segunda-feira, 23 de julho de 2018

Soteriologia da besta


“Não mais haverá a humanidade: Apenas a guerra e o poder e a
vitória.”
William Blake De Jerusalém, capítulo 1

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Ninguém deu muita bola quando a cidade e as redes sociais amanheceram cobertas por propaganda. Um slogan rondava o dia: Ele chegará!
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Foi mais ou menos meio dia que ele chegou. Era um monstro, ou uma besta? Não era humano, não era máquina, mas uma foda entre os dois, talvez. 
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Primeiramente a besta profeta falou nas redes sociais. Vaticinou anos de servidão e vergonha para a raça humana.
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Os acadêmicos e cientistas eminentes ficaram felizes em poder publicar obras e artigos sobre a besta profeta que ninguém leu. Já os jornalistas davam em primeira mão as façanhas da besta profeta. No fundo ninguém levava muito a sério a sua profecia. Tudo parecia um show transmitido ao vivo. Todos riam e tiravam selfies com a besta profeta. 
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Os historiadores se apressaram a falar que não apenas um capítulo da história estava acabado, mas a própria história estava morta. Todos vestiram preto no dia do enterro da história.
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Os burgueses, militares, políticos, e religiosos não demoraram em reconhecer que o apetite por apocalipse de sua sociedade seria saciado por um único líder que reuniria o rebanho disperso e o comeria vivo para o seu lucro. Mas estavam enganados sobre a besta profeta. 
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A besta, metade homem e metade máquina, não viera trazer uma nova ordem, mas uma desordem primitiva há muito recalcada. Arrastava consigo uma horda de tolos e violentos, prontos para seguir suas ordens.
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A besta profeta fez o roque do seu rei: uma bombardeio midiático feito por robôs atacou a subjetividade mediana. Depois a besta profeta dominou o meio do tabuleiro: destruiu a economia local. Em seguida capturou a dama: criou uma crise nas instituições. E Cercou o Rei: gerou um o caos nos serviços públicos. E por fim o xeque mate: não havia mais um terreno comum que poderíamos chamar de sociedade, somente barbárie.
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Os mais pobres foram oferecidos como sacrifício à besta profeta. Mas a besta tinha fome e logo devorou a classe média e a elite se fodeu.
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Os joelhos da humanidade estavam dobrados pela besta profeta. Os fuzilamentos eram corriqueiros como os lixamentos nas redes sociais. Toda resistência era ridicularizada ou simplesmente se deixava cooptar, seduzida pela imagem da besta.
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Quando os poucos que sobraram se deram conta já estavam mergulhados na escravidão e vergonha que a besta profetizara. Acorrentados na desordem de suas pequenas tiranias todos eram servos da besta profeta.
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Após a grande escravidão a besta profeta partiu. Não se sabe o por quê. Não me pergunte, eu também não sei.
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Aqueles que sobreviveram pareciam orgulhosos de sua antiga servidão monumental. Celebravam. Criaram uma festa anual que marca o tempo, exalta o passado e os relembra de quando a besta profeta estava entre eles.

Rafael Caetano



Este conto será publicado em breve, ao lado de muitos outros contos do autor Rafael Caetano, no livro "Calendário de Distopias", pela Editora MultiFoco.

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