sexta-feira, 30 de abril de 2021

Luas sem véu

Fogo branco, a fé pelas cinzas
atravessando meu pecado
por entre as vozes ardentes que
se mantêm na fome eterna,
tantos lumes que só abrandam
à noite cheia, ante seu corpo

onde desabo, desafogo entre
seus laços num solavanco, atrás
de seus cachos, os tons num
brilho por se entregarem quietos,
deixam-me implorando,
largado nu nuns sorrisos bobos,

seus lábios que quase logo retribuem,
mas não diz, adivinhe, aquieta
meu gosto pelo risco ligeiro do eclipse,
a emancipação da minguante humana,
manancial de tesouros livres no peito,
prende-me aos restos da natureza em flama,

trajando na pele um terno estapafúrdio
ao penetrar por suas coxas
hirtas, pressionando aflito com palma
cheia o fio que queima,
arde, quero, teima, treme nas trevas
até que, dócil, doo-me

ao peso das provocações,
mas abraçado pelas estrelas
num losango triangular
de lâminas luminosas, fachos
cujo centro implode só,
pérola prata, lua de nada

Árion Lucas

terça-feira, 27 de abril de 2021

O sistema

Velhas paredes
De velhos prédios
De velhas cabeças
Trabalhando em velhos sistemas.

Luiz Ricardo

terça-feira, 20 de abril de 2021

Coruja (incensário)

atenta ao fogo
descamando bravo em sinuosos sopros
por sobre minha cabeça
e olhos que (quase) tudo alcançam
a brasa e o aroma de alecrim se encontram
numa saturnália grave e acesa 

Daniela Cassinelli

quinta-feira, 15 de abril de 2021

Um poema de Maria Carolina

história escrita à lápis
não sou eu quem me escreve
danço no papel desenhando
das letras às palavras
dos sonhos às tristezas
esperando um ponto final que me leve

Maria Carolina

terça-feira, 13 de abril de 2021

Um texto de Clara Luz

fui desmontada uma vez — lembro bem, era 2006, fiz o trajeto tijuca–ilha do governador apertada entre a cômoda e a cama. me reergueram no segundo andar de uma casa rua professor veríssimo da costa. ali fui leve, colorida, movimentada. ali o tempo passou rápido, acabou abruptamente, tudo aquilo que habitava as minhas frestas me foi retirado, guardado numa caixa, e eu (outra vez desmontada) guardada noutra.

quando fui ver o sol outra vez já era 2015. fui parar numa quitinete na ilha da gigóia, meu peso se tornou outro. já não era mais remexida com frequência — agora era cuidadosamente catalogada, mais pesada, as cores mais sóbrias. vez ou outra adicionavam mais um à minha coleção. vez ou outra vinha alguém à casa, tomava um café, tirava um de mim e partia.

hoje vivo em copacabana. não fui desmontada no trajeto. a proximidade com o mar me enferrujou, não sou mais desmontável. sou cada vez mais pesada. quase não cabe mais nada em mim.

Clara Luz

quinta-feira, 8 de abril de 2021

Tênis

Eu sigo os seus passos onde quer que cê vá
Te aqueço no frio, estou sempre aos seus pés
Corro uma maratona com você se preciso for
Já passamos por coisas, que ó… Só o Senhor!

Nem tudo são flores, nós sabemos bem
Às vezes desfaço o laço que dou
Tropeço na rua, mas quero o seu bem
Fui feito para te trazer conforto e não dor

Só peço que olhe os caminhos que vai
E cuide de mim pelo tempo que for
Menina, você me calçou muito bem
Assino, seu tênis, com todo amor

Hellen Otaviano


terça-feira, 6 de abril de 2021

O poema da missa

O que importa é amar a todos
O que importa é amar a todos
O que importa é amar ao próximo
O que importa é amar a Deus
Cantavam todos em coro,
Porém ao saírem
Comentaram,
Viram a roupa de Maria?
Ridícula, não?

Luiz Ricardo

sexta-feira, 2 de abril de 2021

Procissão da Santa adormecida

No andor se revela a razão da velha
bruxa vir ver as flores
toda hora nesta tarde,
longe de casa, na clareira que desce

Afinal, por ali passam monstros antigos,
o réptil labiríntico que
lhe recobre as decisões,
serpente do átrio que a fere na face,

seu demônio cortado engrandece-se
das outras, vampiro
de sangue velho,
derretido a cada falso perdão repetido,

assemelhado à cara da lembrança estuprada,
sua droga no bolso estragada
pelas garras fétidas,
vil espinhento com dentes corrosivos,

predador nas tocas, canta, depois arrota,
ele a engana, engata
mas ela vomita, esgana, e,
na lâmina, a carne podre do macho à cama

Árion Lucas