terça-feira, 8 de dezembro de 2015

O ritual — 2º lugar de prosa


O homem aguardava paciente. Ele apreciava absorto o silêncio da escuridão noturna e se deleitava com a antecipação dos prazeres que ela lhe reservava. De vez em quando, deixava seu corpo fugir ao controle e se retorcia de prazer diante dos pensamentos que invadiam a mente - não as lembranças de todas as outras vezes em que tinha feito isso, e sim a fantasia de como seria a próxima. Era sempre a próxima que importava, porque ela renovava o ritual, dava-lhe novo fôlego.
Eram quinze para as onze. A essa hora, seu Floriano, o único vizinho, já estava dormindo. A esposa acabara de ligar para avisar que já havia chegado ao aeroporto. Dali a algumas horas, embarcaria no voo e estaria de volta em casa. Mas ele não tinha pressa, sabia que estava no controle. E essa capacidade de brincar com a ignorância alheia só o excitava ainda mais. Não pararia nem que quisesse, nem que pudesse. O gozo da onisciência não permitia. Nem o amor pela filha.
Às onze em ponto, a campainha tocou. A moça estava adiantada. Ele se levantou calmamente da poltrona onde estava e foi até a porta. Uma ruiva em trajes mínimos o esperava do lado de fora. A semelhança era inegável, de fato, mas ainda não era ela. Não com aquela roupa de vagabunda, batom vermelho e cabelo bagunçado. Não com aquele sorriso lascivo e olhos fogosos. A garota precisava ser preparada. Antes que ela pudesse falar qualquer coisa idiota e desperdiçar o tempo dos dois, ele a puxou para dentro, ríspido. Odiava esse primeiro momento em que todas achavam que eram muito sexy e, soberbas, se consideravam ingenuamente capazes de realizar todos os seus desejos, experientes como eram. Não realizariam nem metade e, se ainda assim ele as contratava, não era porque se sentia atraído por quem elas eram – na verdade, delas não sentia nada além de nojo -, e sim por quem elas poderiam ser. A pessoa que elas lembravam.
Sem lhe dizer sequer uma palavra, fez sinal para que o seguisse e a levou até o quarto da filha. Camisola, calcinha e presilha já haviam sido delicadamente colocadas em cima da cama horas antes. Apontando para elas, ordenou que a menina as vestisse e depois o encontrasse na sala. Deixou-a. Foi até o quarto, pegou algodão, papel escortex e o removedor de maquiagem da esposa e sentou-se novamente na velha poltrona da sala. Onze e dez.
Pouco tempo depois, a garota apareceu. A camisola translúcida deixava transparecer seu corpo pálido e fraco, e, durante algum tempo, o homem se limitou a observá-lo de longe. Ele precisava perceber e corrigir cada imperfeição para que nada estragasse o seu momento. Por vezes, essa primeira fase, de análise e exame, podia ser não só extenuante, mas também frustrante. Ele sabia muito bem o que via, não era louco: elas não eram Ela. Ninguém jamais seria, tampouco ele o queria. Porém, já que ela tinha ido embora, que mais poderia fazer além de se contentar com parcos simulacros? Que mais lhe restava além da esperança de satisfazer, ainda que mal, seu desejo insaciável de possuí-la e, depois, naturalmente, extirpar o pecado pela morte? Ele já não tinha opção. Se não continuasse o ritual, se não vivesse e revivesse, ano após ano, aquela noite derradeira, não teria qualquer razão para existir. O desejo, a culpa e o prazer mórbido e fugaz que advinha dessa mistura masoquista dos dois eram o seu combustível. Ela não precisava estar viva para que ele a amasse e, principalmente, não precisava estar viva para que ele dela desfrutasse. Embora, às vezes, fosse fustigado por uma saudade lancinante, sabia que jamais teria coragem de tomá-la em seus braços e dominá-la como fazia com todas as outras e, por isso, preferia-a morta como estava. Intolerável seria olhá-la todos os dias se aproximando cada vez mais de homens desconhecidos, que nada tinham a lhe oferecer, e fingir que o que sentia era apenas um ciúme paternal; e não amor, amor carnal. Não vontade de jogá-la na cama e torná-la mais ainda dele, mais do que já era. Portanto, por mais que elas não fossem Ela, serviam, precisamente porque eram só disfarces, ilusão. E se ele as consertasse e, depois, tirasse os óculos, funcionariam adequadamente.
Desta vez, teria menos trabalho: o corpo da garota era bem parecido com o de sua filha e a depilação íntima havia sido feita exatamente de acordo com o que ele pedira semanas antes. Os seios realmente eram um pouco maiores do que esperado, a altura também, porém nada muito relevante. De repente, ele enxergou o maior problema: o rosto. Aquela maquiagem nojenta de rameira punha tudo a perder, não só porque denunciava a realidade, mas, principalmente, porque blasfemava contra a memória de sua amada filha, pura e maculada somente por ele mesmo. Furioso diante da afronta, avançou sobre a garota e a encurralou em um canto escuro - não aguentava ver aquele sacrilégio -, esfregando o papel em sua boca com toda a força que tinha. Quanto mais batom saía, mais prazer ele sentia. Ainda no escuro, pegou o algodão e o removedor e começou a limpá-la, regozijando-se a cada segundo. Aquele era o momento em que as vadias sumiam e sua filha, sua querida filha, voltava à vida e, encarnada naqueles corpos vãos, deixava-se possuir pelo amado pai. Era o momento em que ela manifestava todo o seu amor e coragem e se entregava a ele, de bom grado. Algo tão vazio e comum como a morte não atrapalharia isso: ela sempre pertenceria a ele, carnal ou espiritualmente. Eram onze e vinte. Quando terminou de limpá-la e tirou os óculos, seus olhos brilharam. Finalmente, era Ela que estava ali, pronta para ser dominada. Deu-lhe um beijo suave e cálido e começou:
— Que saudades de você, meu anjo... Você sabe como eu espero por esse momento, ano após ano. O dia em que você volta para mim...
Como não sabia o que fazer, a garota continuou calada.
— Você deve estar exausta, foi um dia longo, não? Deixa que o papai te coloca na cama.
Emocionado, ele a pegou pela mão e a levou novamente até o quarto. Deitou-a na cama, cobriu-a com o cobertor preferido da filha, e deu-lhe um beijo de boa noite na testa.
— Tenha bons sonhos, meu amor.
Saiu do quarto e fechou a porta. Onze e meia. Ele vestia exatamente o que vestia na noite em que a filha tinha morrido. Desde então, só isso o consolava. Esperou algum tempo até ela dormir e, quando achou que já havia se passado o suficiente, entrou sorrateiramente no cômodo, intacto desde a morte da filha. Venerou-a lá deitada, inocente e desprevenida. Andou calmamente até a cama e passou a mão pelo seu corpo, beijando-o lentamente. Encantado demais para se controlar, entregou-se à arte de reviver tudo aquilo que, durante certo tempo, tolamente tentou esquecer. Deitou-se em cima dela, colocou as mãos sobre sua boca, exatamente como havia feito cinco anos atrás, abriu a calça e se entregou à paixão. A garota acordou e, atendo-se ao teatro pelo qual havia sido paga, fingiu estar atordoada e, logo em seguida, aterrorizada. Começou a se debater e a tentar gritar, porém ele a possuía com cada vez mais força e urrava de prazer. Prazer e dor, prazer e vergonha, prazer e culpa.
Tão logo gozou, olhou para baixo e viu, enfim viu, sua própria filha, aquela mesma que ele ninou, acariciou e levou para escola tantas vezes. Aquela menina que agora o encarava em pânico e escondia suas lágrimas, desejando nunca ter acordado para viver na ilusão de que aquilo havia sido apenas um terrível pesadelo. Tomado pela vergonha, quis poupá-la. Pedindo perdão, colocou as mãos em seu pescoço e estrangulou-a. Ele não a merecia e nem ela merecia aquilo. Portanto, para livrá-la do mal, precisava fazer esse sacrifício e dar-lhe paz. Estrangulou-a por amor e, enquanto o fazia, entre lágrimas e espasmos, reiterava:
— Não se preocupe, meu anjo. Papai está com você. Sempre vai estar.
À meia-noite, ela morreu. A prostituta e a filha.

Bruna Karyne Romeu Fernandez Ribeiro

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