quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

São Jorge


Cercado de rosas de plástico, entre luzes verdes bem pequeninas – às vezes – vermelhas, lá estava ele – seu retrato. Lutava contra o dragão enorme – já quase desfalecido – sangrando junto às patas de seu cavalo. Depois vim a saber que era São Jorge.

Me perguntava como podia enfrentar aquele bicho tão enorme? E o olho de seu cavalo? Daquele cavaleiro – de onde vinha tamanha coragem?

De uma prateleira qualquer em frente a uma mesa velha e escura ou dentro de uma cristaleira ao som da Ave-Maria, aquele retrato espalhava no ambiente um facho multicor, um clima de magia, de mistério – um clima de Deus – que penetrava em todos os cantos das casas da vila do subúrbio onde eu morava. Depois o encontrei nas padarias, nas farmácias, nos armazéns do bairro como guardião desses estabelecimentos.

Os retratos de São Jorge, da Virgem Maria e os pirulitos e as balas de São Cosme e São Damião alimentavam essa gente pobre e corajosa do subúrbio do Rio de Janeiro. E assim, apesar do cansaço dos dias insípidos de trabalho mal remunerado, sentia-se a alegria pelas calçadas do meu bairro.

Ah, essa coragem perdida! Ah, essa maneira David e Golias de existir!

Rosália Milsztajn

terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Da vida erótica, de Pedro Demenech — Menção Honrosa de Poesia no IX Prêmio Paulo Britto de Prosa e Poesia


ler os sinais sem reter
o gozo nem negar o
momento
apenas isso: preservar o sintoma
desse raro prazer que é resistir
ao gesto de não amar treslendo
no outro a janela aberta que
insistimos em fechar

Pedro Demenech

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

HEMINEGLIGÊNCIA, de Leoni Siqueira — Terceiro lugar de Poesia no IX Prêmio Paulo Britto de Prosa e Poesia


Minha mãe
ten
tando en
tender o te
xto à esqu
erda que o cér
ebro não reg
istra nem de
cifra mes
mo com a fa
ixa verm
elha com a aj
uda da peda
goga e a ago
nia enor
me de vê
-la as
sim
nessas horas a
tristeza que eu
trouxe de casa
dá uma trégua
trocada por outras
dores e aflições as
dela agora
minhas
mas basta um
segundo um
silêncio pra ela
ressurgir no
dorso de um
suspiro que
dói

Leoni Siqueira

domingo, 28 de janeiro de 2018

Experimentações, de Alice Régnier — Segundo lugar de Poesia no IX Prêmio Paulo Britto de Prosa e Poesia


Um suspiro fresco e cansado como a cor
daquilo que não pode ser, porque se esvai
Matéria que não se faz sentir, enquanto o tempo
é curto e também ele se esvai O espírito é livre
e a carne é vazia,
vazia como o tempo e como tela em branco


Inspira a terra viva e um formigamento, mas a
tela não ganha vida, tampouco as folhas -
Folhas que não sopram mais:
O tempo, curto longo, se esvai

Ser tela, ou folhas imóveis
Ou carne sem espírito ou
Espíritos imóveis que fogem de telas
Logo delas, tão límpidas numa Inocência
maliciosa que se fecha
Formigando dentro de si
Tela nunca fui

Aqui, as folhas conspiram
E as cores se disfarçam
Aqui, o espírito é livre, e a mente,
Carne, esboço de nada, apática Divisão
do corpo, que é esboço de cheiro, do
cheiro que retorna, trêmulo
Cheiro de não-tela
Aqui, as cores se disfarçam

Surge já uma essência Descobre
que pode - deve?
Memórias se enlaçam e o cheiro sempre presente
Assusta os sussurros
Sussurros que fogem e não se entregam mais

Um tronco que flutua e a madeira, carne vazia,
Apodrece
Nem sua essência e memórias de tela
Trazem de volta os sussurros
Mas o cheiro - ah, o cheiro!- Esse
sempre retorna

Trêmulo consigo mesmo
E com esta inspiração estúpida;
Que há de conhecer assim,
Além de telas que formigam
E cores que fogem, mornas?
Laços mudos, sombras de esboços
E esboços de terra, de carne,
De nada

Alice Régnier

sábado, 27 de janeiro de 2018

pra menores, de Bruno Jablonski — Primeiro lugar de Poesia no IX Prêmio Paulo Britto de Prosa e Poesia


poupe-me dos
pormenores por
maiores que
sejam tente me

ter fora fúria e
festa pouco im
porta que
tenha-se aberto
a prece dentes
agudos
agouros de
agora agoniza
no chão besta
feia bicho bosta
de baleia teu
corpo corre
catarro que tu
chamas fala
mas não
cola talvez quem sabe
em língua nova in
vertida ou ventada por
nuvens novas que
ainda esquecem
esquecem que chorar é
o ofício difícil sim sem
dúvida in dócil mas
bebe teu vinho besta
feia
enquanto o tempo en
ga ti nha

Bruno Jablonski

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Diário de bordo, de Suzane dos Santos Moutta — Menção Honrosa de Prosa no IX Prêmio Paulo Britto de Prosa e Poesia


Dia 7

Faz sete dias que estamos aqui. Meu sogro falou hoje para descansarmos. De fato, eu especialmente cansada e já ficando enjoada. Começou a chover há alguns minutos. Não estou acostumada a essa rotina diferente aqui dentro. Mas estamos todos bem.

Dia 19

Acordei à noite e estava chovendo. Cheguei perto da janela. Estava muito bonito. Mas estava muito escuro e não dava para ver quase nada. Só o cuidado e a proteção. Se eu tivesse visto talvez sentisse medo.

Dia 32

Minha sogra hoje fez um cozido de cordeiro muito gostoso. Acho que ela entornou um pouco de tempero, mas ficou com mais gosto de comida. Todos aqui pareceram gostar especialmente da refeição. Estamos comendo comidas várias, mas o tempero é sempre parecido. Dessa vez teve uma diferença boa.

Agora eu enjoada. Acho que o tempero foi demais para o balanço. Vou me deitar um pouco lá em cima e ver se meu sogro pode abrir um pouco a janela, para refrescar e não ficar com muito cheiro de betume. É capaz de ele abrir e tapar, para o vento não me fazer mal. Ele é um homem muito bom. 

Dia 33

Acordei desde ontem quando dormi perto da janela. Muito mais disposta. E lá fora está ficando diferente. Eu não consigo ver as montanhas que tem perto de casa, nem as que tem perto do curral. Devemos estar longe. Só a que fica atrás da casa de minha mãe eu vejo.

Dia 47

Agora é noite eu perdi o sono. Subi para pegar uma pena para escrever e vi que parou de chover. Vi também meus sogros, que estavam na janela adorando O Eterno. Foi uma cena muito linda, os dois juntos na janela, contemplando o céu claro de estrelas e orando ao Criador. Deu vontade de chorar. Mas aí antes que eu chorasse a mulher de meu cunhado mais velho apareceu. Estou no período de ciclo e estou com dores, minha irmã, disse. Ajudei a pegar mel para ela, que estava guardado no alto. Ela ficou muito feliz e agradeceu. Conversamos um pouco e logo apareceram nossos maridos, que deram falta de nós, e ficamos vendo meus sogros. Quando eles desceram, assustaram-se com todos nós acordados e acharam que não estávamos bem, mas era só a mulher de meu cunhado mais velho. Meus pais, falei, como eram lindos lá na janela! Minha sogra sorriu de forma especial pra mim. Meus sogros são bons, diferentes dos demais. A terra estava corrupta e cheia de violência.

Dia 62

Hoje uma vaca berrou por várias horas seguidas. Fiquei com a cabeça tonta. Agora ela está mais calma, mas também meu cunhado mais moço está cuidando bem dela. A mulher dele não gosta de como ele fica cuidando tão bem da vaca e é bravo às vezes com ela.

Dia 87

Meu sogro teve vômito ontem à noite. Ficamos preocupados, mas era claro que ele logo ficaria bem. Minha sogra descobriu uma massa meio passada que ele tinha comido. Mas aí ninguém mais comeu e ele ficou bom também. Umas frutas e um pouco de vinho e ele se recuperou. Graças ao Eterno! Já está até tosquiando os carneiros e ovelhas.

Dia 115

Eu gosto dos macacos. Eles são cheios de energia. Dão um pouco de trabalho, as mulheres de meus cunhados não gostam. Mas eu acho que são muito legais de se olhar.

Dia 137

Hoje eu fiquei perto da janela porque senti enjoo e vi galhos e restos flutuando. Nenhum monte ainda. Acho que está tudo coberto. Fiquei lembrando de quando entramos aqui, lá fora estava tudo seco e querendo morrer. Os casais vindo de dois para meu sogro, e todos entrando exatamente como O Criador quis. A lista estava completa. Muita alegria! Meus pais não acreditaram nas palavras do Senhor. Eles até riram do meu sogro, implicaram comigo por ter me casado com meu marido e vir com eles agora. Fiquei muito triste quando lembrei deles e gostaria muito que a cabeça deles tivesse sido diferente.

Dia 163

Tenho falta do sol. Apesar de ser muito sol lá perto de casa e eu reclamar constantemente disso, descobri aqui dentro que eu gosto do sol e tenho falta dele. Não vejo a hora de voltar. A pele do meu rosto está pálida como a do meu corpo, mas eu vou ficar muito corada quando estiver tudo pronto. Também vou poder colocar as roupas estendidas ao sol, que secam mais rápido. Vai ser tão bom sentir o quentinho da luz em minha pele de novo!

Dia 197

Começou a ventar muito. Ainda bem que aqui dentro estamos protegidos.

Dia 214

Meu sogro começou a contar histórias hoje de quando ele era criança. Estávamos todos sentados juntos após a refeição e ele começou uma maratona que foi da infância dele até quando conheceu minha sogra e casou-se. Aí falou de quando os meninos eram pequenos. Meu marido era muito bagunceiro. Ele uma vez derramou todo o leite que meu sogro havia tirado da vaca nas pernas, ainda quente. Começou a chorar e minha sogra correu e o levou para a bacia com água fria. Meu sogro falou, mas eu tinha colocado no alto. Só que ele subiu no banco e virou o leite nele. Demorou um pouco para a queimadura sair toda. Aí eu entendi por que ele tem tanto medo até hoje de coisa muito quente. Ele gosta de esperar a comida esfriar antes de comer quando é sopa. E eu entendi por quê.

Dia 230

Hoje meu sogro chamou todos nós para vermos algo na janela: os cumes de montanhas!
Sei que estamos parados, mas será que estamos perto de casa novamente?

Dia 251

É incrível como nenhum animal morreu nesse tempo todo aqui dentro. Acho que estão sendo muito bem cuidados.
Meu marido hoje disse que vai plantar uma vinha com o pai dele quando chegarmos de volta. Mas eu acho que meu sogro vai fazer tudo sozinho. Meu marido não leva jeito com plantação. O negócio dele é tratar de animal e também caçar. Aí eu cozinho bem as carnes, porque estou costumada.

Dia 270

Hoje meu sogro acordou pensando que talvez fosse hora. Eu também acordei pensando nisso. Mas ele quis ver e então pegou um corvo e o soltou na janela. O corvo voou e logo voltou. Não devia ter onde ele pousar. Aí meu sogro soltou uma pomba, porque ele queria mesmo ter certeza. E a pomba voltou logo também.

Dia 277

Meu sogro soltou a pomba de novo hoje e ela voltou. Mas voltou só à tardinha e trouxe uma folhinha de oliveira no bico. Meu sogro a recolheu e guardou segura aqui dentro.
Havia árvores, mas ainda não deveríamos sair.

Dia 284

Mais uma vez meu sogro soltou a pomba na janela. Agora é a hora décima e ela não voltou. Vamos esperar.

Dia 287

De fato, a pomba não voltou. Quer dizer que encontrou um lugar para repousar! Mas meu sogro disse que nós ainda não podemos sair, as pessoas. Devemos esperar mais, até que o Criador lhe mostre. Então esperaremos.

Dia 302

A mulher de meu cunhado mais moço passa mal do ventre. Estamos muito preocupados, mas eu confiante de que logo ficará bem. Nós recebemos muito cuidado aqui dentro. Minha sogra também cuida dela. Coma uma maçã, minha filha, ela diz, e dá um fruto à nora. Todos aqui são bons e justos.

Hoje acabamos de arrumar nossos pertences que nós não vamos mais usar. As roupas e mantimentos estão acabando. Certamente chegaremos muito em breve!

Dia 319

Tudo está ficando pronto! Tudo está quase pronto! Meu sogro descobriu-nos e pudemos ver a terra, que está linda!

Dia 343

Mal posso esperar para sairmos! Todos nós não podemos. Estamos alegres e emocionados, esperançosos sobre como tudo será novo. Estamos também aproveitando nossos últimos dias aqui.

Dia 376

Agora, sim! Tudo está pronto! Rendamos graças ao Altíssimo!

Saímos hoje e meu sogro ofereceu uma oferta ao Senhor e ofereceu um animal e uma ave de todas as espécies limpas. E O Senhor falou com Ele. Apareceu depois no céu um lindo arco, com muitas cores brilhantes! Foi lindo!

Tudo, na verdade, está lindo, novo, perfeito. Não há nada que não seja novo debaixo do sol.

Suzane dos Santos Moutta

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Dunas de certo, de Igor Lima Crespo — Menção Honrosa de Prosa no IX Prêmio Paulo Britto de Prosa e Poesia


Eu nem queria escrever isso. Aqui estou. Talvez você nem quisesse estar aqui. Idem. Eu realmente não vejo muito sentido nisso, um conjunto desconexo de símbolos criados por um bando de loucos em algum lugar perdido no espaço e no tempo. Sabe, realmente acho isso uma grande perda de tempo. Eu não vou mais falar dessas baboseiras da mente. Você veio aqui por uma história. Bom, eu não tenho uma, mesmo assim, toma.

A criança, munida com uma faca que media mais do que um graveto e menos do que uma baguete, vagava sozinha pelo deserto laranja. Mancando, ela subiu até o topo de uma duna bem alta e olhou o horizonte que seus olhos míopes alcançavam: antes do borrão, uma lagoa linda, de água azul escuro refrescante e sedento. Mas a água ainda não era real.

A criança olhou para trás e constatou o óbvio.

Estava só.  

Resolveu não esperar mais por adulto nenhum; agora não seria diferente. Mancando, deu um passo à frente – e para baixo. Já havia ouvido algo sobre quedas, mas não entendia porque doía tanto. Seria a surpresa? O inesperado esperava-a, garoto, e ria dela. Todos seus ossos sentiram o impacto, e depois mais mil quedas. Só parou quando atingiu o fundo que, no fundo, era só mais baixo que o topo. Admirada, a criança se levantou, a câmera – como a imaginava, mesmo nunca tendo visto ou ouvido uma – a observava de baixo, a engrandecia, a plateia atenta aos feitos da protagonista. “Um passo de cada vez”, pensou baixinho para não ouvirem. E finalmente chegou. 

O lago parecia tão bonito de longe... O que acontecera? Teria ele ficado mais velho? Ou a criança demorou tanto que ele cansou, perdeu sua juventude e com ela, sua beleza? Mas o reflexo não mentia: a criança ainda era criança, mas já havia passado tempo desde o início de sua jornada. O reflexo mentia? E começou a entrar no lago. Desde mais novo, o infante temia lagos, não agora – será mesmo? Agora reside o presente; e é ele que pode falar sobre si mesmo, sobre todos. O infante, primeiro, sentia água até o início da canela, depois até o joelho, e assim por diante. No meio do lago, o infante sentou – não era tão fundo quanto pensava – e com os braços abraçando as pernas parou de mancar um instante e pensou tão fundo que dormiu em suas lágrimas. 

Quando acordou, Noite. Ela faz aqueles incapazes de dormir sonhar e os de sonhar dormir. Agora, o infante sangrava e suas pernas estavam vermelhas, não por muito, porque o sangue se espalha na água. Olhou para o céu estrelado e as estrelas, longe, não podiam ser escutadas. Olhou ao redor, com apenas o frio da noite o sibilando, e entendeu. 

Só estava.

Seus cabelos longos e castanhos escondiam seu rosto; mas de quem? Resolveu tomar uma atitude e se levantou, bem no meio da Lua. Saiu do lago e subiu a duna logo à frente. Do alto, sentiu o calor escaldante do Sol, provavelmente escondido até pouco atrás da duna, agora abaixo de si. Seus olhos queimaram – e nem por isso ficaram menos míopes. Olhou para baixo. E deu um passo avante rumo à morte. Essa duna era maior do que qualquer outra e não há volta depois dessa queda. Lembrou do adulto de cabelo curto dono da faca e ficou com ódio. Ódio dele. Ódio de si. Dizem ser impossível errar o chão quando embaixo de nosso ego. 

Não é verdade. 

Errou o chão. E voou. Voou tão alto quanto as nuvens, já conhecedoras experientes da arte de errar o chão. E continuou assim por horas até escurecer. Quando as estrelas chegaram e começaram a conversar, perdeu solidez nos pés e parou de voar. As asas sempre morrem ao ouvir “não pode”. 

Caiu em câmera lenta, com o público já impaciente – a pipoca acabara em dez minutos. Seu grito ensurdecedor foi tão exagerado que ensurdeceu seus ouvidos; e parou de ouvir o berro, gradativamente mais mudo. Em um último momento, parou de cair para refletir um pouco. Fez uma lista dos prós e dos contras. Concluiu a queda ser realmente desnecessária e os pés fincaram raízes novamente no topo da duna. O Sol voltara e a faca estava ali. Olhou pelo reflexo o rosto da criança travestida de infante. Seus olhos – dolorosamente – encararam os olhos da figura animalesca parecida com homem. As íris de um refletiam infinitamente as íris do outro e criavam um jogo bonito e macabro.

Diálogo de submissão mútua. 

Um corpo de criança representa a encarnação da mentira ou do oculto? 

O adulto estava em pé ao seu lado. “Faça”. Por um instante, pensou em acatar a ordem. Por outro, acatou pensar sobre ela. “Não!”. Como se fosse fácil dizer não a um adulto. Do alto de seus metros de gigante, o Sol escondia a face cruel do agressor e a roupa feita de sombras tentava ocultar os gestos, tão óbvios. Se a criança não tivesse visto aqueles movimentos antes, talvez fosse tarde. As mãos tiravam o cinto e se preparavam para realizar ato bárbaro. A boca da criança já sangrava só de lembrar, porém conseguiu posicionar a câmera imaginária bem atrás do que a escondia por estar na frente. As poucas pessoas ainda vendo o filme – a maioria estava comprando mais pipoca, em uma fila inteligentemente arquitetada para só fazer sentido quando todos se revoltassem com a demora – ficaram horrorizadas com a cena e saíram da sala pedindo o ingresso de volta. Ao verem a fila, entraram esperando chegar ao gerente, no final se mostrando mais pipoca do que gerente e mais cara do que gostosa. O gerente, ironicamente, entrou na sala vazia e ficou vendo o filme sem pipoca nenhuma, as barras de chocolate deliciosamente hábeis em tirar a atenção da violência exagerada mostrada na tela – por isso ele não se incomodou em ficar para ver como se desenrolaria a história. 

A criança toda suja com sangue tentava fugir. Inutilmente. Uma mão grande pegou o cabelo e uma maior ainda pegou a faca. O cabelo era longo demais para fugir e não conseguiu evitar ser partido, reduzido a uma mera cuia mal feita, com fiapos de cerâmica, ainda com a sensação de ter aquela parte faltante, um membro ainda preso ao dorso. Os fios eram iluminados pelo Sol, caíam em câmera lenta. A criança começou a chorar. “Por quê? POR QUÊ!?”. 

Todos se perguntam isso. 

O adulto pareceu satisfeito e foi embora, sabe-se lá por quanto. A criança estava mais uma vez sozinha naquele deserto laranja. Olhou para baixo e foi rolando, os grãos de areia entrando nas feridas e fazendo novas. Se arrastando, foi de pouco a pouco até o lago. Projetou a cabeça de encontro à água, tanto para beber, quanto para lavar o rosto. Entretanto, entre tantas caras possíveis, achou justo a sua. Mais uma vez entrou em um vórtex etéreo sincronizado de olhares profundamente vazios. Infelizmente, não se apaixonou pelo que viu. A imagem era muito diferente do esperado; da última vez, pelo menos, mantinha seus cabelos compridos e sedosos. Perdê-los foi a gota d’água. Curioso ser justo a falta de água a causa de sua morte. Antes, no entanto, tentou de tudo quanto foi jeito trilhar um caminho salvador, uma teia para sair daquele inferno. Nenhum fio veio, seus cabelos ainda incompletos. Estava deitado, em sensação de verticalidade, ponta-cabeça, coroa de espinhos, sangue borrando o perto da vista, o longe já míope incontornável. O reflexo dizia muito sobre o adulto-sombra, pouquíssimo sobre si. Qual era seu nome? Qual? Não via sentido em destino tão cruel. Caminhava manco desde o nascimento. Observava desde sempre os outros caminharem normalmente – para longe. Só aquele patife gigante o seguira até o deserto. Mais ninguém, nenhum bom samaritano, nenhuma alma perdida. Era quase como se tivesse construído aquilo tudo grão por grão. Não. Não era Deus. Era apenas alguém Sem Nome. Entendeu no resquício derradeiro de vida toda sua jornada, sua queda heroica. 

Só estava só. 

As luzes do cinema acenderam. Não tinha cena pós-créditos. O gerente pulou da cadeira, quase tendo um ataque cardíaco – já era meia-noite, hora de ir para casa, deitar ao lado da esposa e ver mais um filme qualquer. 

Igor Lima Crespo

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

silêncio e Cantiga, de Samyres Amaral Freitas — Segundo lugar de Prosa no IX Prêmio Paulo Britto de Prosa e Poesia


Era o funeral da minha família, pelo menos eu achava. Uma chuva irritante e fina caía no meu rosto como agulhas finas. Eu não sentia frio, só o estardalhaço dos meus sapatos no concreto agora encharcados de poças. Ninguém prestava atenção, somente eu. Maldisse a quantidade de fumaça que inalei todos aqueles anos e o ligamento frágil do joelho que fazia cada aterrissagem sufocar um grito. Sabia que pintava as ruas de vermelho enquanto vencia quarteirões daquelas casas iguais, mas não me lembrava de ter me machucado.

Eu estava sempre ralado de um tombo do carrinho de rolimã e descalço de fazer das sandálias marcações de gol. As ruas estreitas atrapalhavam a logística do jogo se um carro precisasse passar, mas tinham bons becos e esconderijos para jogos de perseguição. As telhas velhas e quebradiças ainda eram as mesmas que as mães desesperadas imploravam para seus filhos não andarem em cima.

Há lugares que gostaríamos de não lembrar que conhecemos. Ao final da rua, a modesta casinha azul jazia com a porta aberta balançando de acordo com o vento. Apertava e soltava o punho cada vez mais depressa, mas o movimento me incomodava. Cada passo para frente significava um não voltar atrás. Estava a caminho do meu passado, que havia prometido deixar. Não posso ir embora, não quero voltar, preciso chegar e quero desaparecer.

Nunca terei filhos, pois ter Esperanza já era como ser pai. Seus olhos de amêndoas eram iguais aos meus. Gostava de vê-la brincar ao sol, a íris iluminada tinha cor de madeira velha e o cheiro também, se prestasse atenção. Sempre estive mais com ela que meus pais, por isso quando fui embora quis levá-la comigo, mas eles insistiram que ficariam com ela. Bom, que a levem com vocês para o túmulo, pois é para lá que estão indo.

Mordo a língua para abafar o grito e o arrependimento. O passado arrancou as lembranças de minha casa e chacoalhou até deixar tudo em ruínas, o sofá onde costumávamos assistir televisão estava revirado e o aparelho agora em pedaços, junto com cortinas rasgadas, mesas reviradas e a parede das escadas com marcas de unha e sangue. A pressão no peito subia para a cabeça e eu não conseguia trazer ar aos pulmões, a cena ia ficando turva e embaçada conforme o absurdo se fazia sentir pela primeira vez.

Quando estava em casa, minha mãe era atenciosa. Deixava que dormíssemos em sua cama e cantava para nós uma canção de ninar que aprendeu com nossa avó. Se estava viva, não a conhecíamos. A música era um antídoto para os pesadelos de Esperanza e ficávamos sempre os três abraçados enquanto ela cantava, esperando nosso pai chegar. Sempre juntos e no escuro. Como se ela pudesse me curar também deste pesadelo, murmurei um trechinho.

A mandíbula e os punhos destravaram, deixando o corpo recobrar a sanidade. Quase não percebi que não cantava sozinho. A voz suave e rouca ao fundo me fez buscar o ar novamente, agarrei o corrimão e corri os degraus de dois em dois. O primeiro grito que dei, saiu entre um choro e um engasgo, mas o segundo arrancou de minhas cordas vocais o nome que eu não pronunciara por tantos anos. Talvez por medo, a voz se calou e meu coração despencou para o estômago. Onde está, onde está? Eu abria portas sem realmente ver, tentei uma, duas. Sua voz voltou a cantar enquanto eu encarava o quarto de meus pais.


Os lugares que não gostaríamos de lembrar, são o que nunca esquecemos. A cama desfeita, os quadros e o espelho quebrados, e, segurando a porta do armário entreaberta, o par de amêndoas me encarava assustado, agachado e cantarolando para mamãe. Aquele segundo ficou suspenso pois ela estava bem ali e eu a tinha encontrado. Ela estava com o cabelo maior, talvez mais alta, e o mais importante é que estava viva. A seu lado o militar apontava uma arma para sua cabeça e me encarava, esperando uma reação.

Samyres Amaral Freitas

terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Reunião de Condomínio, de Daniella Clark — Primeiro lugar de Prosa no IX Prêmio Paulo Britto de Prosa e Poesia


Aos vinte e cinco dias do mês de abril, do ano de dois mil e dezessete, às 21 horas em segunda e última convocação, reuniram-se em Assembleia Geral Extraordinária os condôminos do Edifício Andorinha, localizado na Rua Itacuruçá, 72, no bairro da Tijuca, Rio de Janeiro. A Sra. Esmeralda Sampaio (apt 405) pediu a palavra. Informou que solicitara a convocação da presente reunião porque completara naquela semana 32 noites mal dormidas. O Sr. Aristeu Mendonça (apt 702) a interrompeu, alegando que aquele não era o fórum para esse tipo de reclamação, que tinha muitos compromissos, inclusive para estar ali presente desmarcara uma sessão de fisioterapia para tratar de seu problema de quadril, que o atormenta há muito mais do que 32 noites, mais precisamente 64 dias, desde sua queda na saída do metrô da Estação Uruguai. A Sra. Esmeralda Sampaio insistiu que se tratava sim de um problema a ser debatido pelos condôminos porque a causa de seu sono interrompido era a incapacidade da locatária do imóvel 505, portanto acima do seu, de controlar o choro de seu bebê recém-nascido, acrescentando que os berros do menino se acentuam pela noite, seguidos de passos de vaivém pelo apartamento, que não a deixam descansar na paz de seu lar, e que este provavelmente era um incômodo que perturbaria outros moradores e não apenas ela, devido aos gritos amplificados pelo silêncio da madrugada. A Sra. Veridiana Marques (apt 506) informou que também ouve os choros de madrugada, porém não tão alto quanto sua vizinha, talvez por seu apartamento ser em uma coluna mais distante, mas que em uma ocasião recente, quando pendurava um quadro em seu quarto, uma réplica dos girassóis de Van Gogh que ganhou de uma amiga que viajara ao exterior, teve de interromper a atividade para atender o interfone. O porteiro pedira que não fizesse barulho pois o bebê da moradora do apt 505 estava dormindo e acordou com as marteladas, sendo que eram 16 horas da tarde, portanto dentro do horário permitido para atividades como marteladas e demais tipos de reformas nos apartamentos e até mesmo treinos de bateria, como os do vizinho do sexto andar, que também a incomodam bastante, mas que ela jamais reclamou porque preza pela boa convivência com os demais moradores. A Sra. Veridiana Marques acrescentou que por conta do telefonema do porteiro não terminou de pendurar o quadro, ficando uma marca em sua parede da martelada inacabada, e que não vê por que os demais moradores devem modificar sua rotina em prol de um recém-nascido cujo choro insistente não colabora para a paz daquela comunidade. O Sr. Antônio Pedrosa (apt 1007) pediu a palavra e disse considerar um absurdo que o bebê seja condenado por seu choro, uma necessidade tão natural e justificável quanto respirar. Ele acrescentou que a culpa, se tivesse de ser atribuída a alguém, seria à mãe, que aliás deve viver sozinha pois jamais vira seu marido a circular pelo edifício, nem mesmo aos fins de semana. E que se ela engravidou e o homem não quis assumir, alguma coisa ela fez por merecer, talvez não tivesse se protegido como deveria. A Sra. Cristina Ribeiro (apt 702) concordou com o vizinho e acrescentou que as mulheres hoje em dia não se dão o respeito e estão tão preocupadas com o trabalho fora de casa que não têm mais tempo para cuidar dos próprios filhos e que aí estava a origem de boa parte das mazelas que hoje assolam o mundo. A Sra. Mirna Esteves (apt 303) discordou e insistiu que, apesar de não conhecer a moradora do apt 505, era solidária a ela e a todas as mulheres que são obrigadas a conviver com uma sociedade tão machista, retrógrada e falso moralista, e que o cuidado de um filho deve ser dividido entre pai e mãe e que se ela havia sido abandonada pelo homem que a engravidou este seria mais um motivo para ter a empatia e o apoio dos moradores do Edifício Andorinha. O Sr. Carlos Alexandre Oliveira (apt 506) pediu então a palavra e acrescentou que ouvira na noite anterior não só o choro da criança, mas também uma voz de mulher, que perdurou por pelo menos quarenta minutos, como se estivesse pedindo socorro, proferindo palavras como “por favor, filho, durma, eu não aguento mais, eu não aguento mais”, e que pensou em entrar em contato pelo interfone, mas imaginou que poderia parecer invasão de privacidade e sua esposa o demoveu da ideia. O Sr. Carlos Alexandre acrescentou que tentou gravar as vozes com seu celular para depois buscar orientação sobre como proceder, mas estava sem memória no seu aparelho desde sua última viagem para a Disney, pois não tinha tipo tempo de efetuar o download para o computador das imagens, que eram muitas. A Sra. Lucia Furtado (apt 103) questionou se a moradora do apt 505 havia sido convidada para a reunião, para que pudesse se defender das acusações ou até mesmo buscar a ajuda que talvez precise. O síndico, Sr. Aristarcho Pessoa (apt 204), argumentou que o funcionário da administração tentara entregar pessoalmente a convocação, mas não obtivera resposta, e como ninguém atendera ao interfone ou à campainha ele decidira ordenar que o funcionário deslizasse o envelope por baixo da porta. Desta forma, o Sr. Aristarcho acredita que se estivesse em casa, a locatária do apt 505 teria certamente percebido o documento sob sua porta, e se não estava ali entre os presentes não era de seu interesse a participação naquela reunião. A Sra. Janeth Barros (apt 508) informou que a locatária tem nome, chama-se Maria das Dores, aluga o apartamento em questão há pelo menos cinco anos, e que era inadmissível que a reunião prosseguisse sem a sua presença. Todos concordaram que fosse formada uma comissão para se dirigir ao apartamento da inquilina e convidá-la pessoalmente a participar da assembleia. A Sra. Janeth Barros, o Sr. Aristarcho Pessoa e a Sra. Mirna Esteves subiram em seguida até o quinto andar e encontraram ao pé da porta do apartamento 505 uma carta endereçada aos condôminos do Edifício Andorinha. A Sra. Janeth Barros argumentou que, como não havia resposta à campainha, mesmo depois de insistirem por cinco vezes e aguardarem por cerca de dez minutos, o grupo deveria retornar à assembleia e ler a carta na presença dos demais. De volta à reunião, o síndico abriu o envelope pardo e retirou dele uma folha branca, escrita em letra cursiva com caneta Bic: “Desculpem o transtorno. Eu tentei”, leu o Sr. Aristarcho, que então ficou branco como cera, sendo amparado pela Sra. Veridiana Marques, que comunicou que chamaria a polícia para arrombar a porta do apartamento 505. Os policiais chegaram cerca de 20 minutos depois, tendo sido acompanhados pela Sra. Janeth Barros até o andar. Ao retornar ao salão do condomínio, a Sra. Janeth relatou aos demais que por trás da porta arrombada havia roupas espalhadas pelo chão, restos de comida, fraldas sujas e, em um dos quartos, segundo lhe contara o policial, porque ela não tinha tido coragem para entrar, estava o bebê acordado e estranhamente silencioso ao lado do corpo da mãe, já sem vida, e alguns comprimidos, provavelmente pílulas para dormir que ela tomara além da conta. A Sra. Janeth acrescentou que o corpo da mulher seria encaminhado ao Instituto Médico Legal e que o menino ficaria aos cuidados do Juizado de Menores, até que sua família, se é que ele a tinha, fosse encontrada. O relato da Sra. Janeth foi seguido de gritos de desespero e orações, Pai Nosso, Credo, Ave Maria. A Sra. Mirna Esteves se dirigiu à Sra. Esmeralda Sampaio e disse que agora, sim, ela poderia dormir tranquila esta noite, e a vizinha desandou a chorar. O Sr. Antônio Pedrosa foi o primeiro a levantar a questão de se tratar o episódio com a devida discrição, pois certamente acarretaria em desvalorização dos imóveis do Edifício Andorinha e prejuízo ao proprietário do apt 505, seu amigo de longa data, que não conseguiria alugar o apartamento tão cedo novamente caso o escândalo viesse à tona. Todos, com exceção da Sra. Mirna Esteves, concordaram que era preciso marcar uma nova reunião para discutir o assunto. Sem nada mais a ser tratado, o Sr. síndico, já recuperado de seu mal súbito, deu por encerrado os trabalhos, solicitando que o secretário lavrasse a presente ata, que segue assinada por quem de direito.


Daniella Clark

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Poema de Ivan Eugênio da Cunha


Nenhuma interjeição é verdadeira.
Nenhum pranto, nem sangue (mas que drama!)
Jamais se derramou sobre o papel.
Nem mesmo é de sentir que se produzem
Os versos que despertam sentimentos.
Também não é de súbito lampejo
Que nasce qualquer coisa que se leia.

Os versos sempre são premeditados
E escritos brutalmente a sangue frio.

Ivan Eugênio da Cunha

sábado, 20 de janeiro de 2018

Beleza Assassinada


Primeiro ele veio com as mãos se punho
Depois os punhos cresceram

Aí ele beijou sem boca
Depois que a boca calava

Mais tarde ele cortou as palavras
E esqueceu do lamento
Por isso ele voltou e arrebentou o pescoço

Depois de rezado o terço da mulher que esvaia

Ele sangrou os dentes que mordiam os dedos
Apagando a aurora que se fantasiava de curvas

Aí ele pagou a conta e deixou trocados os Ombros as pálpebras e as pernas da moça
Não conformado voltou para devorar os Seios
E acabou cortando aos pedaços os olhos e os Sonhos que haviam

No início ele preferia os drinks os vestidos curtos vermelhos
Mas no fim
Ele sempre se armava de ódio inveja e tormento

Passou a tarde a noite o dia inteiro
Pensando em levar suas metades em sacos de plásticos

Mas já tinha gasto sua força estrangulando cabelos

Depois do almoço olhava atento e sorria sem Paredes
Havia calado para sempre sua imagem Impossível
Tomou um café fumou um cigarro e dormiu

Fernando Atallaia

quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

alta fidelidade?


Ainda para Renata Sammer – o começo de toda uma metáfora

moça
sou
bom
copiador
e,
estamos
11 anos
distantes,

eu
mais
para cá
você
mais
para lá
criando
imagens
distorcendo
realidades
em redes

apenas
virtuais
antes
fosse
em cadeia
nacional
para eu
dizer

nesse
país que,
construído
de braços
abertos,
te amei

como
algo
muito

novo
debaixo
do sol
cifrando

minha
felicidade

esperança
e realização
em sua capa
cidade

que
agora
sei
não ser
aquilo
que
imaginei
por isso
há algo
de ridículo
em mim,
atestando
e te reaproxi
(a)mando,
neste

agosto
chuvoso
de paisagens
laterais.
Ai de mim
que amei
alguém
que amou
outro
que ama
alguém
que não
é você.
Ah moça,
isto aqui
não é diário
talvez
nem poesia
não é Fiama
nem Arenas,
mas você in-

siste nessa
batida
dizendo
que digo
mentira
ao falar
que sou
o segundo
antes fosse

terceira pes-
soa e ressoar

num coração
mais aberto
menos amargo
enquanto
nos meus

poros
escapa
a pedra
escondida
debaixo

da língua
como
metáfora
originária?

Pedro Demenech

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Intransitivos


                        Alguns verbos -
                        INTRANSITIVOS -
                       são demasiado intransigentes!
Nascer, dormir, morrer
fazem de passivos seus frágeis agentes.

Renata Rosa

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

Lançamento do livro "Bioescritas/Biopoéticas"




Sinopse
  
O livro Bioescritas/Biopoéticas: corpo, memória e arquivos contempla investigações sobre os gêneros de escrita e atividades artísticas que conjugam vida, obra, subjetividade e mitologias pessoais junto com pesquisas na clave das metamorfoses e estudos pós-humanos, buscando a ultrapassagem de certos preceitos modernos, em favor de áreas temáticas e conceituais interdependentes e atuantes no cenário da literatura e das outras artes contemporâneas. As categorias e noções, as escolhas por este ou aquele objeto obedeceram ao ritmo das pesquisas individuais dos autores, mas dão a medida do trabalho empenhado dos grupos de pesquisa Bioescritas e Biopoéticas, comprometidos com a reflexão sobre questões que abarcam as condições de sobrevivência da subjetividade num cenário cada vez mais efêmero e mutável, no qual a precarização ideológica e as demandas por novas vias de participação e representatividade são cada vez mais urgentes.

Sumário

Parte I – Biopoéticas

- A aliança animal: sobre a história natural do antropoceno - Jens Andermann
- Paisajes de sobrevida - Gabriel Giorgi
- A pulsão bioescritural como método: as Galáxias de Haroldo de Campos - Eduardo Jorge de Oliveira
- Leviathan: animalidade e sensação - Lucas Murari

Parte II – Arquivo, vida, literatura

- De musas, monstros e fantasmas - Marília Rothier Cardoso
- Exílios: os diários de guerra do dramaturgo refugiado e do soldado brasileiro - Maria Helena Werneck
- A primeira distância: cartas do viajante Aluísio Azevedo a Graça Aranha - Marcelo dos Santos
- (Auto) retratos ficcionais de artistas: autoficção e alterbiografia: James Joyce, Joseph Heller e Silviano Santiago - Ana Maria de Bulhões-Carvalho
- Vinte anos depois: Pasolini revisitado - Italo Moriconi

Parte III – Arte, performance, gerações

- Mallarmé & Chacal: “um sentido mais puro às palavras da tribo” - Ana Chiara
- Porque ninguém pediu: escrita e invenção de protocolos de experiência - Carla Miguelote
- “Jeitos de corpo”: comportamento e espaço público na contracultura brasileira - André Masseno
- Obscenas: merda, poeira e certa loucura no arquivo do moderno (breve montagem) - Artur de Vargas Giorgi
- Escritura e artes plásticas: a poética secreta de Hélio Oiticica - Pauline Bachmann
- A criação crítica: proposição 1 - uma experiência sobre o tempo - Ivana Menna Barreto

Parte IV – Espaços, passagens, movimentos

- Repaginando Carolina Maria de Jesus - José Carlos Sebe Bom Meihy
- A casa e o corpo nos diários de Carolina Maria de Jesus - Daniele Ribeiro Fortuna
- “Afora isso, ia indo. Nem chorando, nem sorrindo.” Refletindo sobre narrativas de vida de refugiados - Sergio da Silva Barcellos
- O corpo e a rua: a questão do espaço e do olhar em “A janela de esquina do meu primo”, de E. T. A. Hoffmann - Jacqueline de Cassia Pinheiro Lima

Parte V – Mídia, técnica, vida

- Divas: corpo, performance e gênero em videoclipes - Denise da Costa Oliveira Siqueira
- A vida sensível e o sujeito da canção - Leonardo Davino de Oliveira
- O verdadeiro autor de Romance negro - Luiz Henrique de Nadal    

eldorado — amor à américa —


américa américa
américa homérica
hiperbólica hiperbélica

américa quimérica
super special ultra mega
bela y cruel américa

américa mágica
múltipla maquiavélica
bárbara babélica

lúdica lúbrica lisérgica
top & pop psicodélica
armadamerdamérica

Cairo Trindade

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

pintura - ou fundão


“gosto de você”
lata de tinta no homem invisível
(é uma boa metáfora mas me
faz pensar no Kevin Bacon)
ao mesmo tempo terno e
embaraçoso ser escrutinado assim
em aqualine monocromática
– fica bem parado –
pressinto a armadilha, o perigo
parado tanto tempo a gente
acaba devorado...
O quarto dela é pequeno, cheio de papéis e pincéis espalhados, um colchão; na mesa
de cabeceira um abajur, um boneco articulado e a princesa caroço. Perto da janela o
ventilador, um cinzeiro e uma arara < casacos de lã, tops, calças de yoga, macacões
jeans e saias indianas > Eu acho que aquela na pintura me olhando é a sua mãe, ou
uma amiga, ela me falou e eu esqueci...
– fica parado! –
– tá bom... –
sagitarianas não se apegam
(eu acho bobagem, mas ela acredita)
A gente brinca
Nãooo! Essa tinta não sai fácil...
Um novo tipo de sensação
- não é que gostar de alguém é simples, olha só -
marca a pele, nua...
- sexy -
E essa tinta demora a sair

(ainda que um pouco tóxica)

Guilherme Bon

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

DANTE


Dura
como pedra, a face
austera. Pesada pena
ao punho crava.
Crava ao punho, a lavra.
Na rubra touca, belas:
folhas de louro
paralelas.

Israel Azevedo

segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

CISÕES E INCÊNDIOS


Acordei muito cedo. A luz que se filtrava
por entre as persianas era uma luz macia.
Estremunhada de sono, a gata mal miava
ou seja, metaforicamente não ardia.

E quem aqui não estava também não entendia
o estado de cisão em que eu tinha acordado
(não, não disse tensão, disse cisão, de facto,
que é esse estado lento entre mar e maresia).

Tomei café, fiz sumos, eu, a que acordou cedo,
e eu, que não acordou, observei fazer,
e fiquei-me encostada entre fascínio e medo
olhando-me de fora, desejando não ser

cindida como língua bífida de serpente.
E então olhei o sol, e o estado de fissura
não abrandou, tomou e invadiu a casa,
e o sol, antes só sol, escureceu de repente
tornou-se um anti-sol, como cindida asa.

E a gata ardeu, acesa, dentro da noite escura.

Ana Luisa Amaral

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

Cidade


Cidade:
sopro aberto
corpo de artérias
carne claustrofóbica
berro de desertas vidas
veias
veios
rios
rochas cegas
chaga infectada
trincheira adormecida
miragem imolada
horizonte amputado
multidão insone tropeçando nas palavras
trens cheios de gente
medusa mascarada
serpente intocada do idioma alheio
infinita ilha babilônica
moinho de atrair delírios
argamassa elétrica de arrastar tragédias
epiderme tectônica
ar que arranha o vidro
olho sem colírio
noturno monolito
ícaro de algum sol invertido
dédalo perdido
arquitetura de gargantas mortas
engrenagem enferrujada
tarde gangrenada
sal que marca
e arde na ferida aberta
margem que devora os mares
esperma de palavras brutas
lugar de exílio dos poetas
âmago inerte do inferno
trânsito sonâmbulo do carbono
escafandros bruscos de perdidos hemisférios
mar que arrasta troços
e traz de volta
os destroços do naufrágio
submersas multidões
e fôlego oprimido de tantas Áfricas

Salvador Passos