domingo, 21 de julho de 2024

Com carinho, de Beatriz Arantes

Estou escrevendo na cozinha. O ambiente mais estreito da minha casa e onde todo dia de manhã tento consolidar uma rotina. O ambiente que menos mudou nos meus poucos vinte anos de idade. E talvez menos ainda nos vinte anos anteriores que minha mãe viveu aqui. Queria ter uma máquina de escrever, que nem ela já teve. Um costume antiquado, vintage, retrô, seja lá qual for o termo adequado. Mas imagino que seja mais propício a esse cômodo e a essa iluminação calorosa do que meu computador desproporcional, de coloração cinza metálica, que se assemelha mais a uma espaçonave do que a um objeto cotidiano. Se bem que hoje em dia tudo é cinza mesmo, tal qual um rio poluído. E, assim mesmo, somente serve para refletir nossa imagem.

Estou escrevendo agora porque sonhei. Sonhei com um escritor dizendo-me o que escrever. Devo ser a maior piada do feminismo contemporâneo: uma jovem artista, sempre independente em todas suas formas criativas, resolve seguir estritamente o que um homem, fiel de uma única arte, tem a lhe dizer sobre como criar. Mas o conselho era bom, melhor do que os da vida real. De qualquer forma, não há dissonância cognitiva alguma: ainda que personificado na figura de um homem, o conteúdo provém inteiramente do meu eu onírico. Inconscientemente eu, mas, ainda sim, eu mesma.

Escreva com carinho. Foi esse o conselho revolucionário que ouvi da minha mente sonhadora esta noite. Simples, mas, sobretudo, efetivo. Acordei com um impulso acalentador sem igual, uma ternura materna digna de criador com sua criação. Não havia nada sobre o que escrever, senão sobre isto. A escrita como conteúdo e o carinho como forma.

Mas ainda que aquele escritor de pouca coisa sabia, seu personagem onírico me provocou um desafio e tanto. Apesar da minha determinação, me deparei com um impasse prático: como se escreve com carinho? Tudo que eu tenho produzido até então — pouca coisa, de fato, mas isto não vem ao caso — jorra a partir de uma nascente de sofrimento inesgotável, formando um rio de águas turvas de alívio a partir do momento em que é posto no papel. Como posso atrelar esta dor a algo tão tenro quanto o carinho? Seria puro mau gosto da minha parte me colocar nesta posição quando genuinamente esta não me pertence.

Mas será que de fato não me pertence? Ou será que apenas não permito pertencer a mim?  Deve haver alguma correnteza de carinho no meio desta tromba d'água que chamo de sofrimento. Afinal, se tal mensagem do escritor em mim despertou tamanha ternura, talvez eu seja capaz de canalizar esse sentimento em palavras. Criar uma nova nascente, mais esperançosa e vivaz do que a anterior.

E ao redor de toda nova nascente, ganha-se vida. Vida como nunca antes vista. A mata ciliar se firma naquele solo fértil e produtivo; populações ribeirinhas se sustentam da fluida diversidade jorrada; e uma fauna perigosamente bela perambula pelas árvores recém esverdeadas. É um futuro tão próspero que me cego diante da sua visão. Digna dos meus melhores sonhos, fruto da minha melhor versão.

Esboço um sorriso perante este fluxo de imagens intrometidas, metidas a tomarem conta do meu pretenso curso. Escreva com carinho, claro, escreverei, meu bem. É o que me resta para desaguar no plácido oceano de equilíbrio que me foi predestinado.

Entretanto, o meu sorriso logo se desmancha e meu lábio apreensivo prende-se sobre meus dentes. A trajetória de um rio é sempre sinuosa, permeada por declives e vales. Pedras diversas surgirão pelo meu percurso, quiçá montanhas inteiras. Estarei disposta a enfrentar tudo com carinho? Minha respiração se encurta e minhas mãos desesperadas agarram-se à frágil mesa enquanto tonteio-me diante o despedaçar daquilo que considerava ser meu coração. Já consigo me ver afogando em um redemoinho de sofrimento, apegando-me às escassas correntes de carinho que uma vez julguei potentes o suficiente para me sustentarem. Assumo a desilusão completa, sou apenas um ser terrestre buscando me aventurar por essas palavras inquietas.

Aqui jaz lamentosa minha tentativa desesperada de fazer jorrar carinho, encharcando com minhas lágrimas caridosas estas páginas embranquecidas por uma luz artificial e este cinza metálico computacional porcamente reluzente.  Talvez as nascentes só…surjam, tento me convencer em meio aos soluços. Não se pode forçar um solo a jorrar aquilo que ele não queira. Mesmo que o homem dos seus sonhos lhe diga o contrário.

Enxugo relutante meu choro afluente e retomo inebriada a minha rotina de dormir, como sempre faço após uma longa sessão de escrita. Ou após uma longa dose de vida. Sim, são cinco da tarde ainda, mas é tudo a que posso recorrer. Recolhendo-me sobre as cobertas, acesso os meus mais vívidos sonhos, prestes a descobrir uma nascente de carinho genuíno por mim mesma. Enfim, guardo a esperança de, em um solo fértil, uma nova safra de mim florescer.

Beatriz Arantes

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