domingo, 8 de maio de 2011

Casa dos desejos

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Na sua casa não havia tapetes. Foi isso que lembrou quando os pés sentiram o macio. Naquela outra casa não se admitiam tapetes nem pelúcia, porque a mais nova era cheia das alergias e, mesmo depois de curada, agora tinha o caçula, e “Deus me livre outra vez”, era o que se dizia.

Naquela outra casa também não se acordava de calafrio porque na Barra da Tijuca não faz frio como na Zona Sul, e isso era outra coisa que ela havia descoberto. Ainda era tempo de se acostumar à mudança. Por enquanto ainda acordava com a surpresa de estar em outro lugar, como quando se viajava e, ainda de olhos fechados, dá para lembrar que não se está em casa. Mas ela estava naquela idade de se prever e sabia que era questão de tempo até lembrar, um dia, quem sabe na hora do almoço, dos anos passados no outro lar. A partir daquele dia, as tardes seriam vazias.

O problema em desejar certas coisas por muito tempo é que, quando a gente as tem, sente falta de desejá-las. Talvez não tivesse tanta graça assim dormir às três e acordar ao meio dia, nem ver TV em paz, nem cantar sossegada, sem choro de criança, sem “atende a porta” ou “traz o telefone”.

Na casa nova não tinha café na cama, não tinha beijo do pirralho. Não só sentiria falta de desejar o que agora a aprisionava, como passaria a desejar, com força, todas as outras coisas que já não tinha.

O caminho do tapete até o espelho era dos menores possíveis, mas era um caminho enorme, arrastado. Ela sabia que, naquela mania de se prever, acabava sempre antecipando tudo e, por isso mesmo, tentou adiar ao máximo a hora de se ver refletida.

De fato, chegando ao espelho, viu uma velha prematura exibindo sua solidão nos olhos cansados. Fez que ia correr, mas voltou. Parou quase de perfil, os olhos ainda alcançando o reflexo. Era uma velha sozinha. Num choque, correu ao telefone. Na pressa, discou um número a mais, agendando uma visita que, lhe foi dito – e era óbvio – não precisava ser agendada.

Logo que chegou, soube que a casa ainda lhe pertencia – ou que ela ainda pertencia à casa – quando percebeu que não estranhava cheiro nenhum. Pediu um abraço, ganhou um outro, um “alô” da cozinheira gorda. Cada vez mais gorda, para mostrar que o tempo passava. Atravessou a sala sem tapete, o triplo da sua, afundou no sofá e ali ficou para sempre, por alguns minutos. Prestes a criar raízes e virar parte do assento, tomou outro choque e foi parar no corredor. Ele era tão minimamente enorme e arrastado como o caminho do tapete ao espelho. Isso porque ela teria, e o sabia, que se encarar ao final.

E, como não poderia não ser, lá estava, pendurada na parede, a menina de olhos viris, a franja mal cortada, um tênis de cada cor e um vestido azul de festa. Dessa vez, não fez que ia correr e nem pensou em ligar, porque ninguém atenderia. Mas, agora sim, ficou em pé, descobrindo que era, ali, tão livre para desejar ser velha quanto seria, lá, para desejar ser moça.

Mariana de Almeida Moura Milani
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Mariana de Almeida Moura Milani ficou em primeiro lugar na categoria "prosa" do Prêmio Paulo Britto, organizado pelo PET do departamento de Letras da PUC-Rio.
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Um comentário:

Anônimo disse...

Texto lindo.
Senti muito todo o vínculo com a casa e sua representacão histórica, mesmo que em um universo tão pessoal.
Fernanda Marcello