terça-feira, 6 de março de 2012

A Realidade de Valentina

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Eram quase dez horas e o pensamento de perder sua primeira aula na universidade não passava pela cabeça da jovem Valentina – apesar de tudo indicar que realmente chegaria atrasada. A maratona de exercícios fisicos a que vinha se submetendo há apenas dois meses era extenuante, porém sua condição mental hiperativa equilibrava-se em uma paz e bem-estar recém conquistados por ela. O médico do posto de saúde acertara. Agora, dormia bem, alimentava-se sem excessos e sentia que tinha pensamentos ordenados como nunca antes na vida. O momento parecia perfeito: os tão desejados dezoito anos chegaram presenteando-a com êxito no Enem e a vaga na faculdade pública de letras. Num sopro, a vida apresentava-se repleta de novas emoções. O ônibus saculejava e as formas-pensamento pareciam acomodar-se àquele movimento não determinístico. Dobrava uma rua, a mente acompanhava aceitando e criando possibilidades. Carros em zigue-zague, pessoas sem parar, buzinas e roncos, falas próximas e movimentos labiais pareciam acontecer primeiro em sua cabeça, depois numa dança física embalada por um vento quente quase ininterrupto. Mal os pneus descolavam do asfalto e alguém pedia para descer, outro subia, e assim ideias seguiam trocando de lugar com pessoas. A janela embaçada refletia a luz do sol e cristalizava pontos coloridos que pareciam pequenos diamantes ali colados. Enquanto metabolizava um duplo sanduíche de atum ralado no pão de forma com pouca maionese e um suco de laranja com gelo, o corpo descansava e agradecia o calor gostoso da manhã. – Anjos moram no sol, você sabia? Não, disse Valentina. A amiga continuou falando, tecendo considerações sutis sobre terceira e quarta dimensões aqui na terra e que lá naquele pontinho amarelo moravam seres de luz que eram puro amor. – É, faz sentido, concluiu Valentina, ao mesmo tempo que um sinal verde entrava em colapso, amarelo, vermelho, e sua atenção fixou-se em quem atravessava a rua: pisavam aleatoriamente, ora em listras brancas, ora na ausência delas, as listras pretas (como insetos pousando numa zebra sem saber dizer se encontram-se num animal branco listrado de preto ou num animal preto listrado de branco). Ela mesma, com mãe evangélica e pai católico, ainda não chegara a conclusão alguma sobre sua condição existencial – afinal, era um ser espiritual vivendo uma experiência carnal ou um ser carnal em busca do espiritual? Lembrou que seu pai, apesar de velho, também tinha lá suas dúvidas. Se era a pobreza que gerava ignorância ou se era a ignorância que gerava pobreza. E pedia aos filhos que estudassem para não ficarem ignorantes e acabarem pobres, e que trabalhassem o quanto antes para poderem poupar e nunca admitissem pensar em pobreza sequer uma vez no dia. Notou algumas crianças de uniforme, e logo procurou o relógio de rua: seu irmão estava fazendo prova naquele exato momento. Por força do hábito, começou a rezar um pai nosso, pois o garoto precisava permanecer na escola pública ou não teria com quem ficar durante o dia até a mãe sair do trabalho. Pai nosso que estás no Céu... mal começara e uma enxurrada de imagens projetava-se em sequência. Pipas e nuvens, velas acesas, beijo de mãe saindo pro trabalho, o final da novela, menino novo na rua, o domingo com a vovó, calça furada, menstruação descendo, o treino da manhã... O ônibus freiou bruscamente destacando a imagem de uma boa cortada que dera no segundo tempo, seguida do olhar elogioso do treinador. – Vocês criam sua história de vida, sabiam? A mensagem do dia, sempre transmitida no final de cada treino, continha sincero afeto e torcida. – Visualizem o que querem, acreditem, hajam. Era o que ela vinha fazendo na base da intuição, e hoje sentia-se especialmente confiante e criativa. ...Seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu... A ideia de um senhor de barbas e túnica branca sentado o dia inteiro numa nuvem, olhando por todos aqui embaixo, ora cuidando, ora castigando, conforme nossos comportamentos, parecia inventada demais para ser a realidade. Seu irmão já estava em sua mente, inteiro. E a ele diretamente ela dirigia pensamentos de afeto e palavras de boa sorte. Esse ato, sim, lhe parecia mais com a descrição de Deus. Beijou o irmão, acariciou-o envolvendo seu corpo em amor (como os anjos que moravam no sol fazem) e o viu saltar de alegria e abraçar os pais por ter conseguido atender o pedido de permanecer na escola do bairro. Sua mãe alegrava-se pela economia da passagem de ônibus e beijava a cabeça do garoto, olhando agradecida a filha por sua intenção manifesta. Continuou rezando e lembrou do sanduíche de atum, que a essa altura lhe parecia mais com braços, pernas e pensamentos que com alimento recomendado para o pós-treino. As primeiras mordidas supriram com eficiência agachamentos e outros movimentos preparatórios. As seguintes, maiores devido à altura exagerada do miolo de três pães de forma com recheio duplo de atum ralado e pouca maionese, pareciam voltar no tempo e fazê-la bater forte na bola, pular e bloquear com a agilidade necessária, permitir imaginar antecipadamente os ataques do outro time. A segunda metade inteira, se ela realmente estivesse criando sua própria história, encontrava-se naquele instante guardada por um transbordante ânimo adolescente ancorado em uma nova consciência amplificada e interessada em trabalhar oportunidades possíveis: logo iria transformar-se em sorrisos e perguntas no seu primeiro dia de aula.

Carlos Eduardo Costa
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