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sexta-feira, 25 de julho de 2025

Pierre, o flâneur — texto de Eduardo Moraes

Pierre acorda sempre às 5h em ponto já tirando a regata e as cafonas meias compridas. Suando, como de costume, por se recusar a ligar o ar condicionado. Pelo menos tinha aprendido a abrir as janelas para entrar um ar. Já solta duas ou três bufadas quando ouve o barulho da rua, corre à janela para espiar o que os transeuntes estão fazendo no estimado bairro da Glória. Resmunga enquanto sorri por dentro pela visão familiar de cada dia. Ele era um daqueles branquelos com a pele queimada do sol e, por mais que morasse no Brasil há muitos anos, sempre ficava com a bochecha vermelha, denunciando a sua cara de gringo. Usava aquele chapeuzinho de malandro que ornava perfeitamente com a sua barriguinha de chope, que, de fato, tinha muita história para contar. 

Quando chegou da França, vinte anos atrás, não tinha escolhido o bairro para morar, foi a Glória que o escolheu. Pelo menos era isso que ele contava quando queria romantizar a sua história no Rio de Janeiro. A verdade é que veio ao Brasil a convite dos sócios de Gaston Lenôtre para comandar a cozinha de um bistrô na Zona Sul carioca, 
métier que não vingou pela sua falta de assiduidade no trabalho. Rapidamente deram a cozinha na mão do ainda não tão conhecido Claude Troisgros, e Pierre ficou de mãos abanando.

Com dinheiro apenas para mais um mês no apartamento que estava no Flamengo, descobriu uma pensão simpática e barata na Glória, cuja dona, Jussara, hoje uma grande amiga, aceitou recebê-lo em troca de serviços gastronômicos até que ele encontrasse um emprego. Para ele, estava ótimo, ainda mais considerando que aquele quartinho na pensão era mais que o dobro do 
chambre de bonne no 9ème arrondissement de Paris em que vivia antes de chegar ao Rio. E a localização era ótima, bem perto do metrô da Glória, onde hoje funciona o hotel (motel) Love Time.

Só que ele não parava em um emprego sequer, de modo que seus pagamentos eram inconstantes e raros, mas assim foi levando por alguns meses. Sorte dele que Jussara aceitava, porque o motivo era simples: ele era um 
flâneur incurável.

Não andava com tempo cronometrado ou preocupado com o caminho mais rápido. Pierre ia vagando, passeando sem pressa pelas ruas, vendo a vida acontecer diante dos seus olhos, contemplando cada detalhe e se inspirando nas belezas que o Rio tinha a oferecer a ele diariamente.

E Pierre desempenhava com louvor todas as modalidades de 
flâneur. O vagabundo de Baudelaire. O flâneur investigador de Allan Poe. Ou o “cronista da cidade” descrito por Walter Benjamin. O azar é que nenhuma dessas modalidades era admirada pelos seus chefes.

Enquanto perambulava pelas ruas, nada mais importava. Ele só queria bater perna, dar um borboleteio e flanar, ora!
 Foi ficando mais simpático com o passar dos meses e por todos os lugares pelos quais passava lançava um sorridente “Bonjour, Monsieur”. Como a rotina era diária, para os mecânicos da oficina, os padeiros da rua e para o apontador do jogo do bicho, Pierre virou o “Seu Mêsiê”.

O pessoal brincava, mas no fundo gostava da sua formalidade, que nunca o deixou tratar os outros sem ser por “vous”, que, com o tempo, acabou virando "você".

Dizia a todos que tinha parado de fumar quando completou mais tempo de Brasil que de França. A exceção era quando estava irritado. E, mesmo sem muitos motivos para estar, todo dia ele dizia que alguma coisa o tinha tirado do sério, o que obrigava o homem a dar um traguinho no seu cachimbo. Sempre na surdina, para ninguém notar. Só que todo mundo notava.
 Quando alguém o acusava, já apontava para o pôster amarelado do “La trahison des imagesde Magritte que tinha nos fundos da pensão dizendo “Ceci n'est pas une pipe”.

Quando ganhava um cascalho a mais, pagava o que devia à dona Jussara, que nunca cobrava nem aplicava juros ou correção, e ia ao restaurante da esquina, que era simples, mas delicioso, para pagar uma cerveja e um jantar a ela.

Quem comandava o boteco e morava no charmoso apartamento que ficava em cima era Elba. Pierre, como 80% dos frequentadores, se apaixonou por ela. Classuda, inteligentíssima e muito bonita.

Elle est très jolie, cette femme, mais bien plus que ça”.

Ele achava muito irônico estar apaixonado por uma mulher que levava o nome da ilha italiana em que Napoleão foi exilado.

Ainda mais pelo fato de seu nome ter sido escolhido justamente pela raiva de sua mãe, Hilda, professora de História na rede pública, pelo pai, Seu Napoleão, um cara muito bonito que parecia que não envelhecia, e conhecido por ser um grande cafajeste por todo Rio Comprido e adjacências. Não era Bonaparte, mas também era um conquistador.
 Seu apelido? O Príncipe Etíope, pela sua semelhança com o craque Didi, da Seleção Brasileira, e que fez história no Fluminense e no Botafogo.

Elba começou a trabalhar muito cedo, sem nunca largar a escola, algo que sua mãe não perdoaria. Formou-se na escola e, a duras penas, também na faculdade de Administração. Depois de graduada tocou alguns negócios bem-sucedidos com uns colegas de faculdade, até tomar um golpe de um sócio.

Perdeu tudo.

Ficou mais cascuda, e também bem amargurada, de modo que perdeu o sorriso fácil, que só aparecia quando alguém tocava alguma do Paulinho da Viola ou do Jorge Aragão. Decidiu que seu novo negócio seria um restaurante simples, agora sem sócios. E que toda sexta e sábado teria samba. Afinal, no samba ela sabia que podia confiar.
 E deu certo. Muito certo.

Bancava a casa da mãe, que atualmente morava com seu novo marido, e também os remédios do pai, que tinha dinheiro para tudo, menos para os remédios do vitiligo, que o afetava muitíssimo por influenciar sua aparência, apesar de não diminuir em nada os casos que arrumava pelo Rio de Janeiro.

Um dia, bem na hora de fechar o recinto, Pierre apareceu por lá dizendo que era a décima vez que ia no restaurante e que queria chamá-la para jantar. Mas que nunca tinha tido coragem.

Ela disse que não era assim que funcionava, mas gostou da ousadia.
 Falou que ia pensar e subiu para casa com um sorriso no rosto, que Pierre não achou que tinha sido por sua causa, já que ao fundo tocava “Timoneiro”. Sorriu porque viu que as palavras eram sinceras e não mais um papinho de um gringo fetichizando uma mulher preta brasileira, como já tinha vivenciado dezenas de vezes.

Na décima primeira ida ao bar, ele renovou o convite, agora com mais convicção. Ela curtiu, mas disse que preferia um café da manhã. Ele topou, é claro, porque não podia perder a oportunidade, mas por dentro pensou não entendia muito bem essa história do 
petit-déjeuner se chamar, em português, “café da manhã” e ser mais do que apenas um café.

O romance vingou.

E, conforme evoluía, Pierre percebeu que não sustentaria por mais tempo nas condições de vida que levava. O nome de Elba era trabalho e o sobrenome, hora extra.
 Ela valorizava demais a labuta. E também não dava para levá-la para a pensão de Dona Jussara dia sim dia não. Ao mesmo tempo, não conseguia abandonar sua alma de flâneur. Enfim, tomou uma decisão: por Elba, acordaria mais cedo ou dormiria mais tarde para poder flanar antes e/ou depois do horário comercial e provaria a ela que sabia e podia trabalhar bem.

Elba falava pouco com palavras, mas muito com o olhar e percebeu a movimentação de Pierre, até que decidiu fazer uma proposta de trabalho. Ele comandaria a cozinha da birosca e lhe daria aulas de francês em troca de um salário mais do que justo, que o ajudaria a pagar suas dívidas na pensão. E tinha um bônus: se desse certo, ela o colocaria para dentro de casa definitivamente.
 Ele aceitou na hora.

— 
Ça va aller, mon cœur - puxando o “r” de propósito, porque sabia que ela gostava.

A convivência diária não começou fácil. Mesmo depois de muito tempo de curso, Pierre seguia jogando lixo no vaso, para terror de Elba, que ficava louca quando o via lançar na latrina os papéis que usava para sua higiene matinal. Os gastos com pão, manteiga, queijo e geleia aumentaram demais, e ela detestava abrir a porta do banheiro e se surpreender com ele fazendo xixi sentado, costume que pegou de seu pai alemão.

Falando em pai alemão, ele, que sabia a sua árvore genealógica de cor até a quarta geração, aprendeu que, no Brasil, que vive até hoje as mazelas dos 300 anos de escravidão, era normal que uma pessoa preta da sua idade não soubesse o nome e muito menos a origem dos bisavós. No caso de Elba, nem o nome dos avós maternos.

Pierre foi aprendendo a viver com Elba e botou na rotina os dois banhos diários. Tudo bem que eram banhos de gato, gelados e rapidíssimos, mas pelo menos tomava. Foi a condição imposta para ganhar um beijo quando descesse no bar, onde Elba já começava a todo vapor coordenando as rotinas do recinto. Antes mesmo das suas flanadas matinais.

Outro problema foi a mania de Pierre com tigelas. Ele usava todas da casa para as mais diversas utilidades. Sopa, geleia com pão e até café, que tomava apenas um por dia, acompanhado de um shot de 
pastis marseillais, sempre depois do almoço para não dormir em pé.

Apesar de algumas alfinetadas, ela o amava muito. E sabia disso pelo simples fato de seu lindo sorriso ter voltado para o rosto.

Amava o seu audível “
bon appétit”, que desejava para todos que servia. Achava uma graça o fato de fazer questão de comer na mesa posta e sempre esperar todo mundo se sentar para comer nas clássicas feijoadas de sexta-feira que serviam no bar para todos os funcionários, dona Jussara e outros amigos do bairro. Só detestava a nojenta mania de assoar o nariz à mesa e pediu para ele parar. Ele parou.

Pas de problème, mon chou!”

Eles viviam situações inusitadas nessa dinâmica franco-brasileira. Quando ele disse que ia “
faire le ménage”, ela deu um tapa na sua cara, sem ver que ele estava com o aspirador de pó na mão pronto para fazer uma faxina na casa. Ela pediu desculpas e explicou o porquê. Ele não só entendeu como concordou com a reação dela. Sempre romântico, antes de beijá-la, cravou:

J’ai envie de toi et seulement de toi”.

E nessa de ficar falando português e francês misturados, acabou se surpreendendo com a safadeza de Elba quando, em um momento íntimo, a moça, querendo dizer um “Beija Eu”, no melhor estilo Marisa Monte, lançou um “
baise-moi, que acabou de fato se concretizando no final da noite.

Mas essa, no caso, foi uma confusão boa.

Fora as clássicas de gênero. Era “a carro” (
la voiture) pra cá, “um árvore” (un arbre) pra lá e o lindo erro de falar “a mar” (la mer), que fazia o coração de Elba vibrar já que achava que o equívoco era a palavra “mar” ser um substantivo masculino.

Uma que amava também, e que Pierre continuava errando de propósito, era o uso dos verbos 
prendre offrir em tradução literal.

Quando ela passou a flanar com ele, volta e meia paravam para “pegar um café da manhã” (
prendre un petit-déjeuner) ou paravam em alguma loja em que ele “oferecia um presente” (offrir un cadeau) a ela, mas não só oferecia, dava!

E nessas andanças, Elba só se apaixonava ainda mais por Pierre, que militava pela 
flânerie dizendo a ela que seus antigos chefes o chamavam de vagabundo porque não se adequava ao sistema. Mas reconheceu que sem Elba, nunca teria entrado no prumo e que sua disciplina o fez ser um homem melhor.

Por isso, acorda para trabalhar com um sorriso no rosto. Todos os dias.

Com Elba, ele aprendeu a trabalhar. Com Pierre, ela aprendeu a flanar. E assim vão levando, na labuta ou flanando.

E amando.



Eduardo Moraes


quarta-feira, 23 de julho de 2025

BRAZILIAN DREAM

 

Preston Woolen e Worda Chandler trabalham como atendentes no Cow Palace-Restaurant em Shelbyville, Indiana. O jovem casal sonha em ganhar a vida no Brasil, a terra das oportunidades, mas terão que adiar seus planos.


Mariano Marovato

segunda-feira, 21 de julho de 2025

Lançamento do livro "Enquanto elas crescem no escuro" de Laura Assis, em JF, RJ e SP 💘💘💘




Enquanto elas crescem no escuro reúne cinco contos protagonizados por personagens femininas em momentos de ruptura. Em comum, o fato de que essas meninas e mulheres se veem diante de um descompasso entre o que são — ou desejam ser — e aquilo que o mundo parece esperar delas. Entre silêncios e desencontros, as narrativas traçam um percurso de inquietação, lucidez e transformação.

"Os poucos minutos que passava naquele elevador — um modelo dos mais antigos, com duas paredes que imitavam de modo ordinário a textura de madeira, uma porta sanfonada lenta e ruidosa e um enorme espelho cuja opacidade denunciava a passagem do tempo e a falta de cuidado — não eram lá muito agradáveis, mas isso era o de menos. Claro que não era fácil se fechar naquela velha cápsula de aço barulhenta, que subia e descia no espaço escuro do poço, pendurada por um cabo em que ninguém parecia querer pensar muito, mas que há tantos anos sustentava todos os dias o peso de dezenas de corpos e poderia, como tudo no mundo, se romper de repente. Entretanto, ela sabia que a verdadeira provação viria depois."

[trecho do conto "Vida em Marte"]


Laura Assis

terça-feira, 10 de junho de 2025

Sereiando, texto inédito de Indira Kupfer

 

Céu azul, dia lindo. Fiquei animada e logo quis me expor. Rapidamente peguei uma cadeira e coloquei no jardim, sentei e fiquei ali me nutrindo de toda aquela natureza. Quis apenas descansar, mas dormi e acordei com o adeus do sol se pondo. Senti meu corpo adormecido, sede e fome. Não conseguir fazer nada, há não ser deitar na minha cama. Ao despertar na manhã seguinte tive a intenção de levantar, entretanto, senti meus pés colados um no outro. Minha pele repuxava e a sensação de falta de água salgada era imensa. Ao olhar o meu corpo percebi um forte brilho, fechei os olhos por alguns segundos, e ao abrir novamente pude perceber que eram escamas.


Indira Kupfer

quarta-feira, 30 de abril de 2025

Jenipapo


Vem cá, desculpa! Vamos esquecer tudo o que aconteceu ontem à noite. Eu não entendi o que você quis dizer e você não entendeu o que eu falei. Tudo não passou de um mal-entendido. Apaga da mente e do coração. Temos vivido lindos dias juntos, não vamos deixar que uma noite estrague tudo. Hoje é um novo dia, vamos fazer dele o melhor!

Nada de ressentimentos. Senti minha cabeça girar e logo respondi: vamos! Escolhemos ir à praia das Flores. Enquanto estendia minha canga na sombra, Paulo corria para o mar. O vento estava agradável. Deitei e, olhando as folhas verdes da amendoeira, meus olhos começaram a fechar. Aos poucos fui lembrando do que tinha acontecido na noite anterior.

Estávamos felizes pelo festival de forró. Animados, paramos na primeira barraca. Eu sempre pedia o mesmo; licor de jenipapo!

— O mesmo Betina? Não quer experimentar outro?

Mais um copo de licor, dois, três...

— Oi, Paulo! — André era um amigo local de Paulo. Fomos apresentados. André nos olhava de um jeito como se quisesse perguntar algo.

Depois de algumas rodadas, por fim, o último copo de licor. Seguimos para a próxima barraca.

— Betina quer tapioca com o quê?

— Banana com coco queimado!- Percebi que Paulo teve a intenção de perguntar: coco queimado? Mas desistiu.

— Betina, você é linda. - Agradeci com um sorriso.

Vamos! Mais um licor. Lá vem! Era o trio de forró. Seguimos felizes como se estivéssemos no carnaval. Paulo era tímido e não sabia dançar, mas bastava beber que a timidez ia embora. O trio parou na praça— Agora sim! Vem dançar Betina.— Apesar de estarmos bêbados, eu conseguia perceber as pessoas apontando em nossa direção e rindo.

Despertei às gargalhadas só em lembrar da cena. Olhei para o mar e lá estava Paulo me chamando para ir para a água. Mas tudo o que eu conseguia era rir ainda mais. De cansada voltei a deitar na tentativa de lembrar do fato principal, mas tudo o que vinha em minha memória eram “flashes". Depois de algumas horas dançando fomos até o bar do coqueiro, local em que todos vão depois que acaba a festa.

— Linda, essa é a última rodada de licor, depois vamos embora. — Paulo foi ao banheiro enquanto eu o aguardava. Foi tudo tão rápido que quando percebi uma pequena confusão já se formava. Aos gritos tentei puxar Paulo. Depois de muito consegui levá-lo a uma rua menos movimentada. Tento lembrar o motivo da confusão, mas não consigo. Só lembro que nesta rua menos movimentada nós desabamos. Não sei se pelo efeito do licor ou... Choramos. Senti as gotas rolarem pelo meu corpo.

— Betina?

— Oi! Nem percebi você voltar do mar. Está me molhando!

— São gotas de água salgada. Estava sonhando acordada?


Indira Kupfer

terça-feira, 22 de abril de 2025

VALA DE INDIGENTE


Tenho em mim o desejo profundo de ao menos uma vez na vida morrer uma morte de mulher pagã. Mas não quero jogar-me de um prédio ou na frente de trem, meter a cabeça em forno, afogar-me com pedras esquecidas no bolso, nem suicidar-me com um tiro por amor a ninguém. Não tenho muito de Ana Kariênina em mim. Talvez de Ofélia eu tenha um pouco mais. De Ofélia, sim. Também serei enterrada como indigente. Quero morrer em meio às flores, num delírio controlado. Ao menos uma vez. Minha tristeza será tão feliz quando meu único dever for o de deitar-me na relva ao relento e esperar a morte. E na espera, talvez, viver o silêncio. E no silêncio, com certeza, sentir o tempo. Os insetos me atravessam sem devorar-me, pois eles sabem que eu já devoro a mim mesma. A cobra rasteja por entre minhas pernas, sem se perceber, a onça me usa de travesseiro. E meus cabelos se desprendem em tufos que são presentes para os pássaros. De pouquinho em pouquinho eles me convidam para dentro de seus ninhos. E eu entro. Tão linda é essa minha morte. Peço para que nunca termine. E rezo, pois as mulheres pagãs também rezam. E Deus me atende. Meu sangue é doce néctar para as abelhas e morcegos que me prolificam. Também em mim respira toda uma floresta. E quando seco, petrifico. Por toda extensão de minha pele, então, o verde vai consumindo. É o musgo que finge me preencher e me esconde do restante do mundo. E eu não sinto mais nem fome, nem frio, nem sede... não, sede sim. Eu bebo dessa sede. Mas não medo e não nada. É tempo de morrer e eu sei muito bem como fazer isso.


Giovanna Ramundo

terça-feira, 15 de abril de 2025

, a palavra que eu reúno em pequenas embarcações ,


,   o anonimato pode ser a pele macia de que se precisa   ,   ser um desconhecido e não ter compromisso com a fama pode ser ótimo   ,   quem está aí?   ,   perguntou o ciclope   ,   foi astúcia de Odisseu responder: ninguém   ,   salvou-lhe a pele definir-se assim   ,   eu visto o anonimato como uma pele que acaricia   ,   aproveito a pele do anonimato para isolar um ambiente interno que insiste em escapulir   ,   as escapulidas nem sempre são fáceis  de  administrar   ,   um dia o Pachá me perguntou se eu não ia publicar e eu   ,  com seriedade experimentei a ideia de não querer   ,   encontrei uma verdadeira intenção de esperar   , anonimamente arranco com firmeza   ,   apenas visto essa pele macia   ,   talvez como Odisseu eu esteja esperando o mar aberto para gritar para o ciclope meu nome   ,


Valéria Grassi


(Este é um trecho do livro Intermitências apenas, publicado pela editora Cambucá, e segue a diagramação proposta pela autora)

segunda-feira, 14 de abril de 2025

Mate, texto de Raquel Naveira



Faz parte de nossa tradição tomar mate. Chimarrão é o mate cevado, sem açúcar, regado a água quente. Tereré é o refresco, bem gelado. De acordo com o clima, passa-se do chimarrão ao tereré.

Para tomar mate é necessário adquirir uma cuia, morena e matuta, uma bomba ou bombilha e a erva moída, fina ou grossa, nativa ou pura folha defumada.  Tudo fica semelhante a “um coração verde com uma artéria de prata”, conforme poema do gaúcho Aparício Silva Rillo.

O ideal é tomá-lo numa grande roda, sob um laranjal. Ajuda a fazer e solidificar amizades.

Se houver os serviços de alguém disposto a “carregar mate”, ótimo. “Carregar mate” significa segurar a chaleira, passar a cuia de uma mão para outra, de uma boca para outra, respeitando a vez de cada um, a animação da prosa e o ritmo dos sorvos. Levar a chaleira lá dentro para esquentar de novo no fogão, quando a água começar a esfriar, para não azedar o mate.

É bom que haja no céu um sol bem vermelho e uma poeira cor-de-tijolo envolvendo tudo.

Se for na hora do quiriri e algumas estrelas perfurarem a tarde com suas pontas de lata, a conversa será mais lenta.

Se alguém falar alguma frase, alguma palavra em guarani, como “che-kambá” ou” cunhataí”, dará mais sabor à erva.

Importante mesmo é que haja um clima de comunhão, de cachimbo da paz, tudo muito morno e quente.

Tomo mate toda tarde com meu amigo, antes do sol se pôr, antes de acendermos as luzes, no lusco fusco. Encho a cuia, derramo erva verde num canto, coloco galhos floridos de marcela. Gosto daquela cuia enfeitada de pedras vermelhas, preciosas como as daqueles anéis que a  gente comprava nos bolichos da estrada. Depois vem a água quente, escaldante, saindo da chaleira de louça verde esmaltada, vinda do Paraguai.  Meu amigo se anima, conta histórias, enquanto o mate amargo conforta seu coração. Quando meu amigo toma mate e eu tomo mate com ele, nós nos fazemos companhia. É como se um manso regato escorregasse aos nossos pés.

Melhor que mate, só a serenidade e a constância, no coração.


Raquel Naveira

sábado, 12 de abril de 2025

As bonecas só falam "mamãe" — Eduardo Moraes


Depois de uma hora e quinze no busão, Danilo chegou em casa da escola. Largou a mochila em cima da mesa — o terror de Perla: “trazendo sujeira da rua para a mesa em que a gente come, meu filho” — e foi para o quarto depois de mais um simulado para o ENEM. Ele tinha ido muito mal e sabia que seria salvo apenas pela redação e pela química. A primeira, pelo tanto que gostava de ler e escrever, a segunda, por tudo que aprendeu com a mãe, que tinha estudado só para ensinar a ele. 

A pressa era tanta que nem reparou que no sofá, Perla estava prostrada, imóvel, mirando a televisão desligada.

Depois de duas horas de sono, o garoto acorda pelas 19h e a encontra na mesma posição, da qual não saíra desde às 14h. Ainda meio sonolento e sem notar os olhos vermelhos da mãe, Danilo deita em seu colo, sem dizer uma palavra. A mãe afaga seu cabelo, mas não consegue sustentar o momento carinhoso. Não chorou porque já estava seca, depois de ter ficado aos prantos desde as 4h da manhã, quando foi buscar uma água na cozinha de madrugada e olhou para as covardes palavras que, em resumo, diziam: “Não volto mais”. 

O garoto finalmente percebe a cara da mãe, e ela, só com o olhar, suplica o seu silêncio. Danilo, que voltou a aguçar a sua sensibilidade, abraça a mãe bem forte, que o afasta pelo simples fato de seu toque ser idêntico ao do progenitor que não mais voltaria a ver. O adolescente entende, mesmo sem saber o motivo, e se recolhe. Sai em busca do pai, que não terá nome nesta história, por não merecer e por ter escolhido riscar o seu nome da vida de Perla e Danilo. O garoto não o encontra, achando que seria mais um episódio de bebedeira e briga no bar da esquina. 

Mas desta vez a atitude, igualmente frouxa, tinha sido outra. Ele suspeita quando vê a sua gaveta do armário vazia, mas confirma quando abre a portinhola sob a imagem da Nossa Senhora de Fátima da sala e descobre que as suas economias não estavam mais ali. Faltava pouco para inteirar o valor da primeira visita de avião do menino e da mãe ao avô em Fortaleza. As notas e moedas, que eram os trocos de lanches e das contas pagas na lotérica, agora estavam na mão do homem que apenas o colocara no mundo.

E lembrou da história da professora, que o marido deixou com três crianças pequenas para ficar com a amante e nunca mais voltou. Do seu melhor amigo da sala, que o pai desprezava porque era gay. Da sua namorada, cujo pai pagava uma pensão miserável e um jantar por mês para calar a sua boca, enquanto os filhos do segundo casamento viajavam para Angra dos Reis e tinham um ótimo plano de saúde. E de outros colegas com pais que bebiam e sumiam ou bebiam e batiam, que traíam sem dó, pais ausentes, apesar de residentes na mesma casa.

O menino, quando olhava à sua volta, com tantos exemplos claros, inclusive o seu, notou que, nas histórias de abandono, eram as mães que ficavam. Quase sempre.

Danilo percebeu que, ainda nos tempos atuais, seguia muito fácil ser pai.

Pela primeira vez, aos 16 anos de idade, pensou no quanto dá trabalho pensar no cotidiano de uma criança, desde o momento em que acorda até quando vai dormir. E também perguntar o que chateia, buscar na escola, levar ao médico, dar carinho e tudo mais que envolve o dia a dia de uma criança. E que isso parecia ser um extra aos pais, e não a obrigação que era às mães.
Deve ser por isso que as bonecas só falam “mamãe”. 

Danilo notou que aos pais que tinha como referência, quando encheram o saco de ser pai, ou melhor, de ser o que se convencionou ser tarefa primordial da mãe, bastou inventar uma desculpa qualquer e seguir sua vida, por algum motivo banal dito com tom de prioridade máxima. O fim do amor, o início de outro, a carreira, a incompatibilidade da vida paterna com a vida escolhida ou o desejo de liberdade. Não importa: pais abandonaram ou foram embora esquecendo o pedaço de si que deixaram no mundo para outra pessoa cuidar. Outra pessoa não. Para a mãe cuidar. Perlas, Marias, Tânias, Adrianas, Simones, Júlias.

O menino, instantaneamente mais cascudo, conseguiu convencer sua mãe a tomar um banho, ligou para sua amiga do trabalho explicando a situação e a colocou para dormir.

Acabou seu dia tentando acreditar que ainda podia ser amado. Tentando não pensar que a culpa era dele. E recuperar a confiança. E colocar na cabeça que não deveria ficar tentando recuperar a atenção e o amor do pai. Já que o amor nunca existiu do lado de lá.

Antes de pegar no sono, sem chorar um minuto sequer, cravou uma profecia a si mesmo: se um dia concretizasse o sonho de ter um filho, não seria pai.

Danilo queria ser mãe.



Eduardo Moraes

quarta-feira, 9 de abril de 2025

Armandinho


Nas noites das sextas-feiras, 45 minutos depois da hora marcada, o sorriso engravatado surgia na esquina. Nem um minuto a mais ou a menos. Chegava sem pressa, sapato bicolor, chapéu de palha, um vape no canto da boca. À sua espera, a dama toda de branco, obrigada a reconhecer a única qualidade daquele homem. Armandinho era pontual nos seus atrasos!


Teresa Garbayo

domingo, 6 de abril de 2025

Técnica singular para inflar balões


O primeiro sai algo banana ou salsicha. Outro toma forma de um camelo, duas corcovas oblongas. Ora, sim, um zepelim um tanto tímido. Murcho como uma fruta. Disforme feito um sonho. Os meninos também acionam pistolas de água, como ensaiando a ejaculação. E atiram dardos ao centro do alvo, sempre um orifício escuro. Empinam pipas com longas caudas, seus espermatozoides no céu. “Oi”, a prima e seu sorriso, surgindo à porta. Os olhos dele são a contrapartida de dois seios completos.


Perce Polegatto

segunda-feira, 10 de março de 2025

Espelho


Tirei as sandálias e, lentamente os meus pés tocaram aquela areia fofa e molhada. Os meus dedos sumiram em meio aos grãos. Como uma descarga elétrica, o meu corpo desligou e ligou. Certifiquei-me que estava de pé. As gotas de chuva caíram como diamantes e ao tocarem o mar transformavam-se em grandes e múltiplos aros de prata entrelaçados. Eu ainda estava de pé. Conectada àquela natureza, não consegui resistir. Caminhei delicadamente em direção ao mar. Mergulhei! Mergulhei mais fundo que pude e ao tentar voltar à superfície, algo impedia-me. Imóvel. Sem ar. Queria gritar! Berrar! Ar! Desliguei. Na tentativa de gritar pela última vez busquei forças. Acordei.


Indira Kupfer

domingo, 2 de março de 2025

Dama da noite, de Marilena Moraes


Naquela noite, não houve aula no curso supletivo. Os alunos comentavam, 
atônitos, a manchete do jornal popular que passava de mão em mão.

"Exorcismo na boate" — "Professora de dia, stripper à noite, Bernadete 
dos Santos, 30 anos, também conhecida como Lucimar, foi assassinada por seu aluno, José Tenreiro, inconformado ao descobrir a segunda identidade da professora do curso supletivo que frequentava. Apresentando sinais de desequilíbrio mental, Tenreiro foi preso em flagrante, tendo ainda nas mãos o punhal de prata que cravou entre os seios da bailarina/professora em meio ao show da boate Clamores."

Era o texto da notícia que um engraçadinho fizera questão de colar no quadro-negro, contando a morte trágica da professora, Bernadete de dia, de noite Lucimar.

Ar de beata, rosto lavado, poucas palavras, tinha nome de santa e cheiro 
de talco. Dava aulas no supletivo, num bairro de gente simples. Com os alunos, o relacionamento era apenas cordial.

Ninguém poderia imaginar que a professora pacata, de roupas discretas, 
saía dali direto para Copacabana, onde, às três da manhã, estrelava o show da boate Clamores.

"Sex alive" — anunciava o neon. Maquiagem pesada, óleo no corpo, 
Lucimar se roçava no parceiro, sem sequer olhar para o seu rosto e sem encarar a plateia de homens agitados, que gritavam palavras que ela fingia não ouvir. Uma amiga a levara para a Clamores, convencendo-a de que podia fazer bom uso do belo corpo. Se o dinheiro das aulas era pouco, as notas verdes dos turistas ajudavam bastante no orçamento.

Religião? Nunca tivera. Pudor? Há horas em que a necessidade fala 
mais alto. Ao fim de alguns meses, o prazer de estar no palco, nua e exposta, passou a ser a razão mais forte de sair toda noite do Méier direto para a Princesa Isabel.

Não poderia, no entanto, imaginar um aluno na plateia. Tenreiro 
voltou na noite seguinte e em outras tantas noites. Reconhecera a professora na mulher de roupa colante e meia arrastão que saía da boate quase de manhã, pendurada nos sete centímetros de salto, abraçada a um gringo qualquer.

Passou a segui-la, e a ideia de purificá-la, fazê-la voltar a ser apenas a professora, tornou conta dele. Limpar seu corpo, salvar sua alma foi a missão a que
se propôs.

Hoje, ele está internado no manicômio judiciário, constatado o problema mental.

A professora foi homenageada na entrega dos diplomas, mas os alunos preferiram louvar suas qualidades de dama da noite, a bailarina de pernas bem feitas, seios redondos e sexo depilado.

A comemoração, na Clamores, correu por conta da casa.


Marilena Moraes

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

Hanishira e a moto amarela sobre a mesa do imperador


Hanishira ouviu o ronco do motor e isso fez com que ela saltasse da cama, de um só pulo e 
se pusesse em frente ao espelho do banheiro. Jogou, com as duas mãos, água gelada no rosto para ativar-se.

Era ele, tinha certeza, acabara de dobrar a primeira ladeira, virara a esquina lá em baixo. 
Subiu e ela o ouviria mais uma vez quando contornasse a segunda curva. Ele contornou. Estava mais perto. É ele! Sem dúvidas é ele: ele e sua moto amarela. Pensou apertando involuntariamente as pernas. Que sensação gostosa que fazia o motor da possante amarela enquanto pousava nela sua buceta! Só de pensar nisso ficou com muito desejo. O que esse cara havia feito com ela? Que tipo de feitiço era aquele?

A água fria escorreu pelo seu peito que enrijeceu. Ela tirou a calcinha e a camiseta de malha e colocou uma camisola transparente e um roupão com motivo de gueixa, queria deixar bem entendido, que estava ali para servir. 

Ouviu o motor silenciar em frente à casa. Rapidamente aplicou um blush e um rímel, 
apenas para ressaltar o olhar e ganhar uma cor. Ele assobiou. Isso é bom, lembrou que a campainha está com defeito. É sinal que pensou em mim, que tá ligado. Hoje, nada daquele papo tântrico, hoje eu parto pra cima dele e com sorte ele será o cara que terei coragem de falar: Vai, come a minha buceta! Abre ela todinha! Pronunciar essas coisas lhe enchia de tesão. Mas raras foram as vezes que ousou pronunciar na hora do ato sexual a palavra buceta. Só na cabeça, pensava, mas sempre usava outra nomenclatura: periquita, pão doce, preciosa, nomes assim. Talvez porque julgasse que uma mulher não deveria gostar de buceta, que pega mal. Que esse é um direito apenas dos homens. Mas ela adorava essa palavra, ficava louca. Mas até então só conseguia pensar nunca falava.

Uma amiga dizia que quando ela encontrasse a pessoa certa ela teria coragem de ser ela mesma. De se entregar. E aí você não vai ter mais vergonha de nada. Pensava todas essas coisas que lhe traziam um sorriso tímido e safado à cara enquanto atravessava o corredor em direção a porta de vidro que deixava vazar a luz do sol, ela caminhou em direção a claridade até que nada mais pudesse ser visto. Ficou cega completamente ao abrir a porta. Ele entrou, ela abriu os olhos.

— Você me disse que acordava cedo.

— Tô acordada. Tava lendo na cama.

— Tem hoje tempo pra praticar?

Tomou Hanishira nos baços e a beijou. Quando esses lábios se desgrudaram ela pôde 
sentir, o gosto do abacaxi com hortelã e o celular de João vibrar no bolso. Ele desligou automaticamente o que fez com que ela se sentisse muito importante.

— Quer um café?

Ofereceu ao passar pela cozinha.

— Vim te levar até a Mesa do Imperador.

Ela teve um sobressalto. Não esperava sair, esperava voltar para cama e se enroscar com ele.

— Eu devo me trocar.

— Só se você quiser.

Ela adoraria ter coragem de montar na moto daquele jeito, mas não era assim tão 
descolada. Correu até o quarto e teve vontade de colocar o guarda roupa abaixo. Uma saia e uma blusa surgiram como num passe de mágica, meias e a calcinha. De volta à sala. João a tomou pela mão e a conduziu até a moto. Ele sabia a pressão certa ao lhe dar a mão. Na noite do último encontro enquanto dissertava baixinho em seus ouvidos as maravilhas do sexo tântrico. Ele segurava pressionando sua mão de tal maneira que a fazia delirar. E também teve aquele momento dos pés, onde se tocaram, pé com pé. Que só em pensar já fazia Hanishira ficar totalmente molhada. Ao sentar-se na moto, a sensação do motor
ligado, vibrando. Que delícia!

Sentiu sua buceta ser pressionada levemente como se no assento tivesse ali um encaixe perfeitinho então tudo que ela pode fazer foi prender seu condutor levemente com as pernas que sofriam pequenos espasmos e Hanishira abraçava João passando a mão em seus peitos peludos. O vento na cara e a sensação de liberdade. Ela usava uma saia de malha fina. Cortaram as ladeiras como quem corta nuvens. Cruzaram as montanhas das paineiras. As montanhas do Rio e seu cabelo sobrando em seu capacete coquinho amarelo. Ao vento. E Hanishira recebendo o perfume de seu shampoo de ervas.

João era um tipo diferente, parecia um indiano, tinha aquele moreno, negro meio cinza, meio cravo, meio canela. Um indiano mesmo. Só que brasileiro. Desde a primeira vez que Hanishira depositou os olhos nele, já ficou interessada. Seu palpite era de que ali tinha uma coisa gostosa.

De vez em quando ele falava algo para ela gritado para tentar ser ouvido apesar do barulho 
infernal que produzia a possante como ele mesmo a havia apelidado.

— Respira, deixa o ar entrar! Lembra da primeira lição do sexo tântrico?

Ela repetia.

— Deixa o ar entrar!

— Deixa tudo entrar!

— Aí que delícia!

— Vou te comer hoje todinha.

E ela tremeu. Pela primeira vez sentiu uma pontadinha de medo, mas tratou de afastar de si a síndrome de patrulha da cidade, de que todos os homens incríveis que se aproximavam de mulheres comuns são psicopatas em potencial, ou ao menos tem potencial para ser. E para aplacar o medo apertou mais forte seus peitos contra as costas de João, afastou-se um pouco e ficou lhe roçando os bicos e o pressionando com as pernas, aproveitando aquela trepidação do motor que para ela: Não vou esconder aqui, estava há alguns meses sem trepar, poderia gozar a qualquer momento. O que seria um milagre, por que ela não era assim de gozar rápido. Isso nenhum homem podia falar dela. Sempre dera trabalho aos amantes mais dedicados. Precisava ser trabalhada para gozar. Mas aquele a quem ela agarrava pela cintura agora, já havia lhe trabalhado toda uma noite, e nem se quer a tocara. Havia lhe revelado em segredo as doze lições do sexo tântrico. Em um livro de bolso que ele sacou da pochete. Esse sabia mesmo do que gosta uma mulher. Havia estado a ponto de derreter nos braços daquele homem, só de toques nas mãos, massagens energéticas. Hoje ela sentiria o gosto dele.

Assim que chegaram à pedra do imperador, o sol estava quente. Nem mesmo os lagartos, que são atração do lugar, se atreviam a transitar pelo local.

Ele lhe ofereceu um pouco de água que trouxera em um cantil. Eles beberam e beijaram. E aquela água que a princípio gelada pareceu transformar-se em ardente. Ficaram ali pegando fogo. Ele meteu a mão pela blusa de Hanishira e colocou seus peitos pra fora, enquanto os lambia. Seus peitos eram fartos, mas de bicos pequenos que ao enrijecer quase desaparecia. João dava pequenas mordiscadas puxando os bicos para fora.

— Pode chegar alguém.

— Se chegar alguém eu arranco a tua roupa toda.

Ele já falou isso metendo a mão por debaixo da saia e puxando sua calcinha para baixo pelo fundo, riu de satisfação ao perceber que aquela bucetinha já estava bem molhadinha em ponto de bala, como dizem os mais safados. Pediu que ela colocasse as mãos no chão, só pra que ele pudesse olhar por esse ângulo.

Porque contou para ele a fantasia de se exibir? Sentia-se amedrontada e excitada pela possibilidade de realizar uma fantasia. Nunca imaginou que tivesse coragem, mas estava ali, pronta.

Ele era muito safado e ela adorava aquilo. Não estava sentindo medo ou vergonha e ela estava ali na rua. Tudo bem uma rua deserta, mas é rua. E ela estava com as mãos no chão, sua bunda para cima com um cara safado passando mão nela. Será que teria coragem de contar para alguém? Mas se não o fizesse teria valido a pena? De certo suas amigas mais íntimas teriam dificuldades até mesmo de acreditar no acontecido. E até o momento quase nada havia acontecido. Mas o que ela esperava? Sua cabeça estava quente como se tomasse doses de cachaça ao meio dia. Estava vermelha de estar naquela posição que no fundo era ridícula, mas que não tinha mais saída a partir do momento que aceitou a brincadeira, estava com a cara toda vermelha e por certo também vermelha estava sua querida companheira buceta. Que pulsava ao sol, após ter sido raspada quase que por completo logo após o término do primeiro encontro. João havia dito que raspadelas eram de sua preferência, permitiam sensações mais próximas, deixou escapar fingindo sem querer. Fazia parte, esse sabe como jogar. Ela não se arrependeu, podia sentir o sol lhe queimar e as mãos de seu motoqueiro, dedo a dedo deslizando por sua buceta e agora não parava de repetir para si: Vai, desliza na minha boceta inchada e quente.

Falava baixo, mas desejando falar para fora, enquanto se mantinha de bunda para cima 
abriu os olhos e deu de cara com os olhos de João. Ele estava agachado olhando para ela, o mundo de cabeça para baixo, ela o via e sentia a sua mão. Ele colocou na própria boca uma folha de louro que tirou do bolso e levou uma outra a boca de Hanishira. 

Ela percebeu que ali, ele dava um salto a mais em suas etapas da conquista. O que ele 
poderia querer mais? Já estava semi nua, entregue. É por isso então, ele quer magia! E teve as mãos dele dentro dela. Enquanto mastigou o louro amargo.

— Vai te libertar.

Ele sumiu da sua vista e lhe chupou forte e demorado. Antes de ajudá-la a levantar, sorriu ao perceber que ela estava muito vermelha e teve vertigem quando o sangue voltou a circular para o corpo. Ele a aparou e a carregou até a mesa, a grande mesa do Imperador. Levou a mão de Hanishira em seu pau.

— A grande pedra!

Ela não teve tempo de falar nada, Ele tapou lhe a boca e ela gostou. E pedia para ela 
manter os olhos abertos e ela fazia esse esforço. E se esforçou tão bem que suas pálpebras pouco se mexiam, estavam fixadas nos olhos negros de João, que agora tinha olhos e pau. Para ela, ele tinha apenas olhos e pau. Ela deitada na pedra, ele segurou suas pernas no ar e com jeitinho nem muito delicado, nem muito bruto, certeiro, meteu seu pau que entrou deslizando, encaixando em cada curva por dentro dela. Momento já sonhado por Hanishira.

Ela então não conseguindo mais conter falou em boa altura: Mete na minha buceta! E ter 
dado esse grito à fez jorrar para fora, como se ele despertasse nela sua verdadeira vocação. 

— Tô metendo!

E meteu. Direitinho, encaixadinho como nunca houvera sido. Ela cravou os dedos sem unhas pelo vício de comê-las, nas costas dele. E acompanhava seus movimentos como se já tivessem dançado aquela dança muitas vezes. Os olhos dele brilhavam. Ela concentrada neles e dançando em movimento continuo com o pau de João dentro dela. Teve a sensação de estarem sendo vigiados, olhos para todos os lados. Ele dizia para que ela não se preocupasse. Seus olhos fecharam e se deixaram levar. Ele era como um polvo estava dentro dela, na cintura, na bunda, no peito, estava em suas orelhas, no pescoço, pressionava levemente os dedos em movimentos circulares passeando ora em seu clitóris, ora em seu prêmio, como fez questão de apelidar na primeira vez que tocou nele ainda quando estava com bunda para o alto.

O sol quente sobre a pedra e ela com suas costas sentindo isso como uma dose extra em seu prazer. O movimento foi ficando intenso e mais ritmado, era a primeira vez que mesmo por baixo tinha liberdade de se mover. Como ele conseguiu a aquilo? Metia nela e ela mexia esfregando-se de maneira que os dois foram levados ao momento mais sonhado dos amantes, morrerem juntinhos a sua pequena morte. Ela soltou um gemido agudo e abriu os olhos num estímulo ao êxtase daquele momento e percebeu os olhos na árvore que pendia sobre a ponta da pedra, um punhado de olhos de lagartos os olhando. Uma árvore de lagartos. E foram abrindo os olhos um a um com o grito de Hanishira e se sentindo acuados mudaram de cor e saltaram sobre as costas de João e sobre as pálpebras coladas desta moça, e sobre suas pernas e braços e pisotearam o casal, numa chuva de lagartos. Os dois ficaram ali petrificados. Demorou ainda um pequeno tempo para que conseguissem levantar. Ele saiu de cima dela em silêncio. Ela colocou a roupa, mas não achou sua calcinha. Ele ligou a moto e a chamou para subir. Quando ela colou seus peitos nas costas dele, ele virou sua cabeça levemente para traz. E perguntou se estava tudo bem. Hanishira balançou a cabeça afirmativamente. Ele colocou o braço para trás e segurou-a na buceta. Deu três leves tapinhas. Hanishira sorriu.

— Isso nunca tinha me acontecido. Não tão assim.

— Você é esquisito. Adoro o medo que sinto de você, Imperador.

Ele arrancou a moto ladeira abaixo. De vez em quando entre uma curva e outra ele dava 
gritos.

— Lagartos filhos da puta! Eu sou seu imperador e lhes ordeno que cada um procure sua própria mulher para comer!

Hanishira ouvia essas besteiras e se apaixonava cada vez mais. Ria e sentia João escorrer de dentro dela, ia chegar em casa com a saia toda suja. O amor é sujo.

Na Jardim Botânico engarrafada, ela continuava seu ritual de roçar os peitos nas costas de 
seu condutor. Os dois riam de prazer.

Depois desta trepada nunca mais voltaram a praticar nenhuma das doze lições de sexo 
tântrico, mas enquanto juntos, mantiveram o habito de se devorarem em lugares públicos.


Luciana Bezerra

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Os Ratos Embaixo da Cama de Selma


Encontrei Selma sentada no primeiro banco do Parque. Olhava fixamente para o portão, o braço sobre o encosto, os dedos com um cigarro espetado que se tragava sozinho, as pernas cruzadas, com uma sacola de compras, onde estavam suas roupas, repousando no assento. Apesar do rosto enrugado do tempo e dos abusos, seus olhos cor de mel lembravam uma beleza que ainda não havia se despedido por inteiro. Parei a sua frente, seus olhos continuaram no portão. Retornou de seus pensamentos quando o cigarro queimou seus dedos, mesmo assim, não expressou dor, havia superado a sensibilidade física desde muito tempo; arremessou o cigarro longe, puxou da sacola mais um, acendeu e não me olhou.

É de se entender porque não me olhava. Eu havia saído de casa há 2 semanas, sem despedida, sem comunicado, apenas o covarde desaparecimento. Correu os bares e muquifos por onde andávamos atrás do meu paradeiro. Me encontrou saindo do Cine Ópera, um cinema decadente no centro antigo da cidade, onde os desocupados iam para passar o tempo, praticar suas insanidades e enganar o suicídio; aliás, foi lá que nos conhecemos. Selma me seguiu até o quarto que eu estava ficando, colocou por debaixo da porta um bilhete escrito local, data e hora do encontro, “Sem reminiscências, Selma”. Quando a conheci, não era tão velha como agora, coisa de 8 ou 15 meses atrás. Se sentou ao meu lado por engano, me chamava de Herleson, os olhos a meia pálpebra, a cabeça mole caindo para os lados, o balbucio, a saliva seca nos cantos da boca... Me mantive ao seu lado conversando, chamado de Herleson. Quando nos entediamos, a levei para comer uma quentinha a 2,50 no restaurante na entrada do cinema, ela estava faminta, eu também. Em uma das colheradas, recobrou a consciência, me analisou por um instante e voltou a comer. Depois que terminamos, caminhamos em silêncio até a Praça da República. No caminho entramos em um depósito de bebidas, ela pediu duas buchudinhas e duas carteiras de cigarro e me olhou, consenti com um piscar de olhos. Sentamos em um dos bancos da praça e ficamos observando o movimento. Ainda era cedo, o trânsito ainda tumultuava, as travestis que circulavam pela praça ainda eram em pequeno número. Algumas passavam e nos davam boa noite ou pediam um gole da bebida, atendíamos a ambas solicitações. Quando aumentaram de número, eu e Selma começamos a brincar imaginando seus nomes, ela era muito boa nisso; me confessou que frequentemente tinha sonhos eróticos com travestis e que quando o realizasse, desejava que a chamasse de Cyla Summer; e também contou sobre um sonho estranho em que ela dava um seminário em um navio naufragando, sendo que ela não poderia terminar a palestra até que todos estivessem afogados, disse que isso lhe havia concedido a habilidade de respirar sob as águas. Selma tinha doutorado em Semiótica, e não importa como ela, ou eu, chegamos até ali.

Depois, novamente entediados, fomos atrás de um quarto para passar a noite. Perambulamos um bocado até encontramos um que os dois pudessem pagar, esses lugares eram abarrotados de pessoas que queriam apenas esticar as costas com a devida atenção, e assim fizemos. Nos deitamos, Selma se virou para o seu lado, eu para o meu, e adormecemos com as costas grudadas. Ao acordarmos, decidimos permanecer no Sete-Sete – esse era o nome do lugar –, dividindo as contas igualmente, nos despedimos e cada um foi cuidar da sua vida aquele dia.

Nunca me interessei em saber o que Selma fazia para conseguir dinheiro, ela também não me perturbava com o assunto, desde que ambos cumprissem com sua parte no acordo. Nosso relacionamento se resumia a companhia – nos admirávamos mutuamente – e uma fuga quase que incessante de ter que morar na rua. Talvez isso nos aproximasse. Sabíamos que a solidão, o abandono, às vezes são inevitáveis, isso não nos preocupava, talvez fossemos espécies que sabiam lidar com quase todos os tipos de adversidades – isso até mesmo nos alimentava – sem colocar em cheque nossa sanidade, mas inexplicavelmente ficávamos intimamente receosos com a chegada do momento em que nos sobrasse as calçadas e as marquises. Mesmo que não fosse uma situação inédita para ambos, a ideia nos deixava como crianças apavoradas e tínhamos vergonha de nos sentir assim. Quem sabe até merecíamos. Selma se dizia merecedora do infortúnio, que era um destino traçado a ela do qual não conseguiria fugir, não importava o que fizesse, estava jurada à rua, talvez por isso gostasse tanto de estar em bancos de praça.

Por semanas, meses, seguimos nosso acordo sem atrasos. O quarto do Sete-Sete, apesar das paredes mofadas e do banheiro alagado, era um bom lugar. Tinha um cheiro inusitado, as quintas e sextas cheirava a água sanitária, que eu passava por todo o quarto para que nos desse alguma impressão de limpeza e uma mínima noção de higiene; a partir do final da tarde de sexta às madrugadas de quinta, cheirava uma mistura de cigarro, amônia, éster, cerveja e buchudinha. Nosso lar, meu e de Selma.

A intimidade e a rotina, nos criou algum tipo de elo, passamos a nos preocupar um com o outro. Às vezes quando nos excedíamos ao ponto de prever a morte, acordávamos no dia seguinte com uma necessidade urgente de praticar exercícios. Dávamos longas caminhadas, evitávamos o cigarro, a bebida e qualquer tipo de entorpecente durante a semana, o que culminava em um final de semana desregrado e infindável. Certo dia, Selma voltou animada da rua, havia descoberto no parque aulas grátis de aeróbica para idosos, deitou a cabeça no meu peito e me aconselhou a ir, que eu precisava, que iríamos juntos. A joguei para o lado e tivemos uma briga ferrenha, a chamei de velha, era ela quem beirava os 70, eu estava no meio dos 50, ela quem precisava de muletas e filas preferenciais. Selma chorava copiosamente me chamando de covarde, de iludido, mentiroso. Nas duas semanas seguintes fomos religiosamente as aulas, eu me dedicava por uns 20 minutos, o restante buscava algum banco próximo e ficava lendo até a aula terminar; mesmo assim Selma ficava satisfeita, entendíamos o limite um do outro, assim como as implicâncias e as ilusões também.

Não demorava muito e voltávamos para nosso ciclo de sextas e quintas, e sextas às quintas. Assim como também, o tédio não demorou a nos atingir novamente. As caminhadas embriagados pelas praças diminuíram, as sessões de enlouquecimento em casa também ficaram rarefeitas. As preocupações diminuíram ao ponto de “até logo mais”. Não nos destratávamos, muito menos discutíamos, passamos a ser desdenhosos, mesquinhos, irritantes. Começamos a criar hábitos horrendos. Algumas vezes quando chegava da rua de madrugada bêbada, Selma tinha mania de mijar no meu sapato enquanto eu dormia, às vezes eu até estava acordado, abria um dos olhos e assistia a tudo, em outras até mijava propositalmente na cama. Eu respondia me excedendo cada vez mais, deixando a podridão no sanitário sem dar a descarga para que fermentasse, batendo eventualmente a bagana de cigarro em suas roupas. Não tínhamos coragem de aceitar nossas boas aventuranças, acreditávamos fazer parte de um desalinho que merece ser ejetado, e assim nos dedicamos.

Em um último suspiro, Selma apareceu um dia com um rapazote na casa dos 20 anos. Dizia que ele tinha um rosto familiar, ela aproximava seu rosto do dele, esbugalhava os olhos, e lentamente admirava cada detalhe. O chamávamos pelo apelido, Breu. Era um galego franzino de olheiras roxas sem hormônio suficiente para lhe criar pelos no rosto. Lhe servimos bebida, esquentamos os pratos, conversamos madrugada a dentro. Selma parecia feliz, nessa noite dançou.

Nos afeiçoamos ao garoto. Breu passou a morar com a gente, ia para todos os programas que eu e Selma fazíamos, como antigamente; mesmo assim eu não sabia dizer que tipo de relação era aquela. Eu sabia que Breu roubava Selma, eu não o repreendi, apenas o avisei que não me deixasse pegá-lo no flagra. Selma estava mais jovem, gargalhava à toa, cada vez mais se encantava pelo garoto. Ele, que antes dormia em cima das roupas no chão, passou a dormir com a gente na cama, entre eu e Selma, os três abraçados. Ela acordava fazendo carinhos no rapaz adormecido, brincava o colocando no colo lhe dando de comer, passou a chama-lo de molecote. Em uma noite em que eu estava me vazando por todos os orifícios, os dois saíram, não os vi chegar. Ao acordar, ainda fraco do dia anterior, vi Selma nua ao meu lado, o garoto dormia no chão sobre as roupas, também nu. Me levantei com muito esforço, arrumei as poucas roupas que tinha em minha sacola de compras e fui embora.

No reencontro do Parque, Selma disse que ficaria com o rapaz. Consenti em silêncio e perguntei onde ele estava, segundo ela, a esperava nos brinquedos do parque. Se despediu de mim ainda com o olhar fixo no portão. Esperei que ela tomasse certa distância e comecei a segui-la. Ao chegar nos brinquedos, Selma se sentou em um dos bancos e ficou observando as crianças que por lá brincavam, senti que sorria, Breu não estava lá. Selma começou a apalpar a trouxa de roupa, parecia cansada, a colocou na ponta do banco, olhou mais uma vez em volta, aconchegou a cabeça sobre a sacola e, finalmente, deitou.


Fabrício Pinheiro