quarta-feira, 30 de julho de 2014

maçã e macieira


O caminho das letras
na palavra
da palavra na frase
da frase no texto
do texto na Vida
podem talvez regar
uma pequena flor
escondida
na vasta plantação
de poesias adormecidas
no pequeno peito
daquele simples cidadão
que atravessa a rua
sem jeito
e com olhos embaçados
acompanha com tristeza
o mundo em sua explosão

José Maurício Ambrósio


Ariane com asas


Ariane sempre me surpreende. Quando eu menos espero, tchan-ran!, ela me aparece com mais uma. Dessa vez, logo que acordei, sobre o embaçado dos meus olhos, estava Ariane de frente para o espelho, claramente feliz, com as lindas asas que lhe nasceram. Disse que foi durante a noite. Ela mandou que me apressasse, porque agora precisávamos de um novo lar, maior e mais confortável. Que um novo fruto colheria. Ela precisava voar. Confesso ter ficado um tanto confuso com aquilo tudo: talvez com tantas asas, perca-se um pouco da humanabilidade. Mas não com Ariane. Ela estava convicta e merecidamente linda. Só vendo.

Ela me disse que agora pode voar. Sentir o vento bater nos olhos. A chuva queimar. Pousar sobre a flamboyant que a gente vê daqui de casa, confundi-la com suas novas cores. Que agora sua liberdade não tem mais aspas. Danadinha a Ariane! Sabe tudo. Sabia de tudo o tempo todo. Espera sempre a hora certa para falar. Todo aquele suspense da última semana me deixou assustado. Mas ela me confortou, dizendo para eu não me preocupar, porque só almas gêmeas ficam em silêncio sem constrangimento. Como eu aprendo com Ariane! Só ela faz de um canteirinho de plantas na varanda, sítio. De um feixe de luz, ocaso. E de qualquer asa, liberdade.

Paulo Henrique Motta


terça-feira, 29 de julho de 2014

Misticismo político


pistantrofobia

[prefácio] apenas havia passado dois minutos de jogo e a bola já estava no gol do brasil à contragosto da copa das copas. [primeiríssimo ato] quando dei por mim, eu já estava atrás das grades, porque tudo aconteceu tão rapidamente que não tive tempo de olhar para o relógio, me debater, gritar ou até mesmo pedir socorro a alguém que pudesse estar passando pela minha rua naquela tarde de domingo, mas nada disso me foi permitido por culpa do tempo, do álcool, da adrenalina, da aceleração, por culpa da taxa temporal de variação da velocidade que se apressou demais e, pronto, um-dois-três-quatro homens fantasiados de cinza, bota e cassetete já tinham pisado no rabo do meu cachorro no quintal, arrombado a minha porta envernizada, derrubado a minha cerveja, invadido a minha casa e me levado embora sem eu saber se havia roubado alguém, agredido, matado ou talvez difamado, só que não tive nenhum tipo de informação, não tive tempo, não tive olhos, braços, pernas e o pior é que não tive nem o reflexo de desligar a televisão que naquele momento pessoal caótico fui interrompida de olhar a apoteose futebolística que estreava na minha frente (outro gol da alemanha em pleno jogo da holanda com brasil), mas nada disso estava no script ao meu alcance, nada, nada e mais nada, somente a voz grave me zombando de fadinha e me dizendo que eu tinha o direito de ficar calada porque tudo o que eu falasse poderia ser usado contra mim em um momento posterior, mas a única coisa que consegui dizer foi que eles poderiam ficar tranquilos, afinal, apesar da fama, eu não tinha poderes mágicos e a minha voz não tinha poder nenhum diante das suas fantasia. [segundo ato] fiquei isolada durante uma-duas-três-quatro horas ou talvez o que eu acredite ser o espaço de tempo que estava sem observar nem a sombra de alguém, trancada num cubículo de um metro e meio quadrado, onde parecia uma gaiola para animais ferozes, só que não poderia ser apenas isso, meus amigos: eu sou uma menina magra, nunca matei ninguém, então não sei porque alguém me prenderia como num zoológico e me colocaria às vistas de turistas que resolvesse passear naquelas férias de julho enquanto o país festeja o show da bola organizada por uma tal de fifa, mas mantive a incompreensão, a imobilidade que atava as minhas pernas e braços, até o momento que, subitamente, apareceu um homem fantasiado e, assim, a minha voz se manifestou, saindo melancolicamente da minha bile, subindo pelo meu tronco, passeando pelo esôfago seco e chegando à boca questionando: o que vocês estão fazendo comigo? [terceiro ato] eu era a fada de neverland, meus caros, e isso bastava para que eu fosse presa: a resposta do homem fantasiado deixou isso em clarividência, já que evidentemente meu nome está atrelado à indignação, à rebelião, à voz do povo, à cobrança e, no país-tropical-abençoado-por-deus-e-bonito-por-natureza e por bola na rede (afinal, quem não sonhou em ser um jogador de futebol?), eu deveria estar sempre calada, se possível deitada a sete palmos de terra, porque nada pode sonhar em abalar a estabilidade dos sorrisos, das alegrias compradas a dólar, dos brindes da cerveja holandesa heineken (mesmo durante o três a zero), só que, apesar dessa dita-duríssima ação, todas minhas indagações não desvendavam a proposição inicial: se eu estava sentada no sofá assistindo televisão, por que diabos agora eu estava presa? [posfácio] apesar do país ser laico mas regido pelos cristão, eu estou diante de governantes médiuns, que jogam búzios, tarôs, bingo e bilhar, utilizam bolas de cristal, escrevem memórias do que ainda não viveram e, sobretudo, utilizam forças místicas (e por que não ocultas, né) para prever o futuro: eu estava presa por precaução, meus caros, pois meu nome, meu histórico e a minha indignação é lastro de destruição, é potencial de periculosidade, não estou do lado certo da luta, estou do outro lado da rua, e, portanto, rasguem a constituição, mandem um abraço pros direitos humanos e que se dane um peter pan sem sininho: cortem-lhe a cabeça, ordenou  imediatamente a rainha de copas (ou da copa?) antes mesmo sequer do primeiro gol da holanda. 

Gustavo Clevelares

terça-feira, 22 de julho de 2014

Lançamento do livro Só sei que foi assim



Lançamento do livro Só sei que foi assim, de Maria Biterello!
Dia 31 de julho em Juiz de Fora e dia 6 de agosto em São Paulo!
Mais informações aqui!

terça-feira, 15 de julho de 2014

Custódio


Custódio se casaria
Com a palavra
Mais bela.

Tentou de tudo
Para encontrar
Aquela que
O completasse.

Custódio se casou.

Cólera
Pegou-lhe ódio               
Perdulária
Exauriu-o com custo
Luxúria
Dava-lhe somente um lado.

Tentou, então, mudar;
Casou-se com Melífluo
Sem conjecturar o cônjuge.
Mas soava mal
A união, proibida.
Pior:
Suava nos poros.

Custódio virou
Então
Copidesque.

Hugo Pernet


Hugo Pernet é leitor-colaborador do Plástico Bolha e tem outros textos publicados aqui no blog!!

segunda-feira, 7 de julho de 2014

No bar


          “Muito bem, muito bem, admitamo-lo!” concedeu João ao seu debatedor. Um bafo etílico adensava o ar com as palavras que soltava. Opunham-se os dois sobre uma mesa de bar, onde a franqueza faz às vezes de genialidade. Num bar, o orador fica obrigado a ter discurso claro o suficiente para que mesmo um bêbado o entenda — e para que mesmo um bêbado o profira.

          Mas dizia João, “... admitamo-lo! Digamos que sim meu amigo, que os ortodoxos tenham razão e que nós, nós somos isso que eles dizem: que somos a corrupção da verdade que eles apregoam aos quatro ventos, e que cabe à nossa boa-fé escolher entre a submissão a seus dogmas ou a proscrição. Que somos, portanto, reles grupelhos perdidos, e que não ajudamos ninguém, quanto mais os pobres e miseráveis, a dignamente levantarem-se por sua salvação, contra o poder da besta, que faz do mundo refém de sua voracidade usurária, desse maldito amor ao lucro! Mas eles são todos uns velhos caducos! Não percebem a necessidade de renovação, não percebem quão crassa é sua defasagem histórica! Nossa causa precisa se renovar, como disse, e a adequação histórica não é pecado. Ele, a cujas palavras recorro em horas difíceis, não à toa é a quem me devoto: já nos orienta há tanto tempo, e quem mais soube viver como um homem de sua época, e, mais importante, à frente dela? Ele não pode ser esquecido, e os ortodoxos parecem que fazem tudo nesse sentido, preferem morrer abraçados com sua miopia! Fica difícil demais convencer as pessoas. Ele não ignorava a história — claro que não preciso lhe ensinar isso — é evidente que, também aí, devemos seguir os ensinamentos que hoje os velhotes enxovalham. Vivem presos em seus claustros! Não atentam para as novidades das ruas, e só querem discutir o “sexo dos anjos”! Ele foi um filósofo também, a partir da vida que viveu, e foi perseguido por tais ideias, sabes disso. Sua filosofia é um legado grandioso, sim, mas é nessa vida, na ação, na ética que provém dela que devemos nos embasar agora. Caso contrário, como faríamos a conversão dos povos, meu caro?”

          O confrade, cujo respeito pelas palavras do amigo não o furtaram de certa distração, assentiu positivamente com a cabeça por diversas vezes. Comovia-o a contundência de João. Mas o comoveria ainda mais sua capitulação naquele debate.

          “Eu sei João, estou de acordo com quase tudo que você falou. Mas seja sensato! Não podemos cismar com nossos irmãos assim, não podemos nos fragmentar, trocar alguma satisfação tacanha pela integridade de nossa missão. Deixe de ser orgulhoso. Pense, sem tanta afobação. Sejamos virtuosos, como deve ser nossa luta. E além do mais, de que nos adiantaria peitar os cânones? De nada, senão nos arriscar à expulsão. Quero o avanço de nossa causa, tu sabes, prezo pela solidariedade contra a opressão, contra a miséria humana, tanto quanto você. Sou fidelíssimo ao nosso propósito, não duvide disso. Mas assim, irrefletidamente, expomo-nos à exclusão, à excomunhão! O fanatismo sempre foi um mal entre nós, não recaia nele, João. Nunca devemos nos esquecer do nosso fim, do qual não podemos fazer nunca um meio: o homem. Lembra-se? Caso contrário, por que entregamos nossas vidas a isso? Abdicamos das mulheres, da família, dos prazeres mundanos... E afinal, a ala tradicional é velha sim, mas também mais experiente e calejada que nós, já passaram por tanta coisa, temos que nos resignar a nosso lugar também. Seja prudente Joãozinho...”

          Deixou pairando o conselho, para vê-lo decantar no ambiente. À tardinha, o bar estava escasso em clientela, e as frases fervorosas dos amigos preenchiam-no. No chão formavam-se, lá e cá, ninhos de sujeira acumulada, cobrindo o piso com um tapete enegrecido. O vento que soprava na rua se segurava imóvel dentro do estabelecimento. Séries horizontais de cervejas, cachaças e outras bebidas eram sustentadas em prateleiras paralelamente dispostas sobre o balcão, encimadas por uma velha tabela de preços. Sob ela, o ocioso dono do bar limpava a mesa, os copos e os ouvidos para melhor escutar a vida alheia. Feita a réplica, João demorou-se a responder. Colhia com cuidado os contra-argumentos que o amigo cultivara em sua cabeça. 

          “Pois é, mas a doutrinação já passou da conta. É arcaica demais, naufraga diante da apatia geral da população. Como podemos tocar os céticos? Infelizmente, a vertente clássica segue a mesma decadência de nossas instituições antigamente tão sólidas. Nem contamos com a segurança das diretrizes da sede europeia mais! Deus nos ajude... E nem tente me lecionar sobre experiência, ora! Você sabe que não sou tão infante assim, já fiz muito pela organização também. Calejado? Calejado sou eu! Quem fez mais pela irmandade dos homens, pelo amor solidário ao próximo, à humanidade? Embrenhei-me no campo, sabia disso? Fui aos rincões mais relegados da Terra, abaixei-me à lama que a ganância de idólatras do dinheiro difunde nas margens do mundo. Ele, que foi sem dúvida o maior dos sábios, nos alertou para o lugar dos ricos no futuro que há de se impor sobre todos nós, e que está inexoravelmente cada vez mais próximo. Sem falsa modéstia o digo: estive junto aos flagelados mais humildes desta América Latina, da África e da Ásia, semeando a verdade redentora entre os famintos. Compassivamente busquei lhes transmitir a sabedoria e a graça do nosso caminho. Nosso, e o único, caminho para a emancipação. Fui fazer a militância com a qual nos comprometemos há muito, conduzir os fracos à iluminação, sabe? Ele já profetizava o desconhecimento de fronteiras do que está por vir: hoje uma utopia, sim, mas que há de se tornar real para todos, estejam conosco ou não. Aí infelizmente será tarde para os incrédulos se arrependerem. No novo mundo a justiça será perfeita, como tudo o mais, e por isso severa com os que obstaram a sua chegada.”

         A voz de João não se gastava somente em quem pretendia. Agora, escutava-a também com maior atenção o dono do bar que, na surdina, se intrigava com o messianismo da dupla. Discretamente, aproximou-se da mesa dos debatedores, atraído pelo verbo solto de João, que continuava o discurso.

          “A beleza é a única coisa no mundo da qual os homens não esperam justificativa, meu amigo. E por isso ela é a única justificativa possível para o que fazemos, a única que resta absoluta, independente de causas externas. Por isso lutamos, irmão. Porque é bela a nossa luta. Não só porque é moral fazê-lo — ou, como sei que és arredio às afirmativas que reduzem a sutileza da ambiguidade, porque é imoral não fazê-lo —, não só porque qualquer outro tipo de vida é falso, o que dá no mesmo que ser imoral, e se resume em nosso dever ético. Mas porque a beleza, como disse, é o universo das razões, de qualquer razão, que qualquer um poderia demandar de nossa missão. Portanto, a justificativa de que fazemos o que fazemos porque nos preocupamos com o futuro da humanidade, porque agir de outra maneira seria atentar contra o manifesto da verdade, contra suas palavras vivas — hoje, mais do que nunca —, só se basta nisto: servimos, antes de tudo,à força que move o mundo, a história: a beleza. É a ordem harmônica das coisas, que faz do homem a criatura mais maravilhosa que se pode encontrar, e a primeira dentre todas elas, porque agente capaz de reconhecer e realizar a beleza. É a língua exclusiva da boa natureza para nós. Da beleza resistente de hoje, que deve também resistir a nosso ocaso, à beleza fulgurante do amanhã. Essa é minha visão das coisas, como já te explanei uma vez, eu acho. O que fazer? Ele é quem deve governar nossos passos. Nele, encontramos a trajetória dessa beleza já toda delineada, só é preciso ler.”

       O dono do bar já não se aguentava diante do espetáculo singular daquela tarde modorrenta. Inclinava-se a intervir na conversa para anunciar aos dois falantes como se lhes irmanava no assunto que ele, em anos de profissão, verificou ser bastante incomum no meio boêmio.

         “Ele! Ele! Não abuse, João! Ele te legitima qualquer argumento! Ele é quem você trai ao propor esse comportamento desviante, afastando-se dos seus, dos companheiros de tanto tempo... Ok, acho que discordamos, enfim. Ele também é pra mim, em última instância, o ponto máximo mesmo, mas vieram tantos seguidores depois que contribuíram de alguma forma para engrandecer, intelectual e praticamente, a obra a que nos aferramos, João. Ele os aprovaria, tenho certeza. Sua morte não poderia ser, como não foi, o fim da mensagem que anima nossos esforços hoje, Joãozinho. Por isso devemos respeito à tradição que nos legou essa mensagem. Ele...”

          “Com licença meus senhores”, finalmente interrompeu o dono do bar, “Mas não pude deixar de ouvir a conversa. Sou um homem religioso também, e fico muito feliz em ver que ainda há gente interessada em discutir e concertar os percalços da Igreja. São tempos difíceis para quem tem fé, não é?  Mas com tanto empenho assim, sei que vamos superá-los, sim, vamos.”

          Perplexo, João tratou de absorver as palavras do recém-chegado com curiosidade.

         “Desculpe amigo, do que acha que estamos falando?”

          A resposta veio com o embaraço do interventor, que não esperava reação desse tipo, mas a acolhida de quem é surpreendido por um velho amigo.

          “Ora, vocês estão conversando sobre Ele, Deus encarnado, Jesus. Não é?”

          “Não”, retrucou João, “Estamos falando de Marx.”

Filipe Novaes