segunda-feira, 1 de março de 2021

Que tempos são esses, Ignácio de Loyola Brandão?

 

Há muito o que se perguntar a um escritor da grandiosidade de Ignácio de Loyola Brandão, ainda mais com a inata curiosidade de extrair de um acadêmico ideias, vivências e percepções do mundo. No entanto, foi impossível não pensar numa pauta para esta entrevista em que a palavra tempo não se fizesse presente nas questões, ainda mais quando se percebe o quanto a pandemia da Covid-19, causa da morte de quase 140 mil brasileiros, nos obrigou a lidarmos com a urgência do tempo. Quando iremos tomar a vacina que irá nos tirar desta incômoda paralisia da vida? Quando seremos livres para nos abraçarmos e nos aproximarmos daqueles que não vemos há mais de seis meses? Em março governadores decretaram a quarentena, e a partir daí o distanciamento social foi necessário para conter o avanço do contágio do novo coronavírus.

Em Tempo. Conheço o Loyola há mais de vinte anos, quando fora meu editor na revista VOGUE. Foi preciso o tempo de uma quarentena para despertar em mim a vontade de realizar a entrevista, portanto, o tempo é o hoje!
 

Elisa – Loyola, estamos sob a ameaça de um vírus, e em função disso, tivemos que nos isolar. No entanto, isolar-se não é nenhuma novidade para um escritor, que precisa mergulhar em seu interior para dali extrair personagens, criar uma história. Dentro do atual cenário, pode-se supor que agora escrever é isolar-se duas vezes, no individual e no coletivo? 
Loyola: Neste momento, Elisa, escrever é romper a solidão, sair do cômodo confortável, e procurar saber como os outros estão vivendo, sobrevivendo, sofrendo. Saber como tudo afeta cada um, como cada um, sem nenhuma experiência nesta situação, precisa se reinventar, descobrir uma nova forma de viver, trabalhar, se defender, sobreviver. Os personagens nunca são retirados apenas de nosso interior, mas de todos a nossa volta.  Cada personagem representa uma humanidade inteira. Perplexidade total. O que é isso aí? Vai terminar? Haverá outros momentos iguais? É uma praga tipo aquelas bíblicas que assolaram a humanidade? E a ciência? Tão desenvolvida e incapaz? E aí você pode calcular o tamanho do imbróglio.

Elisa – A escrita do próximo livro será afetada por essa realidade? De que forma?
Loyola: Será. Só não sei como, porque tenho um projeto na cabeça, mas não encontro o meio para desenvolvê-lo. Estou diante do desconhecido. Há mil faces nesta questão envolvendo vida, sobrevivência e principalmente morte. Ler jornais e ouvir notícias sem parar, como venho fazendo, não é suficiente. Pre de mais. Mais o que? Mais conhecimento de filosofia, historia, psicologia, antropologia, economia, até de religião e psicoterapia. Preciso me aventurar em projeções, invenções, imaginário. Preciso conversar com mais gente, mais, mais. Mas não posso encontrá-las cara a cara, posso matar o outros ou ser morto por eles. Tudo on line. Mas o humano se perde no on line, os sentimentos se esfacelam. Lives e mais lives. Mas as lives começam a me dar a sensação de que a fantasia entra dentro dela, as pessoas  te comunicam coisas idealizadas. O que gostaria que fossem e não o que são realmente. Não está, nem será fácil reencontramos conosco, ou com o outros. Como vamos conviver daqui para a frente?

Elisa – O livro Zero, escrito em 1974, ano em que eu nasci, é um grito por liberdade ante os tempos de chumbo que o país vivia pelo regime militar. Hoje parece que o tempo não passou. Clamam pela volta da ditadura, pelo fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal. Isso significa que eu não nasci e o Zero foi censurado novamente. Que tempos são esses?
Loyola: ZERO foi um documentário feroz sobre um tempo feroz em que a vida humana e a liberdade nada significavam. Estamos lentamente mergulhando na mesma via de volta.  Reconheço uma coisa, havia certa inteligência nos militares. Nos dias de hoje estamos diante da mediocridade, da ignorância, do reacionarismo fatal, de pessoas toscas, semianalfabetas. Estamos retrocedendo, caminhando para trás. Cultura ameaçada, liberdade de expressão também. O cerco é maior a cada momento sob o comando de um homem que quer armar mais e mais o povo, um homem cuja mente é regida pelo manual de um dos mais sangrentos torturadores dos tempos ditatoriais. [Loyola se refere ao ex-chefe do DOI-CODI, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, acusado de crimes de tortura, que foi citado pelo então deputado federal, Jair Bolsonaro, quando do seu voto a favor do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, uma das vítimas do torturador]. Usos, costumes, moral, hábitos, tudo tem cheiro de ranço. As queimadas não são apenas amazônicas e no Pantanal, são também nas ideias e na filosofia e na maneira de viver.

Elisa – Um grupo de amigos compôs a canção Que tempos são esses que falar de amor é quase um crime [composição de Zé de Riba e Walmir Pinto]. Loyola, falar de amor é quase um crime, um ato revolucionário ou um grito solitário?
Loyola: Falar de amor é crime, porque a fala agora é de ódio. Odeie o teu próximo. Cada vez mais. Nunca vi tanta polarização, antagonismo, inimigos criados a cada momento. Famílias divididas, dilaceradas. Como viver alimentado pelo ódio, se este nos corrói, nos envenena, nos provoca úlcera e câncer, nos destrói internamente? O ódio em vez de trazer vida, traz morte, destruição, nos envenena, nos afasta, enraivece, consome.  O ódio traz solidão e amargura e ninguém nasceu para viver solitário.

Elisa – Vamos dar uma leveza na entrevista. 2019, ano da sua posse na Academia Brasileira de Letras, (Loyola ocupa a cadeira de número 11 da ABL), aos 83 anos de idade. Houve um tempo em que acreditou que pertencer à ABL não seria um sonho possível? 
Loyola: Nunca foi sonho. Foi a partir de um determinado momento, já maduro. Nem imaginava ser candidato. De repente, me vi eleito, com a mídia proclamando: “Enfim um escritor”. Eleito por unanimidade. Lá estou. Veio a pandemia, acabaram as reuniões, nos distanciamos. Enfrento uma nova academia. Estive em duas reuniões, ainda não sei como é. Apenas sinto que temos lá imensa responsabilidade e não podemos nos afastar do mundo real.

Foto: Arquivo Pessoal


Elisa Marina

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