quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Marco Nanini é fiel a um teatro de ideias ao reencontrar Gerald Thomas em “Traidor”

Marco Nanini em Traidor | Foto de Matheus José Maria

Vinte anos após armar a cena com a reflexão política de Um circo de rins e fígados (2005), Marco Nanini continua em cartaz com o espetáculo em que reencontra Gerald Thomas, um dos encenadores mais potentes do teatro brasileiro. A reunião de ator e diretor acontece em Traidor. Em rotação pelo Brasil desde novembro de 2023, mês em que estreou em São Paulo (SP), o espetáculo aterrissa no Teatro Luiz Mendonça, no Recife (PE), para duas apresentações agendadas para 18 e 19 de outubro.

Traidor tem texto escrito por Gerald Thomas a partir de observações ácidas sob o fervente caldeirão em que está mergulhado o mundo contemporâneo. Na cena, marcada pela exuberante estética visual criada pelo diretor que se alterna entre Brasil e Nova York, Nanini personifica um ator que, às voltas com o mundo em ebulição da própria cabeça, reflete com certo ar nietzschiano sobre os (des)caminhos do Homem, enquanto permanece isolado em uma ilha, cercado de indagações existenciais.

“Se houvesse um cruzamento entre Kafka e Shakespeare, então esse seria Traidor, uma espécie de híbrido entre o Joseph K de O Processo e o Próspero de A Tempestade, cuja mente renascentista olha para o futuro da civilização, perdoa os detratores e os absolve", sintetiza o encenador.

Na encenação de Gerald Thomas, o mundo é um reino em desencanto, terreno fértil para o cultivo de questionamentos e reflexões existenciais de um ator que se sente estranho no ninho da era digital e das redes nem sempre sociais. Um ator que, no delírio da mente, mostra resiliência na defesa e manutenção da emoção. “A gente se emociona, sim”, repete o ator, em elo com o espetáculo de 2005, encerrado com frase similar.

O ator está só em cena. Nem a presença do coro masculino que encorpa a encenação ao transitar pelo palco dilui a sua solidão na dramaturgia fragmentada e intencionalmente desconexa de Gerald Thomas. Povoado por destroços, sinais da decomposição do mundo contemporâneo, o cenário entroniza o ator ao mesmo tempo em que o desnuda diante do público. O ator-rei está nu, incapaz de se vestir com a bestialidade cotidiana que o assombra como um fantasma.

Traidor se conecta com a obra do escritor tcheco Franz Kafka (1883 – 1924) porque põe em cena a angústia do homem moderno — no caso, um ator, mas poderia ser qualquer homem —  diante do absurdo da condição humana. Teatro do absurdo?  Sim: há muito de Samuel Beckett (1906 – 1989) na medida em que o texto não está lá para ser “entendido” como uma apostila ou uma cartilha da dramaturgia convencional, e sim para ser sentido como um turbilhão de sensações aflitivas que traduzem o descontrole da existência humana no caos apocalíptico do século XXI. Se o teatro por vezes soa absurdo, é porque a vida é absurda.

Totalmente entregue ao jogo cênico proposto por Gerald Thomas, Marco Nanini expõe em Traidor a fidelidade a um teatro de ideias em que música, iluminação, cenografia — todas exuberantes, como de hábito nos espetáculos de Gerald — enchem olhos e ouvidos sem atenuar o desconforto da mente do espectador.

Diante do apocalipse iminente, o dramaturgo aposta na colagem de cacos (em afinidade com o cenário em ruínas) e de ideias encadeadas com certo humor e sem lógica aparente no texto provocativo. Em Traidor, o trabalho de Marco Nanini está posto a serviço do teatro de Gerald Thomas. O que somente engrandece o ator no exercício inquieto do ofício.


Mauro Ferreira


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