sexta-feira, 30 de março de 2018

O vento


empurra
porque não sabe
abraçar.

Ramon Ramos

terça-feira, 27 de março de 2018

Brooklyn


Ela ia para o Brooklyn. Na América do Norte. Mais precisamente, Manhattan. Chegara havia uns poucos dias. Pegou o ônibus turístico, vermelho, para mapear a cidade e depois visitaria com mais vagar os pontos que mais lhe agradassem. Desceu num quase ponto final. Era ali, lhe informaram. Depois da praça, teria que dobrar à esquerda, caminharia mais uns tantos metros; do píer, o barco chegaria logo ao destino. Era só cruzar o Rio East. Desceu do ônibus, andava bem rápido para sobrar-lhe um tempo maior para o passeio, o almoço e ainda voltar e assistir ao show de rock no Central Park.

Ela virou à esquerda, mas de cabeça para baixo! Uma multidão de ninguéns! Uma tristeza, aliás, angústia da mais pura. Sentiu um cheiro abstrato, inexplicável, vãos e espaços, alturas descomunais, Calatrava, o prédio adotado à sua frente, filhote do World Trade Center depois daquilo tudo!

O indizível com duas piscinas com águas infinitas e um ralo, melhor, um ralão dentro delas onde escorriam infinitamente dor, corpos, memórias, gentes, muitas gentes queimadas e agora suas almas na água para alívio dos céus.

Escoamento de vidas perdidas, ou lavagem de memória, ou apagando o fogo tardiamente, ou água das bombas dos bombeiros que não deram conta do ódio, da crueldade desse mundo seco de amor! Nomes possíveis daquilo!

Não foi ao Brooklyn. Ficou um número de horas, um tempo incomensurável nessa inércia, paralisada observando, no museu ao lado, fotos das pessoas bem pequenininhas que caíam pelas janelas!

Rosália Milsztajn

domingo, 18 de março de 2018

O eu e eu




Nem é preciso dizer
você já sabe: eu
sou
o sujeito aqui
desse enunciado.

Estou entretanto
fora dele
e de fora
o observo
espantada.

Pra falar do eu
(que seja o meu
ou o seu –
esse que em todos fala)
substantivo-me
masculina
num passe de mágica:
traumática, sequer,
a operação gramática
em todo caso
não doeu.

Aos trancos e barrancos
entre cacos
estilhaços
seguimos lado a lado:
o eu
homem de palavra
e eu
que sempre
de um passo
o ultrapasso.

Patricia Lavelle

sexta-feira, 16 de março de 2018

Um poema para Marielle Franco, de Beatriz Strattner



Com ela morreu um pouco de todas nós
Ela morreu por nós
A luta dela é nossa luta

HOJE AS MINHAS PALAVRAS SÃO NULAS. Eu não consigo parar. Não dá pra parar.
Hoje a gente percebe que não são só estatísticas.
Hoje a gente se une novamente. 1 semana depois da união de todas as mulheres no mundo. Hoje a gente se une por que MAIS UMA DE NÓS FOI MORTA. FOI OPRIMIDA, FOI REPRIMIDA.
EU sou ofendida todos os dias, NOIS somos ofendidas todos os dias.
A luta de uma é de todas
A morte de uma é por NOIS
A vida de uma é por nois é por todas é por uma é pra sempre.
Eu não sei o que fazer
Não sei o que achar
Meu mundo parou
Simplesmente parou
Meu coração entrou em transe assim como de todas a mulheres mortas vivas HOJE.
HOJE. AMANHÃ. ONTEM. Quando?
Quando?
Quando? A gente consegue não ser morta
Quando? A gente consegue viver
Quando, A gente consegue ser você?
— Eu não quero. Eu quero ser eu. Quero ser a porra de mim mesma. Sem temer
— Sem tu, temer

Beatriz Strattner


Beatriz Strattner é aluna de primeiro ano do Ensino Médio no Rio de Janeiro.

quinta-feira, 15 de março de 2018

O homem da pipoca


ele nunca foi grande coisa
em matéria de brilho

e escolhe o milho não
por falta de amor próprio
mas um jeito de vingar
as olheiras
certas perdas
os barulhos da rua
e isso lhe permite a luta a luz o óleo
invadindo ao osso

como um troço que rói,
que dói quando aceita
ser ele seu próprio custo
a consumir tudo
o que já foi inox

por isso projeta na pipoca
seu resgate
e vê nos pombos
alguma forma de aceitação.

Ramon Ramos

sexta-feira, 9 de março de 2018

WALTZ


[para Pórtia Dourado]

grafas
entre pinheiros
um punhado de palavras
pinheiros
sob branda alba
solitária
a neve baila
— Viena.

Israel Azevedo


Edição ao Vivo: com Marcelo Dolabela, Norma de Souza Lopes e Renato Negrão



terça-feira, 6 de março de 2018

O que os olhos veem


O que os olhos não veem
o coração assente
a intuição denuncia
O que os olhos não veem
os lábios asseguram
a língua prova e vicia
O que os olhos não veem
o ouvido delineia
com agilidade estupenda
O que os olhos não veem
o vento captura
e o olfato desvenda
O que os olhos não veem
encharca o corpo
enaltece o espírito
O que os olhos não veem
não está longe nem perto
não é aquilo nem isto
O que os olhos não veem
não precisa ser visto

Noélia Ribeiro