O Plástico Bolha e sua equipe estão neste momento em Brasília junto aos mais de 10.000 estudantes para participar do ato nacional contra a PEC 55/2016. O Jornal Plástico Bolha sempre se posicionou contra o golpe, contra o governo Temer, e a favor da democracia. Não assistiremos parados ao retrocesso. Nem um direito a menos!
terça-feira, 29 de novembro de 2016
segunda-feira, 28 de novembro de 2016
Poema de Geovani Martins
Aquele bandido
que com a língua
você matou e achou bom
era eu
possível poeta do Brasil
futuro não há
não adianta chorar a mãe
não há
futuro não há
se tivesse chegado a poeta ser
diria
com corpo voz e olhar de poeta:
é foda ser o adubo
que se joga pra poder nascer a paz!
Geovani Martins
segunda-feira, 21 de novembro de 2016
Barra grande
Levei um ano para ver estrelas de novo.
Olhei muito para cima nesse intervalo,
mas elas se escondiam entre prédios com sobrenomes.
Tinha que voltar...
colecionar as conchas que o mar
não nos trouxe,
como uma antologia
de tudo
que não se pode repetir.
Carla Andrade
Fragmentos
Sou um caracol lunático
A espera desse sol que queima
Sou a vítima
Ou a bala que mata deixando no ar a pólvora
Meu quarto meu refúgio
Lugar em que me distancio de um cotidiano enjoado
E há gente enjoada me procurando
Sou um caracol que se esconde
Desse caminhar desenfreado de homens que procuram queimar
A energia
Sou eu a energia a povoar as quatro paredes que me prendem
Sozinho estou feito um caracol que anda sonâmbulo
Numa folha de verdura molhada de água de chuva
Sozinho
A sós
Sem compreensão e sem sorriso
Sempre na espreita do que pode acontecer...
Faço das coisas brinquedos
Meu membro ereto é um brinquedo que dilata
Dilata porque o sangue corre nas veias
Esse sangue de excitação e orgia
Desfaço em lágrimas
Meu corpo magro vai minando água urina e secreções
Daí a pouco serei uma poça indesejada
Como é difícil olhar para cima e não sentir vertigens
Como é difícil matar alguém e não deixar vestígios
Não carrego velas nem mastros
Afogarei num mar de descrenças e aceitações obrigadas
Quem me dera engolir-me
Evacuar-me
Evacuado não mais seria eu um caracol sonâmbulo a andar
Em meio a um jardim que desconheço
Evacuar-me perante os outros
Evacuar-me perante o que é sombrio
Evacuar-me diante de quem me deseja
Não ser desejado
Mas ser dissimulado
Feito um caracol lunático que caminha ás tontas numa folha
De alguma verdura
Lívia que me deixou no início da primavera
E sem falar em outras tantas que me largaram em cada estação
Sou o caracol lunático dessas mulheres que me apertaram
Com tanta fome e destruição
Sou e pronto
Um caracol que arrasta calmamente sua carcaça
Numa folha de vegetação molhada pelas gotas de chuva
segunda-feira, 14 de novembro de 2016
Sarau Rio Literário - Botafogo - Sábado, dia 26/11, de 13:00 a 16:00
Seguindo a tradição de apresentações e performances poéticas
dentro da Campanha Paixão de Ler, promovida pela Secretaria Municipal de
Cultura, o Sarau Rio: Cidade Literária reunirá um eclético grupo de poetas e
vozes da geração contemporânea, dentre os quais representantes de diversos
saraus cariocas, para apresentações de obras autorais e de terceiros,
compartilhando o desejo e o prazer da poesia com o público e revisitando o Rio
de Janeiro através da literatura.
Literatura, rimas, música, performance, distribuição de
poesia, microfone aberto: variados artistas exibindo o que fazem de melhor para
o público e entre si, promovendo o encontro em um ambiente lúdico e artístico.
Poesia, Liberdade e Diversidade.
Evento Gratuito.
Sarau Rio Literário - Botafogo.
Biblioteca Popular de Botafogo Machado de Assis - Rua
Farani, 53 - Botafogo, Rio de Janeiro.
Data e horário: dia 19 de novembro de 2016, de 13:00 a
16:00.
Evento no Facebook:
https://www.facebook.com/events/221288104961082/222320854857807/?notif_t=like¬if_id=1479146844628329
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sábado, 12 de novembro de 2016
Úmido tríptico, de Natalie Lima — Primeiro Lugar de Prosa do VIII PPBPP
Rosario
Vai e fica. A parte dela que andou pela Paraguay, pela San
Luis e pela Mitre, que comeu papas españolas encharcadas de manteiga – isso
desaparecerá aqui. Quanto às ilhas, permanecerá nelas, o rio cor de doce de
leite, e ainda assim bonito, islas flotantes. Não são grandes coisas, mas
coisas interessantíssimas.
No barco, sente o tapete de água sob o corpo – nunca sem
sapatos, pois sua pele é a superfície que aos mosquitos encanta chupar. Quer
salvar ao menos os pés do alcance desses vampiros pequeninos e bárbaros.
Capazes de picar, diversas vezes, sua panturrilha esquerda por cima da calça de
linho, deixam finos rastros de sangue entre o tecido e a pele.
Indiferente a tudo isso, o barco bate contra a água,
teimando, dizendo que sim, que segue em frente apesar de. Ao passar por algumas
das ilhas, diminui a velocidade para que os outros passageiros possam
mergulhar. Ela não. Seu corpo não quer imersões, vai ver que é medo de afundar
e não ter o que levar de si para o Brasil. Só deixou que a tocassem o vento, o
sol, a superfície da água e a barqueira, que a ajudou a entrar e sair da lancha
para turistas. Os mosquitos não contam porque o que fizeram não foi tocar, mas
furar e beber. Porém, graças a eles a mulher fica um pouco mais na Argentina,
seu sangue na barriga de insetos rosarinos, bichos que moram e dormem e
procriam em ilhas flutuantes. O tapete de água, eles não o temem. Ela também
não. Sentiu-o sob os tênis que usava, que sentiram a madeira do barquinho, que
sentiu a água amuralhada e mole na horizontal, que sentiu, sob a superfície, as
correntes e os peixes, que sentiram a profundidade e o fundo arenoso, que
sentiram, junto com os peixes que só nadam no fundo, algo ainda mais fundo. Não
se sabe o que é, mas isso, o fundo do fundo, respondeu aos peixes, à areia e à
profundidade, que responderam aos outros peixes, que responderam às correntes,
que responderam à superfície, que respondeu ao casco da lancha, ou do
barquinho, chame-o como quiser, o barquinho tão pequeno e frágil de tanto
transportar turistas, ele respondeu às solas de borracha, que fizeram de escuta
um par de pés.
44, rue de l’Amiral Hamelin
O maior clichê sobre Proust é seu leito de morte, sua foto
de morto no leito de morte, naquele quarto em que ele deveria sufocar e, ao que
parece, escrever durante a noite. Mas e se ela: uma mulher encharcada com água
gelada do Sena e que de cabelos molhados quase se pareça com um rapaz; e se ela
entrar no quarto, sem explicação alguma, e depois estender uma mão a Proust, e
ele aceitar essa oferta, e a janela do quarto se abrir e começar a aumentar de
tamanho, e o dia estiver agradável, e houver um jardim lá fora, e a janela se
abrir mais e mais e mais, a ponto de se tornar um buraco na parede do quarto
que dá para o jardim do edifício de Proust, e ele e a mulher encharcada que se
parece com um rapaz caminharem por esse jardim, e apanharem sol, e toparem com
aquelas bandeiras tibetanas coloridas que, quando tocadas pelo vento úmido,
espalham seus mantras e seus fluidos, e Proust respirar fundo, com pulmões infiltrados,
tentando ler o que está escrito nas bandeiras, e ver ali borrado com água do
rio o seu próprio texto?
Caetité
Ela nunca foi a Caetité, não sabe quais horizontes se
consegue avistar por lá. Ainda assim é preciso, o sertão. Ir até. Não por sua
lonjura – mesmo da própria Bahia Caetité se afasta –, quando sim por sua aridez
inexata. É dessa maneira que a terra quase vira areia, navalha invisível de
vento seco. Quem sabe ali a sensação – aguda e, como sempre, ainda sem nome,
quase sem forma – estanque; no melhor dos casos, se transmute, abrindo sobre si
mesma um sulco, uma fenda quente.
É possível, no entanto, que haja de fato pouco a ver em
Caetité – o que, no fim das contas, nem importa. Muito mais interessante e
capital é saber o que fazer quando uma vez lá: em que partes farejar os rastros
de uma bisavó índia cujo rosto nunca encarou e cujo nome desconhece, em qual
chão verter as águas de rio armazenadas em garrafas PET de quinhentos
mililitros.
Ela mesma as colheu, essas águas, sem a intenção prévia de
derramá-las sobre alguma terra brasileira. São duas: a mais antiga e quase
acidental vem da superfície de um rio argentino cor de doce de leite chamado
Paraná; a outra, verde-cinza-negra-clara, vem do fundo gelado e mítico a que
chamam La Seine. Sumirão rapidamente, uma vez fora de suas respectivas
garrafas. Vão se misturar ao chão, vão penetrá-lo com tal gentileza, fazer nele
caminhos, para depois pouca coisa ou quase nada delas restar no visível.
Imperceptíveis, mas ainda assim lá. É isso um destino. Quantos.
A importância desse gesto em Caetité, onde ninguém a conhece
– exceto, justamente e com esforço, a terra. Imperiosa, semiárida, cheia de
ossos que já não existem, hoje transformados em pó e revirados intensamente por
formigas, ventanias, chuvas e leitos baixos, amassados com parcimônia por gado
de corte ou, no pior dos casos, pelas retroescavadeiras das Indústrias
Nucleares do Brasil. Então aí, mesmo aí, algo da bisavó jê, um pouco dela para
molhar com água de rio estrangeiro e cheirar depois.
Não sozinha, para que sozinha, Caetité tem mais de cinquenta
e três mil habitantes, diz o senso do IBGE. Então serão mais de cinquenta e
três mil somados a uma, essa-ela, e vai ver aparecem as que desejem águas
estrangeiras derramar também, águas de viagem e de sonho, fluxo que não é
outro, mas coisa de fora que logo se junta e se espalha e repousa.
Natalie Lima
Murmurinhos, Diogo Paiva
Os ventos da federal
Passam por aqui
Finalmente!!!
Com a sabedoria que ele vê pela frente
Para, paira,
Repousa sobre esta.
Há de ouvir murmurinhos quando se passa por certos lugares.
Há ainda lugares que se ouve gritos
Você há de passar
Há lugares que se vê gritos
Alguns já desgarrados
Escrevem em certas paredes
há os que escrevem e registram
há os que registram!
Não sei,
Pelos corredores se ouvem murmurinhos.
Eu sou a poesia
Eles não sabem quem sou
Me vêem, mas não me enxergam
Sou tudo e sou nada
Não tenho massa, sou a massa
Sou mais, sou arte!
Eles são segredos,
Segredos que regem
Segredos sempre,
Segredos de Estado
Segredos mentem
Me afastam quando sentem
Segrega, mas não quebra
Me olha mas me erra
Agora os olhos são outros
Pois chegaram os ventos!
Diogo Paiva
terça-feira, 8 de novembro de 2016
The lovers, de A. B. Tinelli — Primeiro Lugar de Poesia do VIII PPBPP
aprender uma língua ela
dizia lendo W Blake
na varanda é
um ato
solitário
in the
forests of the night
cheguei a vestir
um terno cinza e no altar
declamei W Blake
e bem imaginei um Mundo
em um pequeno grão um Céu
em uma flor selvagem pegar
o Infinito com as mãos prender
no Agora a Eternidade
mas invisível um véu
sobre seu rosto impedia
o enlaço amoroso como
numa tela de magritte
meu amor todo caminho
é ela dizia
também um exílio
dor e alegria em um mesmo tecido
(eis o caminho de um verso batido)
uma coisa ela não disse
in the forests of the night
sob toda dor
e todo pinheiro
brilham os olhos de um tigre
A. B. Tinelli
segunda-feira, 7 de novembro de 2016
Fusão, de Leoni — Segundo Lugar de Poesia do VIII PPBPP
o início da história
já não importa
a essa altura
a mistura
de você em
mim do meu
rosto nos seus
olhos dos seus
sonhos nos meus
braços dos meus
risos nos seus
ossos do que é nosso
no que é seu
por osmose meu
é nossa solução
inseparável já
não há substância
pura os átomos
embaralharam as
órbitas para além
do ponto de qualquer
fissura nossas
línguas mis-
(tri)turaram línguas
que já não falamos
apagamos portas pistas
fronteiras resíduos
de Tordesilhas
importa agora
o holofote da nossa
estrela de estilhaços
atiçando o incêndio
desse estardalhaço
de alegrias – de
que importaria agora
o início da história?
Leoni
domingo, 6 de novembro de 2016
Nósocorro, de Mateus Baldi — Segundo Lugar de Prosa do VIII PPBPP
O Nazista
não era nazista coisa nenhuma, mas era assim que a gente chamava – porque era
loiro; porque era alto; porque era forte e numa tarde de sol disse que ia
descer a porrada no Arnaldo, que era judeu. Semana passada nos reencontramos
num jantar e ele estava bem diferente – acima do peso e com um maço de cigarros
no bolso. O Nazista e eu saímos para fumar quase que ao mesmo tempo e,
justamente por não saber que o Nazista era o Nazista, pedi um isqueiro e ele
deu e sorriu e disse que me conhecia de algum lugar, que tinha certeza de já
ter visto meus olhos em algum lugar, aí foi a minha vez de rir e dizer Você diz
isso pra todas?, e ele desviou o olhar para os carros rasgando a rua lá
embaixo, Eu não digo isso pra ninguém, respondeu, a vida é muito curta pra
gente ficar bancando o disco arranhado – e foi então que eu ri. Ele não
entendeu, com razão, e eu pedi
-
Desculpa.
e continuei, falei que era engraçado porque em dois mil e dezesseis ninguém mais
fala disco arranhado, que certa vez minha filha soltou um escangalhar e eu me
acabei de rir no sofá. Ele sorriu. Disse
que eu era uma mulher *****. Assenti. Eu definitivamente era uma mulher
*****. “Me conta de você”, pedi. “Eu não
tenho nada de interessante, só tô aqui pra não perder o emprego.” “Ah, é?” “É.”
“Eu também.” “Você trabalha pra ()?” “Não, trabalho na ##, mas minha filha quer
se formar em |||||| e o único jeito disso acontecer é eu ganhar um aumento...”
“...que você pretende conseguir vindo nesse jantar e bajulando seu chefe.”
“Como você sabe?” “É o que todos nós, animais de escritório, fazemos”, ele
respondeu dando de ombros.
Acabamos
trocando telefones e marcando um jantar para a sexta-feira seguinte. Sushi. Em
dois mil e dezesseis as pessoas amam sushi no primeiro encontro. Pedimos uma
canoa gigante e quase morremos de rir quando engasguei com o wasabi. Depois de
a $$$$ chegar, como a chuva ainda não havia parado de cair, o Nazista sugeriu
que fôssemos para a casa dele: (hoje não) (por quê?) (porque é o primeiro
encontro, não sou uma mulher >>) (tudo bem, quer que eu te deixe em
casa?) (eu disse que não queria dar pra você, não que não queria um bom fim de
noite): nos beijamos e ficamos dez minutos pensando no que fazer e eu disse:
(uma vez quase fui pro Horto de noite, só que o fusquinha do meu namorado
quebrou na ladeira e tivemos que voltar de reboque): o Nazista riu e disse:
(ok, entendi, vamos pro Horto) (não, tá doido?, tá chovendo, foi só um
comentário besta) (não, sério, agora eu quero ir pro Horto). Fomos.
Havia uma
árvore no meio do asfalto. O Nazista desviou lento, quase parando, e pude ver
dois gatinhos se abrigando sob os galhos retorcidos. Confesso que fiquei com
pena. Ele estacionou atrás de um Ford velho e perguntou se eu estava bem –
fiquei com dó dos gatos – respondi, mas ele não entendeu muito bem – os
gatinhos sob a árvore – continuei –, você não viu? – Não vi gato nenhum, mas se
você quiser a gente volta – Não precisa. – Tem certeza? – Absoluta, ele disse
dando um tapinha no volante. Nos beijamos por um tempo e então perguntei
- Sua mulher morreu
de quê?
e ele teve
um sobressalto.
- Desculpa.
- Não, que
isso, não tem problema falar dessas coisas. É só que... você é uma mulher muito
~~~~.
- Já me
disseram isso. É um defeito grave. Prometo consertar.
Rimos. O
Nazista disse que a esposa tinha morrido de câncer e perguntou se eu era sempre
assim, severa comigo mesma: Só quando acho que estou fazendo algo de errado. E
quando você acha que está fazendo algo de errado? Sempre, respondi enquanto
baixava a cabeça e sorria com o canto da boca, o batom borrado.
[eu sei que
você disse que não é uma mulher >>, mas não tem muita utilidade a gente
ficar aqui, nessa chuva. Lá em casa podia ser melhor. Juro que não te encosto a
mão. É só uma questão de conforto mesmo.]
Abri a
porta do carro e desci.
A chuva me
pegou de jeito e ensopou minha @@. O Nazista olhou pela janela, estupefato, e
por um segundo desviou o olhar para os meus peitos grudados no tecido.
- Vem! –
gritei. – Tá uma delícia.
Um trovão
rugiu lá fora.
O Nazista
abriu a porta e pisou numa poça.
Nos falamos quase
todos os dias. Ao contrário de mim, ele é uma pessoa <, quiçá um pouco
<<<. Anteontem conversei com minha filha pelo Skype e ela disse que eu
deveria dar uma chance; que o namoro com o escocês estava uma merda; que todo
mundo deveria aproveitar ao máximo o início de qualquer relacionamento que se
promete duradouro. Perguntei onde ela tinha aprendido a falar bonito desse
jeito – aproveitar ao máximo o início de qualquer relacionamento que se promete
duradouro – e ela riu, as bochechinhas coradas, e me mandou deixar de
palhaçada, Tu parece meu pai falando. Comentei que tinha chances de conseguir
um aumento, que meu chefe adorou minha presença no jantar e que a Celeste ia se
aposentar no fim do ano – a vaga tinha noventa e nove por cento de chances de
ser minha.
Ficamos conversando
até o dia raiar.
Hoje acordei com o
interfone TOCANDO. O porteiro disse que era da floricultura, quis saber se era
para deixar subir. Agora eu sou a Dona Silvia da Cobertura 01, os porteiros se
importam com a minha segurança. E o Nazista ainda existe. E manda flores
lindas. Agradeci com uma mensagem fofinha.
Boa viagem,
ele respondeu.
Sim eu quero
largar tudo e ficar o dia de hoje & amanhã & depois com ele meu nazista
mas não dá para adiar essa viagem de trabalho porque a celeste vai se aposentar
no fim do ano e apesar de ser dona silvia da cobertura 01 eu não posso
desperdiçar esse tipo de coisa porque a cobertura 01 não quer dizer nada ela
foi herdada eu não tenho grana além da que mando pra sofia sobreviver no
exterior então vou ter que ir pra São Paulo aquela cidade horrorosa onde só
chove e não tem nem um horto pra gente se esconder e namorar e tomar chuva em
paz só o horizonte que mais parece uma carreira de cocaína estendida debaixo
das nuvens e fazendo um desabafo a cocaína está cara eu não contei pro nazista
né mas tenho outro vício além do cigarro mas é muito pouco quase nunca e se
ainda não contei é porque não quero estragar tudo pelo menos não agora em que
estamos nos conhecendo tão bem e ele parece estar tanto na minha quanto eu
estou na dele porque a gente minha filha quem disse precisa valorizar as coisas
boas da vida antes que elas vão embora não não foi nada disso que ela disse e
eu nem sei se o verbo ir está conjugado corretamente mas o que importa né
afinal de contas sou uma mulher apaixonada e as pessoas apaixonadas podem tudo
inclusive dar uns tequinhos quando se sentem solitárias porque não adianta nada
nazista jantar cigarro sushi leblon
horto ipanema gávea jardim botânico rio de janeiro são paulo sofia silvia se a
gente não puder ter uns prazeres escusos once in a while que é pra poder sofrer
em paz sem ninguém perturbar a paciência mas o que eu queria mesmo lá no fundo
da minha alma com todo o meu amor não era paulo são janeiro de rio botânico
jardim gávea ipanema horto leblon sushi cigarro jantar coisa nenhuma e sim meu
nazista que só chamo assim com esse apelido horrível porque o nome de batismo é
pior ainda mas obviamente ele não sabe que chamo de nazista já que pessoalmente
só chamo de IIIIIII enfim eu queria agora mesmo pular desse avião maldito e
dizer que vim para ficar com ele e que mesmo não sendo uma mulher >> hoje
eu vou ser >>>>>> e vamos fazer muito :-)
e também que é
pra ninguém botar defeito e vamos ser felizes para sempre só por hoje até o sol
cair bem laranja quase tangerina por cima dos copans e masps afinal do dia de
amanhã ninguém sabe e se esse avião cair ai meu deus eu só queria pai nosso que
está no céu falar pro nazista santificado seja vosso nome que eu desci desse
avião venha a nósocorro para ficar com ele e antes que pudessem me impedir cair
em tentação eu já estava no táxi sorrindo feliz da vida e não há nada que ele
possa fazer quanto a isso porque a besteira já tá feita agora estou aqui meu
amor livrai-nos do mal e tudo está de volta ao normal, amém Sim.
“Mas e a
viagem, Silvia, meu deus do céu, você tá doida? O que você vai fazer?”
“Perder o voo.”
Mateus Baldi
sábado, 5 de novembro de 2016
Texto sem título, de Gyzelle Góes — Terceiro Lugar de Poesia do VIII PPBPP
ainda criança o vento se aliava
às corridas pelo bairro
crescido
tão agilmente
as pedrinhas por volta do parque
no centro da rua
criavam folia junto aos pés
que pouco firmavam estadia ao chão
tamanha era vontade do ser
tímida buscava um buraco
onde se esconder
fazia disso brincadeira
e me sentia muito inadequada
quando surgia à luz de olhos arregalados
que moravam dentro do que
se fazia em mim
tinha estórias pra contar enfim
alugava diário cor lilás sabia
só página vazia suportaria
tanta infância
me descobri sozinha
levava as mãos em suspense
até locais onde a pele frisava em eriço
tamanha ousadia
o corpo como trilha desfrutava
da curiosidade dos gestos
e se revelava
um país das maravilhas
como lia nos contos apanhados
na estante do meu pai
toda vez quis buscar estrela subindo
no banco da cozinha corria
subia
e não tem luz
antes ou no instante que narro estória
nem agora
mas a infância
permanece ainda aqui
no verso na astúcia dos dedos
pendurada no quadro na mesa da sala
em tudo que escrevo
Gyzelle Góes
sexta-feira, 4 de novembro de 2016
Breve narrativa da miséria humana, de Rodrigo Elmas — Terceiro Lugar de Prosa do VIII PPBPP
Era noite de um domingo, e não por algum tipo de intenção
estilística acrescento que estava a ler o Inferno de Dante quando subitamente
bateram à porta de meu quarto. Uma ambulância à porta de minha casa às 21 horas
de um domingo? Não desci. Aguardei no andar em que estava, e permaneci tentando
– sem sucesso – ouvir o que uns homens a meu pai diziam. Era o tio Hédio que
havia passado mal, e se encontrava hospitalizado.
A família não se abalou... era um bêbedo, valdevinos que
vagava por aí a prestar pequenos serviços, reparos de casa; não constituíra
família nem estudara. Vinham bater à nossa porta a fim de trazer-nos enfado.
Quem acompanharia tal criatura em um hospital? Acompanharia? Sim. Malgrado
fosse um ébrio, e ainda que a nossa ambição emergente nos levasse a ignorar
familiares menores e distantes, havia uma ambulância em nossa casa! O que
faríamos?
Pois bem, por Deus! Que espécie de ambulância vai a uma casa
avisar que alguém está hospitalizado?
Decerto teria morrido. E quem arcaria com
o custo de enterrar o de cujus?
Não importa. Alguém deveria fazê-lo. E é nesse instante que
os homens da casa se unem numa macabra empresa que se forma a cada morte de um
familiar, e se dissolve assim que a última espátula de massa põe fim ao
processo que demarca em uma parede recheada por mortos o mundo deles e o dos
que ainda sob o sol respiram. Para tal empresa foram três os designados: eu,
papai e meu cunhado.
Chegando ao local azado e prestadas as devidas apresentações
fomos conduzidos por uma senhora gentil à sala onde descobri o que faz uma
assistente social. Aquela devia pertencer a uma classe especial de assistentes
sociais; tinha olhos fundos e baços, sombreados por olheiras que a distavam de
nós, e que quase nos faziam crer ser ela o ente que controla o fluxo de almas
naquele recinto.
Tal efeito se desvanecera à medida que o diálogo avançava e
as explicações eram dadas. Sim, havia morrido, morrera enfartado às 17:15 horas
precisamente (com o concurso da cirrose), e seu corpinho – nunca esquecerei
esse eufemismo – estava nas dependências locais aguardando sua eterna morada.
Havia certa pressa, pois não havia câmara frigorífica no
local, mas, ao mesmo tempo, pouco se poderia fazer, uma vez que o cartório
estava fechado, mas no submundo que orbita a morte sempre se pode preparar algo
– e foi então que decidimos conhecer a via do enterro grátis. Malditos! Somos
malditos sovinas, sim. Fingimo-nos de pobres, obtivemos o carimbo de pobres em
um papel encardido da secretaria de saúde e rumamos para a velha funerária onde
um dia os cliente passivo seremos nós.
Deixamos o cunhado em casa; e eu e meu pai, que não nos
falávamos havia algumas semanas, tivemos de dialogar. Era noite profunda, e me
recordo de ter repreendido meu pai por cogitar passar por uma suposta cirurgia
milagrosa e ainda experimental que o poderia curar do diabetes. Ora qual! Falar
em cirurgia num momento de morte! Ao menos estávamos conversando. Era um
avanço.
A funerária ficava no segundo piso, sobre as capelas onde
algumas vezes eu velara alguns parentes, e subir as escadas me transportou a
dez anos antes, à ocasião da morte de minha avó, quando meu primo me desafiara
a entrar na sala de exposição das urnas. Ainda me recordo dele acenando ao
fundo da sala, terrível, me chamando; o cheiro macabro, definitivo, inefável e
inconfundível da madeira feral. Medo.
Quando a gente cresce o tamanho do mundo muda. A mesma sala
das urnas agora era uma pequena sala onde os caixões se espremiam. De fora se
os via por uma porta de vidro; e a primeira urna era a do meu tio-avô. Sobre
cada tampa havia um papel com o preço em letras garrafais, terríveis, como se
gritassem seus preços, causando pavor.
Sobre a urna de meu tio não havia preço: era urna doação: a
dos desvalidos, dos pobres, e a que os servidores da prefeitura odeiam fornecer
não sei porquê. Talvez nesses casos não recebessem propina per capta.
Fomos atendidos por um homem sonolento que trabalhava num
recinto e que ao fundo se podia ver os trapos do que um dia fora um colchonete,
e que fazia as vezes de cama. Tomamos ciência de algumas cobranças inesperadas;
violava-se a premissa principal: gastar nada com aquele vagabundo – pois que já
gastávamos com a gasolina, e era muito!
Por acaso ou destino, não importa, meu pai encontrara tio
Hédio na rua havia cerca de um mês. Como o mesmo vivia de pensão em pensão,
forneceu um novo endereço, na rua São João, centro de Niterói. Meu pai, sempre
esquecido, anotou tal em um papel assim que chegou em casa, guardando tal
lembrete numa gaveta qualquer.
Foi um golpe de sorte. Precisávamos de um documento do morto
e, quiçá, oxalá Deus permitisse, algum dinheiro para algum eventual gasto ou
para nosso entretenimento mesmo. Miseráveis!
Estacionamos em frente à pensão. Era quase madrugada quando
adentrávamos aquela vila ladeada por um velho sobrado português. Desatamos a
corrente que fingia trancar o portão e avançamos lentamente por sobre aquele
chão antigo de pedras coloniais. Perguntamos a um senhor pelo quarto do Sr.
Hédio. Tínhamos um combinado: jamais dizer que morrera. Se indagados, deveríamos
dizer apenas ser parentes e que buscávamos roupas, que o mesmo estava
internado, e só. Ora, se revelássemos a morte poderiam cobrar de nós qualquer
débito com a pensão!
Sim, senti pena ao ver o lugar onde meu tio passara seus
últimos dias. Era um quarto sufocante, com uma cama que se apoiava sobre caixas
de cerveja, e o chão estava molhado, rescendia urina. O odor era nauseante.
Atrás da porta havia um par de calças e, em seus bolsos – nova sorte -,
duzentos reais. Foi como se tivéssemos ganho a noite. Logo achamos seus
documentos, encostamos a porta e saímos como que fugindo. Não achávamos que
pilhávamos um morto. Apenas fazíamos justiça e obtínhamos a paga pelo
aborrecimento do enterro. Canalhas!
Já em casa, combinávamos o que deveria ser feito no dia
seguinte. Papai considerou o dia da morte de seu tio: péssimo dia para se
morrer! Um domingo! Como se se pudesse escolher o dia em que se morre. O
enterro deveria ser providenciado impreterivelmente no dia seguinte, pois que,
importa lembrar, não havia geladeira ou câmara frigorífica no local. Teria de
ser numa segunda-feira – dia em que todos (menos eu) trabalhavam. Era o meu
momento de ser o “homem da casa” e vestir, transportar e levar à sepultura um
parente com quem muito pouco convivi – e sobre o qual muito (mal) ouvi.
Dormi mal, é claro. Todas noites que antecedem um funeral
são noites ruins. Tenta-se imaginar a aparência do morto, seu semblante; ou
até, de modo quase doentio, como Edgar Allan Poe, adivinhar se o rosto penderá
mais para a direita ou para a esquerda; se o rosto estará encovado, como de
costume, e se os olhos estarão abertos ou cerrados.
Recebi cem reais para pagar alguém que transportaria o
corpo, e mais cinquenta reais de “brinde” pela tarefa. O Sr. Paulo me cobrou
cinquenta reais, e assim lucrei cem reais com a morte de meu tio. Maldito!
Dirigimo-nos ao local onde estava o corpo. Fomos recebidos
com a alegria de quem precisa abrir espaço para novos ocupantes. Lembro-me de
naquele dia expandir meu léxico, aprendendo que frigorífico e câmara mortuária
(ou frigorífica) eram o mesmo que morgue. Est’última indicava onde meu tio
estava, podendo posteriormente entender a origem da palavra morgue e talvez até
seu uso naquele local, sendo, quiçá, uma forma de fazer com que pessoas passassem
pelo local sem saber o que havia ali dentro.
Lembro de ali tomar ciência de que morgue era uma sala de
entulhos; onde cadeiras e televisores velhos e armários e macas enferrujadas
aguardavam descarte com eventuais corpinhos embalados para a viagem.
Ao adentrar o recinto, nada estranhei. Somente ao olhar para
a esquerda foi que me dei conta de um corpo amortalhado, mas não tive tempo
para pensar muito. Homens – exatamente o que eu tentava ser ali – já colocavam
suas luvas e começavam a desfazer o pacote em que meu tio estava. Veio a roupa,
veio a urna. Junto com a urna veio uma barata, e após mais esse susto veio a
percepção de que aquela urna era de madeira e papelão. Que miséria! Que
tristeza! Também eu terminaria meus dias assim? Mas, se assim fosse, que
diferença faria à minhalma jazer ali?
Não havia tempo para reflexões ou tristeza. Levamos tio
Hédio ao cemitério. Os coveiros almoçavam. Teríamos de esperar. Optamos por
voltar e almoçar em casa. Tio Hédio ficou lá, na entrada do cemitério, sob o
sol inclemente. Quem roubaria um defunto velho?
Voltamos e o enterramos no alto da colina em que os pobres
sem identidade jazem. Terra fofa e granulada, vegetação imperial e vasta. Solo
adubado por corpos sofridos como o de meu tio. Nunca esquecerei que após algumas
pás de terra a tampa de papelão do feretrum se rompeu, expondo parte da fronte
de meu tio. Miséria das misérias!
Bem aventurados os mortos, pois que alcançam a graça de do
convívio com os vivos se apartar!
Rodrigo Elmas
quinta-feira, 3 de novembro de 2016
Ópera para saltos cegos no escuro, de Mateus Baldi — Menção Honrosa VIII PPBPP
Início
Qualquer versão
moderninha daquele
tema de faroeste, que é
pro pessoal ver se entende:
apesar disso aqui ser um
barzinho: eu vou tocar o
concerto que fiz pra ti
duzentos e cinquenta e sete
dias antes do divórcio.
Ária
Talvez haja realidade
aqui – mas só talvez.
Ato I
Não há música, só o ruído
abafado dos teus uivos
no teatro lotado
que é este quarto.
Trio de jazz no bar ao lado
Dedos para rasgar cordas
e um batuque que faça teu
coração chicotear.
Cantiga de ninar no quarto de cima
Deita aqui no meu ombro
e fecha os olhos – shh –, acabou.
Ato II
As gotas no ladrilho do box
fazem um estampido que parece
o clec-clec dos teus saltos (cegos)
quando você sai pra trabalhar
todo dia depois da nossa primeira
vez – que também é sempre um
salto (no escuro).
Interlúdio
No banheiro:
um pequeno jato para o homem,
um futuro cientista ou filósofo ou
bandido ou natimorto para a
humanidade.
Ato III
Há tempos você
precisava estar
assim –
vestido preto,
colar de cristais
brilhando ao redor
do pescoço, os olhos
esverdeados saltando
do rímel –, para só então eu
te jogar do penhasco e dizer
foi um prazer,
meu amor, mas acabou.
Cachê
O dono do bar me
ofereceu um mês
de batatas fritas
pelas cordas tocadas –
e eu aceitei.
Divórcio
Testemunhas afirmam
ter visto os dois sorrindo
ao riscar os papeis com
garranchos sobre a linha
pontilhada.
Finale
(ponto) onde adormecem
os trens após passarem o
dia vomitando proletariado
com seu gosto amargo de derrota.
Casa
Era abrir a porta e te
ver lendo o último
da Patti Smith – em
qualquer lugar do mundo.
Mateus Baldi
quarta-feira, 2 de novembro de 2016
Encorpado, de João Pedro Maciel Schlaepfer — Menção Honrosa VIII PPBPP
todo corpo é orgânico mecânico
todo corpo é uma cidade esférica e esburacada
todo corpo é a lua de uma estrela
que de buraco em buraco se constrói
que de porta em porta fica sem saída
a cidade é um corpo em obra constante
as empresas, corpos edificados
na fumaça do centro e dos carros
e do ônibus que você pegou
você cheira tua blusa, teu corpo
você vê que você se fuma
você fuma teu cartão
você fuma teu estagiário
você fuma teu chefe, teu número, teu endereço
você fuma teu e-mail, teu número de telefone
você fuma teu cargo e tua logo
você enche o peito
e não acende um cigarro
pra matar a fome na hora do almoço
você volta na condução
com a condição de sentir toda a fome de um cidadão
escutando por alto o que sai dos templos que você construiu
encontrando corpos e ideias
subindo ladeira na contramão da fé
que é vendida nas esquinas, nos bares, cafés
nos ônibus, corpos, celestes
é tudo vendido sem nota e sem garantia
porque a fé prescinde propaganda
e o mau uso do dízimo dizima a diferença
aí, você almoça teu orgulho
com fome, com doce
com lama, perdão
almoça pra alimentar o corpo orgânico mecânico
cidade esférica e esburacada
lua de uma estrela
que de buraco em buraco se constrói
que de porta em porta fica sem saída
o homem todo funciona corpo
o corpo funciona todo homem
todo corpo homem funciona
homem funciona o corpo todo
todo corpo funciona, homem
João Pedro Maciel Schlaepfer
terça-feira, 1 de novembro de 2016
Texto sem título de Helena Mussoi — Menção Honrosa VIII PPBPP
Você, você
aí, o que quer? Quer uma narrativa estranha? Ah, pois sim. Dar-lhe-ei a mais
bisonha narrativa de todas as galáxias, tenho-no dito e feito.
Veio-me o
primeiro caldo de consciência bem como que em vala no mar de ressaca, o calabouço
escuro enorme e eu pequeno, pequeno, microbiótico (ou a-biótico?) e cego. Mas
não conseguia me mexer, estava amarrado a uma corda intransponível, e eu, eu
despido de identidade, sem sexo, sem nexo, insígnio.
Eu era e não
era. Não, não era. E o que se faz no status quo do não-ser, penso,
"cogito, ergo sum"? Errado, está errado! Ser E não ser, eis a
questão!
Ninguém me disse
por quê, ou como, ou quando. Só me lançaram à cela num relâmpago, eu, que não
tinha olhos, que não tinha nexo, que não tinha voz. "Por quê?",
indagava a mim mesmo. As paredes, se é que havia paredes, calavam. Se não o
houvessem feito, eu não as teria ouvido - como, ora? Não tinha ouvidos! Não
tinha olhos, nexo, voz nem sentidos, o ser que não era.
Sabe o que
não lhe contei ainda? A prisão, ela diminuía de tamanho, as paredes - se é que
havia paredes - foram cerrando no passar dos dias, quiçá dos séculos! Tempo?
Nenhuma unidade de tempo por lá. Imagine-se imóbil numa corda, sem sentidos e à
deriva, sem o porquê. Morrer? Não me foi apresentada essa opção. Era (mas não
era) eu sozinho, claustrofóbico no mais vasto dos espaços (era vasto?), um
átomo reles, um paradoxo mergulhado na vala.
As unidades de
tempo onde o tempo não havia se enfiavam por sobre as antes vigidas, peças de
eternidade transcendental sobrepunham-se às demais (já obsoletas), e eu
flutuava tanto quanto me permitia o segmento de corda. Não sei se esse segmento
é que foi cedendo conforme a passagem tempestuosa do não-tempo - mas tempo, não
obstante -, ou se a mim fora concedido o dom de sentir, pois sentia a corda
ruindo, agora eu a comandava o bastante para nadar pelo oceano turbulento.
Pois resolvi
me livrar da corda que me fazia prisioneiro. Chutei, esperneei, sacudi todos os
músculos que antes não se manifestavam, tanto quanto meu corpinho de
micro-a-bio me permitia. Eu chutei as paredes, encontrei as malditas paredes,
elas eram grossas e elásticas e a corrente a qual me atrelava se provou
corrente, não, não ruía, não cedia, solta, me solta! - não soltou. Ela não me
soltou. Ela se enrolou no meu pescoço que nem jiboia, ela me abraçou para
mostrar quem era o Mestre. Quis morrer de novo. Não me foi apresentada essa
opção.
Tente, tente
com força, imaginar-se preso numa cúpula - eu sei que era uma cúpula - escura,
dentro da vala, inundada de caldo escasso, e tente com força se livrar da corda
que era uma corrente, movendo-se, mas sem se mover, tal como apontou Zenão. Eu
quis morrer, sem sequer estar ciente de minha vida - era vida, não era vida?
Era e não era vida? -, sem saber por que lutar pela vida-não-vida em liberdade,
sequer com a certeza de haver uma liberdade.
Houve o
tempo-não-tempo em que a cela não mais me queria, a redoma não comportava mais
meu ser-não-ser, e foi-me expulsando o corpo sem nexo, empurrando-me para fora
das paredes elásticas. Naquele instante já estava eu acostumado à minha caverna
caricaturalmente platônica, não almejava a liberdade, se existisse a liberdade.
Eu amava meu cativeiro. Era a minha vala, era o meu caldo. Lutei mais, e quanto
mais lutava, mais a corrente cedia, avessa a meu desejo de permanecer
encarcerado. Sim, e gritos. Jorravam berros do lado de fora da cúpula, já me
havia sido concedido o dom de ouvir. E o de ver - mas o que havia a ser visto?
Nada, eu lhe digo. Eu sentia. Imerso na inundação caótica da Caverna, eu
sentia. Talvez fosse esse o porquê de ela, minha Caverna, não me querer mais.
Mais lhe valia um não-ser despido de identidade, sem sexo e sem nexo. Ela me
traiu. Ela me empurrou.
Ela me
empurrou, e fui escavando por um túnel tortuoso e estreito, o atrito me
esmagava numa sangria inestancável e inescrutável. Mesmo assim ela me empurrou.
Com força, a força de mil Aquiles e mil ondas dos mais revoltos dos mares.
"Para fora!", ela berrava, a Caverna, "Para fora!". Força,
mais força, eu conseguia escutar a Caverna me in-desejando, "Empurra com
força!".
Doeu.
Rasgou. Esmagou-me o crânio. Esmigalhou-me os miolos. Esgarçou-me como ao bicho
morto produto da caça, pronto para ir ao forno. Eu não queria ir ao forno,
tampouco sabia o que era forno. Quis morrer - podia até ser enforcado, não era
má ideia -. Não me foi apresentada essa opção.
Mas agora,
agora eu era. O não-ser era, e o não-tempo se media enquanto tempo nos
ponteiros do relógio. Eu via. Não estava mais escuro. Estava claro demais. A
luz fora da Caverna me cegou.
E meus
sentidos recém-concedidos foram-se desvanecendo num frenesi de cores que eu não
sabia que existiam, a corda-corrente apertava, apertava, a jiboia me abraçou, e
com ela a tão cobiçada morte. Vi o Ceifador. Ele andava a largos e lerdos
passos na minha direção. Parecia um não-sei-o-quê, porque não sabia de nada,
não é mesmo? Doeu. Doeu, mas era uma dor deliciosa. Explodir-me eu ia em tantas
cores e coisas bonitas, vai ver o caldo era para isso mesmo, para o gozo do
a-biótico.
Enfim, ah!,
enfim me foi concedido o dom de vociferar. A cobra largara meu pescoço (o que
era um pescoço?). Vociferei. Eu quis morrer - mas me fora arrancada dos
bracinhos-micróbio essa opção. E, afinal, lá sabia eu o que era um braço! Não
sabia de nada! A liberdade existia, e eu a odiava. Tranquei os olhos, porque
não queria mais ver. Cortaram a corrente com a facilidade com que se dá uma
machadada na jiboia, tão corpulenta e opressora, e tão mole.
O ar
rarefeito não era mais o caldo da vala. Era outra coisa. Cortaram a corrente.
Eu era livre. Não mais parasita. Não mais a-biótico. Não mais insígnio. Livre.
Livre. Livre. Livre. Livre. Livre. Livrelivrelivrelivrelivrelivrelivr-
-
A luz
piscava, ao que voz da parapsicológa cortou o ar, a jiboia mole pairante na
atmosfera, e indagou o paciente em transe.
- E
depois?
- E
depois do suplício eu aprendi.
-
Aprendeu o quê?
- A tomar
meu caldo de consciência ex utero.
Helena Mussoi
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