também é ave
o baba-ovo?
Vinni Corrêa
terça-feira, 31 de outubro de 2023
Os olhos de um poeta cego
Guilherme Ottoni
segunda-feira, 30 de outubro de 2023
Duas mãos e o sentimento do mundo (I)
I. No meio do caminho tinha um poeta
No meio do caminho tinha uma pedratinha uma pedra no meio do caminhotinha uma pedrano meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimentona vida de minhas retinas tão fatigadas.Nunca me esquecerei que no meio do caminhotinha uma pedratinha uma pedra no meio do caminhono meio do caminho tinha uma pedra.
O sr. Carlos Drummond de Andrade é difícil. Por mais que esprema o cérebro, não sai nada. Vê uma pedra no meio do caminho - coisa que todos os dias sucede a toda gente (mormente agora, que as ruas da cidade inteira andam em conserto)- e fica repetindo a coisa feito papagaio (...). E não houve uma alma caridosa que pegasse nessa pedra e lhe esborrachasse o crânio com ela? (FONSECA, G. 1938)
Luisa Issa
Labirinto
domingo, 29 de outubro de 2023
NA TABACARIA, poema de Vicente Valle
À tabacaria comprar uns cigarros no intervalo do jogo do Botafogo
— clima médio de empate —
dou um Sneakers pra minha filha para adoçar um pouquinho (empate com o Goiás...).
O dono da tabacaria vem a porta, tá procurando algo meu filho?
Me vê um cigarro desse aí.
Entramos,
pego o varejo, ouço no radinho: virada do Goiás — saio,
metendo o troco nas calças, e o dono da tabacaria comemora.
Ele vem comigo até a porta, falando — torcedor filho de puta:
Esteves! Vem procurar a estrela solitária aqui na minha bunda!
Acendo meu varejo no isqueiro preso à parede, pego minha filha pela mão, limpo os beiços dela, cheios de chocolate.
Vejo um homem nos encarando da janela do outro lado da rua. Eu conheço ele? Que que ele está olhando a minha filha?
Será um desses pedófilos, sequestradores de crianças, ou só mais um torcedor da porra do Goiás?
Adeus, ó Esteves! Ele grita
— vai queimar no fogo do inferno, seu goiano de merda!
E o dono da tabacaria sorriu.
sábado, 28 de outubro de 2023
Um texto de Miguel Suzarte
rio. epopeia incomum. a politeia centrada no um. na qual judas clamou ajuda. em que a ateia beata se ata ao bdsm. donde lêmures trepados saldam um conde educado aos coqueiros do leme. Miguel Suzarte
sexta-feira, 27 de outubro de 2023
NOTURNO
A lua, detrás dos prédios,
surge redonda e manchada,
e logo depois se esconde
atrás de uma nuvem rasgada,
como se, cheia de espinhas,
se escondesse envergonhada.
Zilka Vasconcelos
quinta-feira, 26 de outubro de 2023
GAGO
numa rua pequena em botaf—
fogo de manhã eu caminhava em direção a—
a um sebo que eu já conhecia e ti—
tinha esquecido
me encontrei já dentro sem perce—
ceber um li— livro em minhas mãos que já estava aberto e—
e as lágrimas da página
não
se anunciavam como
antigas ou minhas
não to— toquei pra ver—
to—
toquei pra ver se estavam secas. José Bial
quarta-feira, 25 de outubro de 2023
F&B, um poema de Bruno Madeira
um relógio parado na gaveta
uma cama vazia
uma "família"
dois ou mais neurônios que não cumprem seu papel
um nome
um sexo
uma identidade com nome e sexo
uma sexualidade
um sorriso
(ou melhor)
a falta de um sorriso
dois filhos distintos
um par de sapatos gastos
algo de muito errado
uma mãe
um pai
20 dedos sem tato
sem afeto
sem coragem
um tumor extremamente escondido
um maligno
um terno de listras brancas
um jarro de flores mortas
duas pessoas que se amam muito
mas nem tanto
Bruno Madeira
terça-feira, 24 de outubro de 2023
SONETO SEM SEDATIVO
Quem disse que meu nome é Zeferina?
Quem foi que escangalhou meu guarda-chuva?
A tâmara é mais doce do que a uva.
A mãe do cafetão é a cafetina.
Confete, fantasia e serpentina.
Comeram as tulipas as juruvas.
Não cabe um urinol num porta-luvas.
O nada é como um tudo que termina.
Que mais? Não terminou este soneto,
E já a inspiração pediu penico.
O metro é uma prisão, uma pedreira.
O filho do teu filho: eis o teu neto.
Nasci em Niterói, mas lá não fico.
E agora concluí a brincadeira.
segunda-feira, 23 de outubro de 2023
Um poema de João Lima
achou tão bucólico
domingo, 22 de outubro de 2023
VIAJAR NA MAIONESE
Como pode a maionese
ser considerada um meio
de transporte?
Viajar dentro de um
pote de maionese
é gorduroso demais.
A maionese não voa,
a maionese não anda,
a maionese não nada.
A maionese só faz
minhas tardes
saborosas e emulsionadas.
Afinal, as tardes
precisam de um
pouco de emoção.
Por isso, viajo na maionese:
o pior meio de transporte do mundo,
que rima com telecinese.
sábado, 21 de outubro de 2023
Melancolinear
Tenho os dentes
amarelados
e sempre que posso
mantenho-os todos
na boca fechada
sorrindo sem eles
estilo contido
e me envaideço
de minha proeza
porque não sorrir
nunca matou
ninguém Italo Diblasi
sexta-feira, 20 de outubro de 2023
Gota, uma tréplica
esticada verticalmente
em direção à roda
amarela
no meio do cinza
res
pingo
res
piro
fluo
com uma corrente de irmãs
do amarelo para o
cinza
lá
nós chegamos para um
cantinho assim
em direção ao breu
total
do esgoto
res
piro
lembrando da queda livre
e da roda amarela
quinta-feira, 19 de outubro de 2023
A gota, poema inspirado no conto de ontem
redondinha e cristalina
sou volátil como um gato
que se espreme num buraco
atrás de uma sardinha
minha espécie é ordinária
somos do tipo mutantes
nos encontramos nas calhas
e também nos hidrantes
quando pingo é um estouro
sou sempre bem notada
ou me secam com toalha
ou lambida de cachorro
quando o clima fica quente
muita gente evapora
é um caso recorrente
aqui em ibitipoca
eu gosto é mesmo é de matar
sede e me chamam assassina
porque odeio cloro
no meu reino, a piscina
tenho várias amizades
vida de gota é tão pública
clotilde é da minha idade
e é sempre tão cirúrgica… Paula Reis Vianna
quarta-feira, 18 de outubro de 2023
A gota, um conto de Vicente Valle
Ufa. Aterrizo sem grandes dispersões de massa, e, rapidamente, sou puxada para baixo por uma força estranha que me junta num fio vertical com várias manas. O tempo é curto demais, e não conseguimos colocar o papo em dia devidamente antes de sermos jogadas nos mares de morros cinzas, todas lutando para não ficar presas em bolsões de irmãs, onde, amanhã, se criam filhotes de zzzzz voadores.
Conseguimos nos desviar, eu e Maria Marta, com as irmãs lá da área dela, para a cascata que nos lança na rota da alegria, que me lembra a saída do Rock in Rio — igualmente em direção, o mais rápido possível, ao bueiro.
Prefiro, ao invés de me irritar com a demora, aproveitar o caminho. Olhar o céu, as irmãs em queda livre, agarradas nas marquises, brincando de mergulho. A fachada das lojas. As luzes.
A queda no bueiro, como todos que já viram Ratatouille sabem, é um momento arriscado. Pois, logo a frente, haverá uma fatídica bifurcação, que mudará o curso da história inteira.
Esquerda, direita? Sempre pego a esquerda. Tudo sereno. A essa altura, meu corpo está sujo, cheio de poeira, terra e bactérias. Espero logo virar fumaça para me limpar. Mas calma! Esse não é o caminho que eu conheço. Essa parede aqui era de uma cor meio atijolada. Hm, talvez seja um cano no-- ahá! Está ali a marca TIGRE, sem manchas. É um cano novo. Aonde ele dará?
Pela estrutura do poliéster, suspeito PVC. Maria Clotilde confirma. PVC. Isso tem cara de invencionice, daquelas que se vê em palestra ambiental, e ninguém nunca faz em casa. Pois é, alguém faz, pondera Clotilde. Bem pensado, Clô. Bem pensado. Opa. Começamos a ouvir um ruído, e o PVC de tigre começa a vibrar sutilmente. Eu me viro para Clô, e, sem precisar falar, entendemos: a rota é para cima. Há uma bomba, em algum lugar aqui.
Schuuuum! Segura minha mão, Clotilde! Estamos juntas nessa. A gente devia ter ido pela direita. Você e a direita, Clotilde! Me poupe! Segura forte que vai virar! Ueeeee, aaa, ihhh! Uhuuuul-- ah!
A serenidade de um decantador sempre me agrada. Contanto que não acrescentem aquele corno do Cloro à festa. Você sempre cirúrgica, Clotilde. Obrigado, irmã. Mas acho que hoje não. Esse daqui, pela cor atijolada, tem cara de...
Saint Johnny! How are you my friend? Very nice, very nice! Uh, let me see the ring! Beautiful. Et comment se passent le cours de français? Très bien. Au revoir, je t’aime!
Vem Clotilde, vamos logo pro andar de baixo que eu quero me limpar. Depois a gente volta. Eu me esfrego nas paredes pretas de chapisco, que absorvem pra fora as impurezas do meu corpo. Eu nunca entendi como isso não faz sair tudo preto no final, mas acho que certas coisas nesse mundo simplesmente não batem lé com cré, e essa é a graça.
Tomp, tomp. Já estou terminando de me limpar. Tomp, tomp, tomp, ẽĩr! E você, Clotilde? Já está cristalina? Tlin, tlin. Blup, blup. Toca a corneta. Chamado à guerra. Abre a torneira. Esse é meu momento favorito!
Daqui, onde caímos, um cilindro transparente, eu e a Clotilde julgamos a mobília do indivíduo.
Poltrona Sérgio Rodrigues! Você sempre cirúrgica, Clotilde. Panela Le Creuset. Um a um. Tem adega. Dois a um Clotilde. E caixa de delivery de japonês no lixo! Três a um. Perdi. Aponta o centro de campo, e game over. Vai, Clotilde, agora segura vem aqui, que ele vai erguer a gente.
A Clotilde fica nervosa na hora do escorrega, pois tem medo de escuro. Eu gosto. O escuro me faz repousar como nunca. Esse camarada aí tá com a garganta inflamada. Tudo bem, essa parte é rápida. Bom daqui a umas seis horas, eu vou ter uma conversa... privada, se é que você me entende. A Clotilde entendeu. Cirúrgica.
terça-feira, 17 de outubro de 2023
mímica, um poema de Kiki
eu vejo você como
um houdini de saia curta
fazendo aquele truque em que se
puxa a toalha de mesa rápido o suficiente
para que nada do que esteja posto sobre
espatife no chão
eu te olhava como quem
espera um desastre
glorioso taças e pratos
pelos ares
o tilintar da explosão
reverberando nos pelos eriçados
da nuca
um solo fértil e o brilho
dos cacos de vidro na pele
talvez a nossa grande vantagem fosse
saber que teríamos ao menos o asfalto
para servir nosso banquete ilusionista
ainda assim fomos capazes de tanto
rasgar a baía ao meio vencer
a barra seus buracos e bistrôs
até forjar uma morte santo cabaré beatnik
nossos olhos de alguma dignidade ainda
que fôssemos simples
batedores de carteira amadores
talvez seja essa a palavra:
o que nos salva das quinas intransponíveis
das pontas do mundo
uma sorte lançada nos dados
milagres magistrais
tremor e a ternura
bruta que nem sempre temos
e tudo bem Kiki
segunda-feira, 16 de outubro de 2023
Um poema de Domingos Guimaraens
É foda por que
São milhões de orgasmos
Pessoas gritando
Morrendo nascendo
Tudo está acontecendo
Agora
A cada letra que digito
Na tela nervosa
Rachada do celular
Agora
A cada dígito que roda
Na bolsa
Nas apostas
Na máquina registradora
Caça níquel
De cada bala perdida
Camisinha
Croissant
Cruzando os céus
Bilhões de gemidos
Estrelas que explodem
E depois a vida com suas esquinas
Encruzilhadas esquisitíssimas
Aquelas perguntas
Tudo
Agora
Ao mesmo tempo
Quantos tiros disparados?
Mensagens disparadas
Quantas bombas detonadas?
Agora
Milhões de pessoas
Que não param de trepar
Crianças sem mãe
Com mãe também
Ou mães
Sem pai nem comento
Pessoal tá nem aí
Mas as crianças estão
Chorando
Querendo mamar
Sugar algo de vida
Nessa esquina
Pós apocalíptica
Estranhíssima
Um letreiro neon
Até hoje o futuro
Tem um letreiro neon
Piscando frenético
Meio queimado
Aproveitando dessa luz
Uma mãe limpa a bunda da criança
No próprio joelho
Usa a espiga de milho
Que comeu no jantar
Pra limpar o coco na perna
Agora
Milhões dessas coisas
Que parecem bizarras e
Banais
Acontecem ao mesmo tempo
Eu cagando no banheiro
Você lendo
É como se estivéssemos
Sempre no mesmo lugar
Mas tem a vida
Esse caminho franzino
Entre o céu e o inferno
Ou o ar e o subsolo
Enfim
Qualquer coisa que você acredite
Porque
Agora
Tem um tanto de gente rezando
Abaixando a cabeça
O tambor comendo
E o medo
O gozo
A fé
Ainda bem que tem algo depois
Daquelas encruzilhadas
Esquisitíssimas
E daquelas perguntas
Ainda bem que alguém
Sabe responder
Tem alguém respondendo
Agora
Mas eu não escuto muito bem
Se falassem todos a mesma língua
E ao mesmo tempo
Agora
Eu escutaria
Não importa onde estivesse
No cu do mundo
Escuro
Imundo
Cu também é legal
Mas enfim
Eu escutaria a resposta
Mas é tudo um som
Indistinto
Esse ruído de fundo
No contrário do olho
Um montão de gente
Vendo
Agora
Qualquer coisa acontecer
No olho do cu
Na TV
Na tela de amoled
No relógio
Na laranja mecânica
Daquela encruzilhada
Cheia de perguntas
Que me perseguem
O que tem para comer?
O que você vai fazer
No final de semana?
Quanto sobrou do troco?
E eu não sei
O que dizer
Agora
Porque parece tudo banal
Mas é seríssimo
Os gritos de cada morte
Os gritos de cada gozo
Os gritos de cada choro
E a cigarra cantando alto
Até explodir
Em um verão incomum
Frio nos trópicos
Tanta gente com calor
Agora
O suor que escorre
Da parede da sauna
O sangue que escorre
Da menstruação
O samba
O sal
O semba
A cumbia
O tamborzão
Agora
alguém que te chama
Que me chama
A encruzilhada
A esquina
A pergunta
Mas eu não escuto muito bem
Queria que fosse diferente
Mais devagar
Mas
Tudo está
acontecendo
Agora Domingos Guimaraens