segunda-feira, 20 de abril de 2015

Cidade real maravilhosa, de Marco Alexandre de Oliveira


O Rio de Janeiro é realmente uma “cidade maravilhosa”, como diz a canção, “cheia de encantos mil". O que encanta, no entanto, não são apenas as suas inúmeras belezas, nem os seus inesquecíveis 450 anos de história, mas os seus incríveis contrastes, que revelam as incomensuráveis contradições desse “coração” do Brasil.

Por um lado o mar, por outro as montanhas. Por um lado a Zona Sul, por outro a Zona Norte. Por um lado o morro, por outro o asfalto. Assim, entre a natureza e a cidade, o cosmopolita e o provinciano, a pobreza e a riqueza, o Rio de Janeiro representa um entre-lugar, por ser um lugar de várias diferenças,e múltiplas realidades.

Entre gente boa e gente ruim, os cariocas também apresentam os seus contrastes marcantes, e as suas contradições significantes. Por um lado, se os cariocas são “bonitos”, “bacanas”, “sacanas”, “dourados”, “modernos”, “espertos” e “diretos”, como canta a gaúcha Adriana Calcanhotto, por outro lado, os cariocas são igualmente feios, chatos, corretos, escuros, antiquados, ingênuos e indiretos, como se pode observar[1].  Então, se alguns cariocas “nascem bambas”, outros nascem sem ginga. Se uns “nascem craques”, outros nascem pernas-de-pau. Uns “tem sotaque”, outros não falam carioquês. Uns “são alegres”, outros são tristes. Uns “são atentos”, outros são negligentes. Umas “são tão sexys”, outras são bem barangas. Uns “são tão claros”, outros são bem sombrios. Assim, os cariocas podem ser tão finos quanto grossos, tão chiques quanto cafonas, tão tranquilos quanto nervosos, tão generosos quanto mesquinhos e/outão malandros quanto manés, sem que essas características contrastantes, ou até contraditórias, sejam descaracterizadas.

Como estereótipos, as impressões podem ser tão verdadeiras quanto falsas. Até as constatações podem aparecer, às vezes, impressionantes. Por exemplo, o Rio de Janeiro já foi apontado como “a cidade mais simpática do mundo”, segundo uma pesquisa realizada pela revista New Scientist, que também classificou a cidade como “uma das mais violentas do mundo, notória por sua taxa alta de criminalidade e seus incontáveis males sociais”[2]. Ao mesmo tempo, parece que sobra antipatia e falta solidariedade na cidade, onde o povo contraditoriamente (ou não) se une pela paz.

A justaposição dessas realidades tão contrastantes caracterizaria o Rio de Janeiro como uma cidade “surreal”, na concepção do francês André Breton, que escreveu que “o maravilhoso participa obscuramente de uma classe de revelação geral, de que só nos chega o detalhe”, como, por exemplo, as “ruínas” antigas ou os “manequins” modernos, ou qualquer outro “símbolo” que “comove a sensibilidade humana por um tempo”[3].  Seja entre o efêmero e o eterno, seja entre a vida e a morte, o maravilhoso então surge dos contrastes e/ou das contradições, assim como em “quadros que nos fazem sorrir” enquanto pintam a “inquietação humana”, segundo Breton. Deste modo, a “cidade maravilhosa” que se (auto)retrata como “cartão postal” tropical, local de uma das sete maravilhas do mundo moderno, revela a imagem contemporânea de um ícone medieval, que abraça toda a baía e ilumina o mundo mundano com o seu coração sagrado, e sangrando.

Na realidade, o Rio de Janeiro é uma cidade “maravilhosa”, e se o tropicalista Gilberto Gil cantou que o “Rio de Janeiro continua lindo”, o surrealista Breton antes escreveu que “o maravilhoso é sempre belo, qualquer maravilhoso é belo, só mesmo o maravilhoso é belo[4].  Mas o Rio de Janeiro não é uma cidade surreal, apesar de ser linda e maravilhosa. Pelo contrário, é uma cidade real em suas diversas realidades. Assim, dir-se-ia que o Rio de Janeiro é uma cidade real maravilhosa.

Para o cubano Alejo Carpentier, que concebeu a estética do “real maravilhoso”latino-americano em contraste com a do “surrealismo” europeu, invocada na “descrença”, o maravilhoso “surge de uma inesperada alteração da realidade (o milagre), de uma revelação privilegiada da realidade, de uma iluminação incomum ou que favorece singularmente as inadvertidas riquezas da realidade, de uma ampliação das escalas e categorias da realidade”[5].  Proveniente de um certo“estado limite”, a “sensação” do maravilhoso é, antes de tudo (ou nada), fundada em uma “fé” na realidade do maravilhoso: é o maravilhoso do real e não da imaginação, do concreto e não do abstrato, da história e não da ficção. E se Carpentier presenciou esse fenômeno no Haiti, ele também percebeu que é, de fato,“patrimônio da América inteira”.

Enquanto os baianos Gilberto Gil e Caetano Veloso contam como o “Haiti é aqui”, no Brasil, o “real maravilhoso” encontra-se realizado no Rio de Janeiro, patrimônio cultural da humanidade, onde tanto os passos e as canções do samba, quanto as alegorias e as fantasias do Carnaval, não perderam o seu “caráter mágico ou invocatório”, mas ainda guardam “um profundo sentido ritual”, criando-se em torno deles “todo um processo iniciático,” como Carpentier diria[6].  Sem lembrar dos jogos de futebol, das novelas das nove, das noites de boemia e das missas de domingo.

Assim, repetir-se-ia que o Rio de Janeiro, onde a história se (con)funde com o mito para revelar uma realidade maravilhosa, pela “virgindade da paisagem” deflorada pelos homens, pela “formação”dessa cidade grande onde não há um grande rio, pela “ontologia” de ser a Cidade de São Sebastião, santo católico sincretizado orixá iorubá, pela “presença fáustica” dos índios desalojados e dos negros descriminados, pela “revelação” que consiste em sua constante dissimulação, pelas “fecundas mestiçagens” que ainda proporciona, está“muito longe de ter esgotado seu caudal de mitologias”[7].

Para concluir, uma pergunta de Carpentier poderia ser reformulada na seguinte questão: Mas o que é a história do Rio de Janeiro senão “uma crônica do real maravilhoso?” Há de se declarar que o Rio de Janeiro, este entre-lugar único e diferente, esta metrópole pré-pós-moderna, ex-capital da nação que era tanto império quanto colônia, é realmente uma cidade maravilhosa, cheia de contrastes mil. Uma cidade maravilhosa, contradição do Brasil....

Marco Alexandre de Oliveira

[1] Adriana Calcanhotto, "Cariocas", A fábrica do poema (1994). http://www.adrianacalcanhotto.com/sec_musicas_letra.php?id=14
[2]http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,rio-e-a-cidade-mais-simpatica-do-mundo-diz-revista,20030618p7948; http://www.newscientist.com/article/mg17824005.600-the-word-simpatico.html
[3]André Breton, "Manifesto do Surrealismo" (1924). http://www.culturabrasil.org/breton.htm
[4]Gilberto Gil, "Aquele abraço", Gilberto Gil(1969). http://www.gilbertogil.com.br/sec_disco_interno.php?id=4;
André Breton, "Manifesto do Surrealismo" (1924). http://www.culturabrasil.org/breton.htm
[5]Alejo Carpentier, "De lo real maravilloso americano" (1967). http://www.literatura.us/alejo/deloreal.html
[6]Caetano Veloso e Gilberto Gil, "Haiti", Tropicália2 (1973). http://www.gilbertogil.com.br/sec_disco_interno.php?id=32;
Alejo Carpentier, "De lo real maravilloso americano" (1967). http://www.literatura.us/alejo/deloreal.html
[7]Alejo Carpentier, "De lo real maravilloso americano" (1967). http://www.literatura.us/alejo/deloreal.html

Marco Alexandre de Oliveira é professor adjunto do Departamento de Letras da PUC-Rio, onde ensina cursos de Literatura e Cultura Americana e de Língua Inglesa. É também o nome real do Gringo Carioca, poeta e autor do livro Reflexos e reflexões (Oito e meio, 2014). 

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