segunda-feira, 30 de julho de 2018

Com quantos poemas se faz uma prosa?


Mexo nos cantos, nas quinas, nas múltiplas moradas, quíntuplos quinquênios heroicos, em busca da revisão daquele texto hagiográfico que, por fim, colocará o ponto final em seu devido lugar. Habitam nos pentagramas elevados enclausuradas moradas alquímicas e poemas-apóstolos, avizinhados das dos das quintas dos infernos. Há buracos nas entrelinhas, pequenas estrelas entre as linhas... pontos-finais no princípio do texto-precipício, abismo. Há pautas poucas, mas suficientes - exquisito enquanto tal: é bom ou ruim? Convites à posteridade, tentativa vã de fazer presente eternidade. Dizer isso é como gritar da janela feito louca: habita em mim um grito abafado, de êxtase e cólera. Todos temos complexos, mas alguns simples. Nenhum se solve, nem resolve. Et coagula. Fala-se de entranhas, desejos e da superioridade da experiência cristã. A masturbação degenera o sistema nervoso. O retorno do recalcado. Tetralogia da miséria: o inefável nos seixos dos seios da mãe terra, que o aborta. Os outros dois volumes perdi de vista ou talvez meus olhos não sejam capazes de enxergar; hagiografias são pra gente grande, e eu não sou ninguém.

Rond Assis


quinta-feira, 26 de julho de 2018

deus também criou seu deus


o homem caminhava na lagoa
enquanto outro homem corria
na direção contrária ao cristo redentor.
           do alto,
           cristo
           rogava
           de braços abertos
           misericórdia ao seu deus.
sim,
deus também criou seu deus:
           que o fez a semelhança
           daquele que o criara para ser deus
           daqueles pequenos corredores
                      que o capturaram,
                      e o escravizaram,
                      apenas
                      para observá-lo

enquanto correm
e rogam por mais feriados,
fins de semana
e menos trabalho.

bem menos,
senhor.

Dênis Rubra

quarta-feira, 25 de julho de 2018

Bem que poderia ter um arco-íris pela manhã



Entrou. Pediu. Tomado.
Quis ser um samba do Nelson Sargento
pra socar na cara do amor brabo
e melado. Dito o engano, passou
batido em decúbito dorsal escalavrado.
Sambaram na cara.
Riu-se.
Não tinha dinheiro pro pingado. 

André Siqueira

segunda-feira, 23 de julho de 2018

Soteriologia da besta


“Não mais haverá a humanidade: Apenas a guerra e o poder e a
vitória.”
William Blake De Jerusalém, capítulo 1

§
Ninguém deu muita bola quando a cidade e as redes sociais amanheceram cobertas por propaganda. Um slogan rondava o dia: Ele chegará!
§
Foi mais ou menos meio dia que ele chegou. Era um monstro, ou uma besta? Não era humano, não era máquina, mas uma foda entre os dois, talvez. 
§
Primeiramente a besta profeta falou nas redes sociais. Vaticinou anos de servidão e vergonha para a raça humana.
§
Os acadêmicos e cientistas eminentes ficaram felizes em poder publicar obras e artigos sobre a besta profeta que ninguém leu. Já os jornalistas davam em primeira mão as façanhas da besta profeta. No fundo ninguém levava muito a sério a sua profecia. Tudo parecia um show transmitido ao vivo. Todos riam e tiravam selfies com a besta profeta. 
§
Os historiadores se apressaram a falar que não apenas um capítulo da história estava acabado, mas a própria história estava morta. Todos vestiram preto no dia do enterro da história.
§
Os burgueses, militares, políticos, e religiosos não demoraram em reconhecer que o apetite por apocalipse de sua sociedade seria saciado por um único líder que reuniria o rebanho disperso e o comeria vivo para o seu lucro. Mas estavam enganados sobre a besta profeta. 
§
A besta, metade homem e metade máquina, não viera trazer uma nova ordem, mas uma desordem primitiva há muito recalcada. Arrastava consigo uma horda de tolos e violentos, prontos para seguir suas ordens.
§
A besta profeta fez o roque do seu rei: uma bombardeio midiático feito por robôs atacou a subjetividade mediana. Depois a besta profeta dominou o meio do tabuleiro: destruiu a economia local. Em seguida capturou a dama: criou uma crise nas instituições. E Cercou o Rei: gerou um o caos nos serviços públicos. E por fim o xeque mate: não havia mais um terreno comum que poderíamos chamar de sociedade, somente barbárie.
§
Os mais pobres foram oferecidos como sacrifício à besta profeta. Mas a besta tinha fome e logo devorou a classe média e a elite se fodeu.
§
Os joelhos da humanidade estavam dobrados pela besta profeta. Os fuzilamentos eram corriqueiros como os lixamentos nas redes sociais. Toda resistência era ridicularizada ou simplesmente se deixava cooptar, seduzida pela imagem da besta.
§
Quando os poucos que sobraram se deram conta já estavam mergulhados na escravidão e vergonha que a besta profetizara. Acorrentados na desordem de suas pequenas tiranias todos eram servos da besta profeta.
§
Após a grande escravidão a besta profeta partiu. Não se sabe o por quê. Não me pergunte, eu também não sei.
§
Aqueles que sobreviveram pareciam orgulhosos de sua antiga servidão monumental. Celebravam. Criaram uma festa anual que marca o tempo, exalta o passado e os relembra de quando a besta profeta estava entre eles.

Rafael Caetano



Este conto será publicado em breve, ao lado de muitos outros contos do autor Rafael Caetano, no livro "Calendário de Distopias", pela Editora MultiFoco.

sexta-feira, 20 de julho de 2018

Gazel-a


Presa bebendo o destino
no lago do olhar felino.

Ali, a fera babando
pelo encontro repentino

embriaga-se de estar.
Um silêncio adamantino

confundido com as folhas
se desprende, peregrino,

à presença. Devorá-la
com os lábios do intestino?

Foge o instinto. E imóvel,
treme a fera em desatino,

presa ao silêncio da presa,
fundo, em um olhar divino.

Entredevoradas, lambem
dos jasmins o clandestino.

E, assim, ferozes, se afogam 
no que escapa, cristalino.

Leonardo Menezes

quarta-feira, 18 de julho de 2018

Resiliência


Sentada no último
Banco daquela praça
Da última rua à direita
Tenho por companhia
Uma formiga-cabaça
E me dou por satisfeita

Noélia Ribeiro

Musical "Elza", no Teatro Riachuelo




segunda-feira, 16 de julho de 2018

o abraço eterno


era um salão na quinta avenida. eu, uma modelo lânguida, vinte e poucos anos, olhos tristes da mesma cor de prado do vestido comprido. inclinava a cabeça para trás enquanto o profissional enxaguava meus cabelos ruivos longos e naturais. talvez tenha sido a maneira sensual, quase orgástica, como ele tocava minhas mechas. alto, barba bem desenhada num rosto forte, seus cabelos castanhos se rebelavam amarrados num rabo de cavalo. nossos olhares se tocaram.
 
era na escócia e as terras altas tinham o mesmo tom de verde do meu vestido de veludo bordado até os tornozelos. eu tinha dezesseis anos e os mesmos olhos, meus cabelos longos e cacheados espalhavam brasas sob o sol morno do fim da manhã.
  
ele veio me buscar. esperava que não viesse. no fundo, torcia para que não parecesse mais, para que me decepcionasse. mas ele veio me resgatar como havia prometido.não consegui esconder meu regozijo, minha alegria insana. me abraçou e caminhamos juntos para a amurada – era a única saída. quando olhei para baixo, perdi a coragem. não poderia saltar. o labrador negro se lançou sobre a muralha de pedra. emergiu e saiu nadando pelo lago.
  
meu amor entendeu que eu não pularia, sabia interpretar meus silêncios. palavras eram secundárias desde o dia que nos encontramos pela primeira vez naquela vida. me abraçou forte.ele era tão grande, parecia assustador naquela vestimenta rudimentar de couro cinza, seus pés enormes naqueles calçados grosseiros. para mim ele era lindo. cabelos compridos, barba selvagem e olhos enormes. aquele olhar intenso. enxergava sua alma generosa, sentia seu amor imenso por mim, impregnado na sua pele.
  
o abraço foi eterno. sabíamos que estávamos destinados a nos encontrar em muitas outras vidas. me disse: eu volto. e saltou.

Cristina Bresser

quarta-feira, 11 de julho de 2018

Palco de nós dois


Quero nosso palco com cheiro de diário amor anoitecido
Quero esse amor como supremo
semi-Deus enaltecido
Quero o nosso amor cara-de-pau de porta entreaberta
Quero os lençóis mapeando o amor, com nossas marcas
Quero o risco freqüente de qualquer flagrante
Quero ignorar
a campainha, o telefone
Quero ignorar
a minha e a tua fome
Quero os aplausos dos nossos corpos vadios
E todos os ruídos que eles provoquem, sadios
Quero a encenação dos personagens que encarnamos
Quando nos tornamos um
Quero uma luz leve e cansada
Te fazendo sombra pela metade
Quero seus urros, seus sussurros
Seja seu quarto, seja no carro
Seja o escondido, o proibido
Seja na cozinha com o pão a queimar
Seja a janela vizinha escancarada
Seja o nosso amor descarado
Seja o nosso amor seminu
Quero batizá-lo nas praias
Nas margens dos rios
Quero meu cio
Quero seu fraco assobio
Quero seu lento sorriso, a sua exaustão
Pra que se encerre, o nosso ato
Na mais plena e bela cena
O sóbrio espetáculo insensato
Que interpreto
Sem censura
sem veto
Onde nosso teto se faz o sempre
Que o nosso ingresso seja a tênue
Fronteira entre o sentir e o existir
Do que se fantasia eu
Do que se personifica ti

Pedro Rajão

segunda-feira, 9 de julho de 2018

Lançamento do livro "A construção do eu", de Laura Chaloub, no Espaço Cultural Olho da Rua



Exposição "Quarto de Hipólita", de Júnia Azevedo, em Niterói



Nix


Submundo das trevas
Fantasia, ilusão

Nuvens pálidas a envolvem na escuridão
Nua com longas asas de morcego,
Fanal na mão

Destino, sonho, e desespero
Símbolo de beleza e maldição.

Mãe dos deuses, Filha do Caos
Dos mistérios profundos
Rainha das trevas
Profeta da vida
Profeta da morte,
Respeitada e temida.

Arrastada, por cavalos negros,
Segurando a papoula
Na orelha minguante ou
Tatuagem na testa

Leva o céu, leva o véu – a noite
Toda vez que a vejo,
Olho seu reflexo no espelho.

Monique Nix