos, percebe-se que ela não
passa de uma tragédia; porém, se examinada
em seus detalhes, tem o caráter da comédia.
Arthur Schopenhauer
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Você sai do trabalho com o corpo dolorido, mas não sente a mínima vontade de ir para casa. Como todos os dias, você resolve ficar um tempo a mais na rua, ignorando os apelos de seus músculos e ossos que clamam por descanso. Você sabe que já está velho e não deveria travar esta batalha contra o seu organismo, mas o faz mesmo assim. Faz de tudo para não ter que retornar ao inferno que um dia foi chamado de lar. Mas, ultimamente, o que não tem sido um inferno para você?

Você senta num bar, mas não tem sede nem fome. Você pensa na sua casa, no seu emprego, na sua família, mas só distingue lugares e rostos estranhos. Lugares e rostos que ainda há pouco tempo você enxergava com afeto. Agora tornaram-se todos cinzentos, descoloridos. Como a sua vida. O jogo está para terminar. A derrota é inevitável. Você percebe, a cada segundo, o efeito do tempo que te destroça sem qualquer piedade. Logo não restará qualquer vestígio físico nem lembrança sua. Você deseja apenas que aconteça rápido e não cause uma dor ainda maior do que essa que te assola agora. Você aprendeu a desejar pouco. Você só queria viver a sua velhice em paz. Paz? Que grande piada! Você sabe que a paz não existe. A vida é um eterno estado de guerra. Os inimigos estão em toda parte, sempre à espreita. Você é capaz de percebê-los pela respiração e tem certeza de que eles também identificam a sua. Eles se multiplicam como protozoários, a cada instante surgem milhares. Mas... você nunca quis fazer inimigos. Não importa. Se você não os fizer, eles se fazem mesmo assim.

Você se recorda da época em que foi jovem. Existiam os ideais, as certezas, a esperança e o amor. Ilusões. Antes elas do que o agora, esse simulacro de existência, embrutecida e acinzentada, que você há pouco chamava de vida. Você não é mais o mesmo. Mas não foi só você que se transformou. As outras pessoas também. Não são mais as mesmas. Elas te olham diferente, agem de maneira estranha. Por quê? O que pode ter acontecido a elas? E a você? E a mulher que um dia você amou e que, de repente, cedeu lugar a uma estranha, disforme e insuportável? E os seus filhos, que, a cada dia, vão se tornando mais estranhos, agressivos e, sobretudo, mais feios?

Nesse exato momento, sentado num bar no meio da rua, você já não consegue reconhecer ninguém, nem mesmo a si próprio. Quando você pára em frente ao espelho não enxerga mais do que um espectro. Perfeita cópia da realidade. Há tempos você era. O quê? Será que você, de fato, já foi algo em algum momento?

Você procura motivos e só encontra malogros. Mas foi tão repentino. Era tudo de um jeito e, de repente, tornou-se diferente. Onde está a beleza? Sumiu dos seus olhos, como num passe de mágica. Negra. O horizonte já não existe. Tiraram tudo de você. Até mesmo a dignidade. A sua existência, o simples fato de respirar, converteu-se em bruto, monolítico, desespero. Mas nem sempre foi assim. Ou será que foi e você não percebeu?
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O que te incomoda? Será a falta de sentido? Mas já houve um dia algum sentido? Será que só você não o compreendeu? Ou o sentido, como tudo o mais, não passa de criação? Será você apenas mais uma criação? É quase certo. Mas quem será o criador? Alguém que cria para se divertir? Alguém que se diverte à custa dos teus infortúnios? Olha para cima e busca esse manipulador de marionetes, esse histrião perverso. Corta esse fio que te prende. Mas onde está o fio? Você já o busca há muito tempo. Em vão.

Você sente falta da verdade. Onde foi parar a maldita verdade? É provável que não esteja ao seu alcance, pois você não seria capaz de suportá-la. Aquela outra era mentira. Mas se tudo é mentira, deve haver algum grande mentiroso por trás. Você ainda não o conhece de verdade, o que não impede que ele conheça você.

Mesmo sabendo que seus apelos jamais voltarão a ser atendidos, você ainda insiste em clamar por justiça. Que justiça? O que significa isso? Apenas um conceito vago, assim como você e sua vida. Absurdo. Você vive para ele. É o motor que te anima e te condena. Nada parece real, apenas a dor. A dor que, nesse exato momento, trespassa todos os seus músculos e ossos. Você clama ao vácuo para que ela cesse. Não deseja mais do que isso. Quando a maldita dor acaba? Se acabar, decerto, acaba junto com a brincadeira. Mas que brincadeira? Para você a brincadeira já terminou. Há muito tempo. Porém, alguém, em algum lugar, ainda continua brincando. Alguém que faz você de palhaço. Alguém que faz de tudo para se divertir. Será que é apenas você o alvo dessa brincadeira?

Você continua sentado no mesmo lugar, imóvel, numa cadeira encardida de um botequim infecto. Você enxerga demais. Mesmo com os olhos fechados. O mesmo de sempre. Chega! Você não suporta mais. Você deseja a escuridão.

Você observa, indignado, a vida que brota de todos os cantos e não cessa de proliferar. Para quê tanta vida? E que vida é essa? Apenas transição e sofrimento. E a dor segue aumentando. Um garoto. Você vê um garoto. Ou garota? Um sorriso. Para você. Um anjo? Não há sorriso. Apenas escárnio. Você virou motivo de galhofa. Inimigos. São todos seus inimigos. Você nunca quis fazê-los. Eles que declararam guerra a você. Manipulados. Como você. Tudo por diversão. Você precisa reagir.

Você levanta da cadeira e se dirige à criança. A dor é insurpotável. Um estalo. Em instantes você se vê rodeado por uma pequena poça de líquido escarlate que escorre em direção à beira da calçada. O riso parou. Acabou a brincadeira? Ou é só por enquanto?

Silêncio. Mas não por muito tempo. Logo, você começa a distinguir alguns ruídos, que não são exatamente os habituais. Um risinho, a princípio discreto, vai, aos poucos, aumentando de volume, até se tornar ensurdecedor. A ele, junta-se outro, ainda mais potente e terrível. Agora já são muitos. Uma sinfonia de risos. Tão desafinada quanto diabólica. Sua cabeça está prestes a explodir, mas ninguém parece interessado em atenuar o seu sofrimento, pelo contrário. Continuam rindo de você. Por que fazem isso? Você só queria paz. Mas quem é você para querer alguma coisa?

Você está cercado por uma multidão. Estranhos. Todos estranhos. Seus inimigos. Uma matilha de bestas sanguinárias aguardando apenas o momento ideal para o bote. Você não tem outra saída senão se antecipar. Mas há a dor que te impede. Essa maldita dor. Não importa. Você deve superar a dor! Você deve superar tudo! Ataque! É necessário se defender!

Consciente do perigo, você ataca com ferocidade, como um animal acuado. Apesar de tudo, você ainda é um guerreiro bravo e não vai se entregar tão facilmente. Mas eles são muitos. Parecem milhares. E possuem uma ferocidade ainda maior do que a sua. Legião. Emissários do teu único e real inimigo. Uma massa disforme de braços, pernas, troncos e cabeças se amontoa sobre você sem lhe conceder qualquer possibilidade de reação. E o coro de gargalhadas continua, cada vez mais ensurdecedor. É impossível resistir. Você sabe que nunca será páreo para eles. A dor aumenta ainda mais. Será possível? Dor! Dor! Dor! Lanças afiadas perfurando cada milímetro do seu velho e cansado corpo.

Aos poucos, tudo vai ficando escuro. Você não enxerga, não sente mais nada. A dor cessou. O fio de consciência que ainda se manifesta não tardará a te abandonar. Dentro de poucos instantes, graças, tudo estará acabado.

Todas as luzes já se apagaram, todos os risos já silenciaram e você está, enfim, contente, aguardando a redentora comunhão com o nada. Você não faz idéia da grande surpresa que te foi reservada e reage com assombro no momento em que o maior dos risos se revela. Um riso que você nunca tinha ouvido antes. Mais terrível do que a soma de todos os risos anteriores. Um riso que permanece. Como num sonho mau. Certamente é um aviso. Um aviso dele. Daquele que te criou. Que te manipula e te faz sofrer. Apenas para se divertir. Ainda não é o fim da linha para você. O fio não foi cortado. E nunca será. A brincadeira está apenas começando. A dor é...

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Carlos Eduardo Varella Pinheiro Motta
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Carlos Eduardo Varella Pinheiro Motta conseguiu o 3º lugar na categoria prosa e é o primeiro dos vencedores do Prêmio Paulo Britto publicado no Blog do Bolha.
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VENCEDORES DO 1º PRÊMIO PAULO BRITTO!

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Foi realizado recentemente na PUC-Rio um concurso de prosa e poesia aberto a todos os alunos da universidade. Organizada pelo PET-Letras, a premiação recebeu este nome em homenagem ao grande professor, poeta e tradutor Paulo Henriques Britto — um dos padrinhos do jornal Plástico Bolha. Os vencedores de cada categoria vocês conhecerão ao longo dessa semana, aqui, no Blog do Bolha!
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domingo, 22 de novembro de 2009

Quero casar — um texto por Joyce Cortez

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Que estudar nada. Trabalho nem pensar. Eu quero casar. CA-SAR. Quero passar os dias organizando a movimentação da cozinha, definindo o cardápio da semana, hoje frango xadrez, amanhã carne assada. Meus dilemas serão que cor de cortina combina mais com o sofá da sala, jogar adubo no vaso, escolher entre bromélias, orquídeas e camélias. Serão momentos de raro prazer e contemplação, sendo deusa do meu próprio lar, orquestrando uma sinfonia sem complexidades. A vida é gozo.

Arrumar gavetas, passar o dedo na mobília para sentir ou não a poeira. Passear em devaneios pensando em que roupa de baixo escolher, eu amo meu marido e quero satisfazê-lo. Quero filhos, aos punhados, colocar a roupa suja para lavar, passar o pente no cabelo antes de levá-los para escola, mandar escovar os dentes, contar história antes de dormir. Ver crescendo fora de mim um pedaço de mim. Ensinar o pai nosso, dar um beijo na testa antes de dormir. Quero o silêncio da noite percorrendo a casa, a casa que cuido, que coordeno como orquestra, eu como maestro do lar, sentindo a brisa que percorre o sono daquele que dormem sobre o cobertor lavado com tanto zelo. Suave. Contemplar a organização das coisas no seu devido lugar, alguns objetos decifram segredos como aquele presente que ganhei da tia Dora ou, aquela miniatura, herança da minha avó. Os espaços da casa guardando outras casas, outras pessoas, outros espaços e história, e é meu dever organizar os tempos, saber das evidências sutis, escondidas. Esse é o segredo da verdadeira dona da casa, do lar, dona de si própria.

Eu quero casar, levar café da manhã na cama, escolher gravata, fazer massagem, esperar acordada. Levar sustos e ter momentos de agonia, me irritar e enlouquecer por causa da roupa suja espalhada no quarto. Casar e ser completa na felicidade e nos derivados da rotina. Amargura, não se deixe intimidar, eu suspeito sim de todas as mazelas que podem surgir de uma alma casada, mas já disse, quero casar e ser completa também inclusive na infelicidade.

Quero casar e com benção de padre.
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Joyce Cortez
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Joyce Cortez é de Mar de Espanha, Minas Gerais. Acompanha sempre o Blog do Bolha e tem uma amiga, que mora em Juíz de Fora, que manda, quando pode, o jornal impresso. Não é escritora, mas gostaria muito de se arriscar publicando este pequeno texto.
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Fui para o Tahiti em busca de Gauguin: no RJ

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sábado, 21 de novembro de 2009

Poesia (Latino e Ibero) Americana — no RS

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A Poesia do Mercosul: sessão de leitura poética
Convidados: César Pereira, Floreny Ribeiro e Marines Bonacina
Espaço Cultural Letras & Cia., 3ª feira, 24 de novembro de 2009, 14h
Letras & Cia. Livraria-Café – Av. Osvaldo Aranha, 444
Porto Alegre – Rio Grande do Sul
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Vozes Poéticas Ibero-Americanas:
espetáculo literário
Acervo Mario Quintana, 5ª feira, 17 de dezembro de 2009, 19h
Casa de Cultura Mario Quintana – Rua dos Andradas, 736
Porto Alegre – Rio Grande do Sul
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Os dois eventos têm Entrada Franca
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Apoios Culturais: Casa de Cultura Mario Quintana, Instituto Cultural Português, Sociedade Partenon Literário, Casa do Poeta Latino-Americano e Revista Literária Paralelo 30
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Lançamento do livro "lã de vidro", no Rio

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sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Para lhe comer, texto de Gabriela Bouzada

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Mirna estava sentada com seus olhos contornados de grossas linhas pretas e seu perfume sufocante. Mirna estava sentada com seu vestido longo que balançava com o vento que espalhava seu perfume. Mirna estava sentada com seus cabelos em trança que não se mexiam. Mirna estava sentada com seus lábios secos e murchos imóveis. Mirna piscava olhos suficientes para olhar e compreender o mundo, mas não olhava. Mirna apenas mirava um ponto qualquer e piscava devagar. E o vento balançava seu vestido azul e espalhava seu perfume sufocante. Mirna piscava grande e não percebeu a criatura que pequena e pasma que seus cachinhos até tremiam, não sabia como absorver Mirna.

Pequena e pasma nas suas pernas frágeis, a criaturinha não sabia como olhos assim tão grandes de contornos assim tão fortes podiam ser. E seu pobre nariz, confundido, acostumado a talcos e perfumes sóbrios, não podia compreender aquele odor nauseante que cada vez mais lhe penetrava as narinas e cada vez mais desejava que penetrasse. E os lábios murchos, secos, mortos; por que tão murchos, secos, mortos? O vestido tão azul, recorte do céu que não podia mais ser olhado: hipnose.

Com pupilas em susto de tanto sentir, ela intuiu que tanto assim era proibido. Pequena, frágil, pasma, estática, nascia a pergunta sem palavras. Do outro lado, a resposta de boca morta piscava a verdade ausente.
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Gabriela Bouzada
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quinta-feira, 19 de novembro de 2009

A última vez ninguém esquece

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Ah! corpo de lâminas
Que cortou minhas purezas
Que no balançar da cama de espada
Torturou-me, encheu me de sangue
Gotas de um céu feito de ilusões
Caiam do meu dorso
De tanto prazer
Tua loucura me envaidecia
Molhava-me de gemidos
Eram gritos que ecoavam
Da tua espúria boca
que de perversão me transbordou
Nix de tom escureceu o Hades
O inferno que selou nosso ato
Beijos afagadores
Abraços asfixiantes
A gota de lágrima
Em forma de vidro
Se quebrou, refletiu seu pensar
Vi que bastava,
Seria nossa última
Aproveitei ao máximo
Oh! corpo de lâminas
Sangrou minh'alma
Cicatrizes ficarão
Soando pelos trovadores
Dando atmosfera
À consumada orgia
Muito melhor que a primeira
A pérfida primeira vez
O ato me consumiu
Sangrei, satisfiz-me
Essa última
Jamais esquecerei.
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Ronald Fontinelle
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quarta-feira, 18 de novembro de 2009

mistério por debaixo do cabelo

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da última vez
que cortei o cabelo
a cabelereira lavou-o
com tanta força
e por tanto tempo
que eu penso
que ela queria ler
meu pensamento
pra que isso, moça
pra que essa força
se nem eu sei
o que se passa
aqui dentro
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Álvaro Andrade
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terça-feira, 17 de novembro de 2009

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

This is it, por Augusto de Guimaraens

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Como me disse ontem Chacal: “O Michael não pode morrer, pois ele é um desenho animado. Imagina se o Pernalonga morresse?” Pois é, agora os desenhos animados explodem a tela e adentram nossa própria pele através dos estragos de lua desse menino vítima do POP, de que lua falava Michael? Lua intensa como um véu vazante, anjo exterminador vazando milagres. Como um continente perdido na beira da casca de um ovo, M.J. se auto-implode como um encenador de si próprio, this is it. Michael, você se perdeu no deserto de fotos envelhecidas antes do tempo, só te resta agora esta saudade do futuro, passos de escuro e pistas lunares, this is it. Nada te salva te salvará dos estilhaços deste instantâneo instante, desta saudade de tudo que ainda se resta para viver. Heróis ainda apodrecem no vento de carne. Pessoas abrem seus guarda-chuvas, mas a chuva não as guarda, o veneno que assalta é um mel vazando massacre , this is it. Saudemos agora esse nosso Macunaíma ao avesso, this is it. Michael Jackson foi o último dândi da história, andrógino anjo exterminado pela multidão anônima, sangue pisado nos estilhaços da calçada da lama. Nunca mais luvas de lantejoulas prateadas e casacos de remotas purpurinas douradas, nunca mais girassóis na lapela, nunca mais. Ambulâncias ainda correm pelo pôr-do-sol tragado pelos anjos da cidade. Cidades são traçadas, mas os arquitetos regurgitam gotas de nuvem. Se Oscar Wilde declarava que uma reforma na maneira de se vestir era muito mais importante do que a reforma da religião, o exibicionismo delicado de Michael tinha um alvo certo: a dança. Michael esclarece: “Eu me torno as estrelas e a lua. Eu me torno o amante e o amado. Eu me torno o vencedor e o vencido. Eu me torno o senhor e o escravo. Eu me torno o cantor e a canção. Eu me torno o conhecedor e o conhecido. Eu continuo dançando e dançando e dançando, até que haja apenas.....a dança”. Os pés andam sozinhos. Agora já é tarde demais para se morrer.
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Augusto de Guimaraens Cavalcanti
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