segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Abandono cotidiano


Segunda-feira

Deita-se de lado, a coxa desenha um S no cobertor. Um dos braços está colado ao corpo com a mão caindo atrás do pescoço. O outro braço envolve o primeiro. É um abraço inventado. A mão esquerda está quieta com os dedos separados em uma posição engraçada. O cabelo cheio ocupa quase metade do travesseiro. A boca forma um biquinho. Respira em intervalos precisos, fazendo um barulho que se mistura com o ambiente. Os olhos estão em paz. Um dos dedos treme levemente. 

Terça-feira

Abre os olhos, acordada pelo gato. Em seguida dorme de novo, enrolada na coberta até a altura do peito. A mão esquerda apoia o queixo, na posição do Pensador.  O braço direito escapa da cama. Os cabelos estão presos, domesticados no travesseiro. O rosto sereno. Os olhos estão levemente fechados, os lábios relaxados. Respira sem fazer barulho. Um de seus pés fugiu da coberta. Por lá, queria acordá-la.

Quarta-feira

Apenas o rosto e os cabelos presos aparecem. Está toda enrolada na coberta. Fica silenciosa por longos minutos, solta um suspiro/ronco e volta ao silêncio. A boca está um pouquinho contraída, como se tivesse experimentado algo amargo. A posição das pernas desenha formas abstratas no edredon. Se agarra a coberta com força. O corpo treme todo com o barulho do gato. Não acorda. 

Quinta-feira

Um dos braços está posicionado sobre a testa como se defendesse os olhos do sol. A outra mão está próxima ao rosto. Os dedos encostam-se à orelha, movendo-se com lentidão. As pernas parecem relaxadas embaixo da coberta. Um dos seios escapa do edredom lembrando aquele quadro famoso. Os lábios entreabertos formam um sorriso. Respira sem fazer barulho. Os olhos tremem devagar.

Sexta-feira

O joelho faz o desenho de um monte embaixo da coberta. A outra perna, também dobrada, forma um morro menor. Os dois joelhos se movem lentamente, um em direção ao outro como se participassem de um fenômeno geológico.  A posição os braços lembra um espreguiçar congelado, interrompido. O rosto repousa exatamente entre os dois travesseiros. Respira profundamente pelas frestas da boca fechada. O corpo em diagonal invade o meu lado da cama. Ela não conseguiria ficar 1 minuto nesta posição se estivesse acordada.

Igor Miguel Pereira


Igor Miguel Pereira tenta escrever nas horas vagas. Também trabalha como roteirista de séries e documentários sobre coisas como Noel Rosa, literatura moçambicana e métodos para ensinar bebês a dormir bem.  Gosta de roda de samba, peixe com pirão, praia de mar calmo, cerveja no meio da tarde e  cafuné.  Publicou dois romances curtos e precoces: “Txakazuê” e “Vão”. Em 2018 lança “Espuma”, seu primeiro livro de contos.

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