quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Último desejo

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Há pouco mais de duas semanas, Aurora recebeu e-mail das irmãs, em que reconhecem o imenso valor psicológico de sua dedicação no decorrer dos anos, desistindo assim da parte que lhes cabe no apartamento. A voz grave e forte, lia a mensagem alto, para as paredes, como se fosse um político em campanha. E se alguém ouvisse? O que é que iam pensar dela? A mãe esticada, ainda quente, olhos encovados, no quarto ao lado. Aurora estudava a mensagem impressa. Entendia-se melhor com papéis do que com a tela de computador. As irmãs não haviam chegado, ocupadas com as respectivas famílias. Ela é que teve de enfrentar sozinha a situação. O principal da herança lhe fora concedido. A divisão entre as três se daria apenas quanto ao dinheiro aplicado no banco. No passado, chegou a pensar que o pai fosse capaz de perder no jogo o segundo andar da cobertura. Morreu antes. Já refletiu muito sobre isso e concluiu ter sido melhor. Do contrário, a mãe não suportaria, terminando por se matar ainda mais cedo. Sim. Porque só pode ser suicídio, uma lenta agonia, o que ela resolveu fazer consigo, desde que tiveram de demitir o motorista, a governanta, deixar de receber em jantares, e nunca mais degustar um Veuve Clicquot. Pelo menos, foi possível conservar a cobertura. A mãe não teria morrido dignamente num apartamento menor e Aurora... Bem, como poderia agora receber as visitas de pêsames e hospedar as irmãs, sobrinhos, os cunhados que são uns queridos? Tudo isso sem um sofá para quatro lugares num living que não comportasse três ambientes? Não daria certo. Além do mais, apesar do trânsito crescente na avenida ou do excesso de turistas estrangeiros acompanhados de moças brasileiras... Apesar disso, convenhamos, ela e a mãe moravam bem. Indevassáveis. Com vista para o mar. Sentiam-se seguras com as comunidades recém-pacificadas a algumas quadras. Mas nada disso interessa agora.

O importante é que tinha achado linda, a mãe morta. A primeira providência foi escolher o vestido com o qual seria enterrada. Optou por um tom beterraba. Que valorizasse a cor da pele. E um modelo com acabamento de laço no pescoço. Que escondesse o colo magro. Delicadamente aplicou a maquiagem. Mas elogios, esperava recebê-los por conta da peruca, perfeitamente apropriada, segundo suas próprias palavras: Minhas irmãs não estão habituadas e achariam a coisa mais diferente eu vestir mamãe pela última vez. Sendo que a notícia desse ato, tão nobre, tão puro, das irmãs em relação ao apartamento, superara todas as expectativas. O e-mail ela imprimiu, leu e relê agora não muito certa se as irmãs viriam. Deixou as malas arrumadas, no chão, ao pé da cama: Vou sair por algumas semanas. Com parte do dinheiro que está no banco. Será que vão achar um absurdo eu passear em pleno luto? Só eu sei o quanto mereço descansar depois do que tenho vivido e de tudo o que fiz por elas e por mamãe.

E pensar que ainda ontem, como todos os dias, a mãe tomara a sopa que ela mesma serviu conforme todas as noites. Recostou seu corpo nos travesseiros e, nessa posição que julgou a melhor, foi instigante, entre uma colherada e outra, observá-la. Os olhos da mãe percorreram o quarto e, dando-se por satisfeita, levantou timidamente uma das mãos. Até sorriu. Nessa posição, doente, manteve-se boa parte da segunda metade da vida. Aurora se lembra de que uma vez, após a morte do pai, a mãe começou com umas ânsias de vômito, umas queimações no estômago. Foi mais ou menos à época em que fizeram as contas, desesperadas, chegaram a considerar a possibilidade de procurar emprego, coisa que nenhuma das duas esteve acostumada. Sentiu-se bastante triste, ela se lembra, mas foi necessário recorrer aos cunhados e aceitar sua ajuda para que mantivessem ao menos a diarista duas vezes por semana. Passou a cozinhar para a mãe. Passaram a viver sem testemunhas. Preciso sair uns dias, espairecer. E o dinheiro de que posso dispor é exatamente a conta daquele pacote para Buenos Aires em baixa temporada: Ah, o outono em Buenos Aires! Uma das irmãs vai reformar a casa porque dá preferência a essas coisas. A outra vai guardar na poupança. Tem medo de o marido largá-la a qualquer momento! Eis o que diriam aos filhos em pensamento, olhando-os com satisfação vingativa: O quê? Dividir com vocês o dinheiro? Como não ceder à tentação de gastá-lo ou simplesmente guardá-lo, como se fosse uma recompensa pelos sacrifícios da maternidade?

Ontem à noite, depois da sopa, Aurora endireitou a mãe na cama, verificou a dobra do lençol sob seus braços e notou que ela mordeu com as mãos o cobertor de lã. Infelizmente aquela era hora de tomar banho e teve de deixá-la. Mais tarde, distraiu-se organizando a maleta de remédios, que guarda trancada na gaveta da cômoda em seu quarto. Remédios, aliás, não faltam na casa. Desde que a mãe adoeceu, um dos cunhados, o clínico, vem cuidando dela com a dedicação de um filho. Isto do ponto de vista médico. Porque o cuidado de todos os dias, aquele imenso trabalho inerente aos males crônicos, este ficou a cargo da filha-enfermeira. Modéstia parte! O cunhado receita uma série de medicamentos, segundo ele, de última geração e que – diz com aquele seu jeito empostado de doutor: “proporcionam o bem-estar do paciente”. Ela achava meio sem sentido o bem-estar para morrer. Precavida como sempre, mantinha na tal maleta analgésicos tradicionais, antitérmicos e até mesmo anti-gases. Mamãe deu para ter dores terríveis após a sopa. Só podem ser os gases, ela apostava. Ontem à noite, distraída, esqueceu-se de retornar ao quarto da mãe. Debruçada sobre as caixas de remédios, todas de uma semelhança insuportável, adormeceu sem concluir a tarefa.

Vou me recostar um pouco antes do velório. Estou cada vez mais curvada de tanto dar banho, a sopa, trocar fralda. Creio que assim seja feita a vontade de Deus. Não tenho do que reclamar. Fiquei sozinha para realizar os mínimos desejos de mamãe. Havia um remédio que o cunhado-clínico naturalmente não aprovara, mas que era um santo elixir para as azias da mãe, o picolé de abacaxi. Um bálsamo, o picolé tinha a vantagem de acalmá-la durante horas. Até uma soneca ela tirava após as lambidas de todas as tardes especialmente na última semana. Não digo que o quadro tenha piorado muito neste período. Mas a verdade é que a mãe caiu em silêncio. Como assim? Perguntou a vizinha de cobertura, quando conversavam através da mureta, enquanto esta tomava sol e Aurora observava o movimento, o corre-corre de seus netos atrás de um bichinho de estimação por entre as folhagens que cercam a piscina. Como assim? Não, mamãe não entrou em coma. Apenas fica me observando, os meus cuidados.

E foi na manhã seguinte a tal conversa com a vizinha, sem ninguém por perto como era de costume e sem saber ao certo o quanto de morte dispunha o corpo da mãe, que Aurora entrou no quarto doente. A filha estava um pouco mais descansada. Por um lado, conseguira dormir melhor aquela noite. Por outro, a cabeça completamente aérea. Tinha nos ouvidos ainda o vinil de Dolores Duran da noite passada. No momento em que se curvou finalmente para ver, a mãe se debatia, ofegante. Tentou suspender a cabeça, ensaiou algum movimento com os lábios como se fosse revelar um segredo. Aurora inclinou-se para ouvir. Parecia finalmente a despedida. Mamãe, o que quer afinal? Então as maçãs cadavéricas de seu rosto azulado momentaneamente inflaram e, até meio coradas, junto com o nariz adunco e os olhos fundos: Se me ama tanto, como sei que ama... Se é tão boa filha, como sempre foi... Não faria mal se preparasse hoje, em vez da maldita sopa, um coelho ao vinho, como nos bons tempos. Hein?

Não teve como pensar. Ocorreu-lhe imediatamente a cena do coelho de estimação dos netos da vizinha de cobertura. Num salto, alcançou o terraço, noutro a mureta, avançou sobre o apartamento ao lado, até agora não sabe como. Se acaso a tivessem pego... Aurora se considerava valente o necessário. E na verdade foi. Capturou o animal enquanto ele saboreava morangos rasteiros em um vaso comprido que margeava o muro. O ar ficou rarefeito embora fossem apenas oito os andares do edifício. Talvez por isso ou qualquer pretexto, o coelho não ofereceu resistência. Talvez. Ou porque lhe fora conveniente se abrigar das perseguições desenfreadas das crianças travessas nos braços de Aurora. Com o coelho espremido nas mãos, ela desceu à cozinha de seu apartamento. Mas a dificuldade maior estava por vir. Preparar a receita. Primeiro foi ao quarto avisar a mãe que esperasse, o banquete chegaria a tempo. Perguntava-se como liquidar o bicho. Não poderia usar a coleção de armas do pai. Um descalabro, além do estrondo que despertaria a atenção. Naturalmente passou pelo estômago a idéia do tanque. Alguns segundos submersos seriam suficientes e assim foi feito. Um, dois... quatro, cinco...oito...dez... dezesseis... Aurora segurava firme com uma das mãos a cabeça do coelho debaixo d’água; com a outra apalpava o peito, e não conseguia mais parar de contar...vinte... e dois... e três... Ela ainda tem diante dos olhos os traços sarcásticos do animal. Durante esta etapa do preparo, encarava-o, e depois, já sobre a pia, aquelas pupilas transpareceram a morte. Uma baba espessa e restos de morangos saíram da boca. Melhor do que tudo isso, porém, foi levá-lo de bandeja à mãe. Assado, ao vinho, conforme desejara. Alguns não entenderiam, se a vissem. Esse foi o último desejo. Tão bem satisfeito, que a mãe se contentou em continuar tomando a maldita sopa pelos dias que lhe restaram.

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Beatriz Castanheira

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Beatriz Castanheira ficou em segundo lugar na categoria Prosa do 3º Prêmio Paulo Britto de Prosa e Poesia, organizado pelo PET-Let da PUC-Rio.
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