sexta-feira, 4 de junho de 2010

Batom, escova de dente e revolver

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Los Angeles é a maior cidade dos Estados Unidos em extensão com mais de mil quilômetros quadrados e uma população em torno de oito milhões de habitantes, grande parte dessa gente alucinada por cinema e Bete Pacheco orgulhosamente fazia parte do time das apaixonadas, mas não era uma fã qualquer. Salvadorenha bonita de boca carnuda, cabelos curtos e corpo perfeito, Bete se mudou para L.A. nos anos oitenta e com apenas vinte anos após um rápido namoro com Pepe Escobar, um conterrâneo que trabalhava como chofer numa mansão em Beverly Hills, arrumou emprego de babá na casa de um lendário diretor de tevê. Tinha um jeito irresistível de sorrir cerrando levemente os olhos enquanto levava a mão à boca escondendo uma charmosa covinha no queixo que encantava qualquer um. Isso aconteceu durante a entrevista na fabulosa mansão do tal diretor de tevê, após quinze minutos de conversa foi contratada e apesar de ser uma pessoa puxada pro sério, bastava alguns instantes em sua companhia para deixar qualquer um ansiando por mais tempo ao seu lado. Adorava discussões sobre cinema e sobre o modo de vida americano, seus contrastes de cultura credo e cor. Não tardou para descobrir que seu patrão era um gorila, grosso insensível e destrambelhado. Don Dantzig com seu estilo autoritário tinha fama de sádico destruidor de talentos e não havia um ator dirigido por ele que não tenha sofrido humilhações e vexames no set de filmagem, mas sem nenhuma explicação o carrasco judeu caiu de amores pela desenvolta diva de El Salvador apaixonada pelo cinema e pela cultura americana. Morena alta e muito bonita, Bete era dona de uma disposição para trabalhar típica dos imigrantes que abordam a America e topam qualquer coisa para conseguir seu sustento na terra prometida, encaram qualquer trampo de merda como se o destino do mundo dependesse daquilo, se agarrando ao menor compromisso como se fosse a ultima salvação. Possuía cultura pra dar e vender podia esticar uma conversa apaixonada sobre cinema por horas a fio e suas opiniões eram sempre abalizadas, na maioria das vezes recheadas de fatos que a maioria das pessoas desconhecia. Nas reuniões entre amigos contava para uma platéia admirada que enquanto filmava “Apocalipse Now” nas Filipinas, Brando se envolvera com uma nativa cujo pai fora inspiração para que ele desenvolvesse seu personagem, o sombrio e enigmático coronel Walter E. Kurtz, que o ator Martin Sheen sofreu um enfarte durante as filmagens e que Laurence Fishburne mentiu a idade para participar do filme, ele tinha então apenas 14 anos. Vaidosa e obcecada com sua higiene pessoal Bete sempre levava consigo na bolsa além da escova de dente e batom um revolver de brinquedo para se defender. Havia sido assaltada certa vez em uma madrugada quando descia do ônibus em Los Feliz e desde esse dia nunca deixava a casa sem esses apetrechos além de um spray de pimenta para se defender. Bilíngüe, lia tudo sobre cinema, adorava Chaplin e Elia Kazam, de Palma e Scorcese, entre seus atores preferidos gostava de mencionar Marlon Brando e Sean Penn, mas quem mexia profundamente com seu espírito era Mel Gibson. Para Bete não havia lugar pra mais ninguém em seu coração, ela pertencia a Mel e a ninguém mais, aqueles olhos azuis, o corpo malhado e o semblante austero lhe caiam bem e para Bete inspiravam um romance insano ao mesmo tempo em que a confortava. No hotelzinho da Avenida Figueroa no centro de Los Angeles, perto de Little Tokyo, tradicional bairro japonês onde morava, para Bete todo mundo era artista. O mastodonte ucraniano da recepção era chamado de Arnold desde o primeiro dia em que ela botou os olhos no cara e cismou que ele era uma copia fiel do Exterminador do Futuro, o faxineiro franzino de olhos azuis e dentes mal cuidados para ela era igual a James Dean, uma das arrumadeiras se parecia com Natalie Wood e a do turno da noite, Liz Taylor. O crioulo chefe de cozinha lembrava Denzel Washington, o guarda noturno Wesley Snipes, e a telefonista bocuda de pernas finas, Julia Roberts. Bete chamava a todos pelos seus nomes “artísticos” e a galera parecia gostar daquilo porque nunca houve reclamação. Passou a escrever roteiros e sonhava em entregar sua ultima criação, uma historia com o estranho titulo de “Os olhos corajosos de um católico beberrão” para o diretor de Coração Valente. Numa tarde de domingo Bete leva o maior susto de sua vida, quando buscava seu carro no estacionamento do Beverly Center enxerga Mel Gibson em carne e osso deixando o local pilotando uma Porsche prateada e decide segui-lo. Algumas quadras adiante o ator para no El Torito de Beverly Hills e deixa as chaves com o manobrista, Bete faz o mesmo. Àquela hora do dia o lugar estava deserto, depois de meia dúzia de margueritas e alguns shots de tequila ele deixa o restaurante mexicano e, chapado, toma o rumo de Malibu, só que na hora agá para desespero da proprietária Mel entra numa casa parecida com a sua e desaba no sofá da sala depois de esvaziar uma garrafa de tequila. Bete ficou por ali mais um tempo e quando viu o ator meio cambaleante entrar no carro da policia foi pra casa arrasada pensando que seu ídolo não merecia aquilo. No dia em que Mel Gibson finalmente iria ganhar sua estrela na Calçada da Fama, Bete acordou cedo, desassossegada não conseguiu se concentrar em nada desde a manhã até à hora em que tomou o ônibus para a Hollywood Boulevard no fim da tarde e quando chegou ao Teatro Chinês tinha uma pequena multidão de fãs esperando o ídolo australiano. Mel chegou cercado por um time de seguranças, recitou alguns lugares-comuns no discurso de agradecimento e antes que a multidão pudesse soletrar “A paixão de Cristo”, já tinha ido embora. A tarde caiu triste como um samba de Ataulfo Alves e Bete foi envolvida pela melancolia da noite que se aproximava, o céu cinza e poluído despachou uma garoa fina para contar àqueles mortais que o show havia acabado que era hora de tomar o rumo de casa e retomar a sua aborrecida rotina diária. Seu ídolo já havia sido adulado o suficiente e agora se dirigia a algum restaurante elegante na Sunset Plaza para festejar com amigos e familiares. Na volta pra casa Bete foi assaltada por um ladrãozinho rastaqüera que ao ver um carro de policia passar se desesperou e sem querer apertou o gatilho do Smith Wesson enferrujado. Bete morreu no local, ao cair na sarjeta sua bolsa se abriu despejando na calçada o batom vermelho sangue, uma escova de dente e o revolver de água.
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Sergio Mello
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