quinta-feira, 2 de maio de 2024

CADERNOS DE ROSA: uma lição benjaminiana sobre a arte da linguagem, de Marília Rothier Cardoso


(...) na contemplação filosófica, a idéia se libera, enquanto palavra, do âmago da realidade, reivindicando de novo seus direitos de nomeação. Em última análise, contudo, na origem dessa atitude não está Platão, e sim Adão, pai dos homens e pai da filosofia. A nomeação adamítica está tão longe de ser jogo e arbítrio, que somente nela se confirma a condição paradisíaca, que não precisava ainda lutar contra a dimensão significativa das palavras. W. Benjamin, Origem do drama barroco alemão. Meu duvidar é da realidade sensível, aparente – talvez só um escamoteio das percepções. Porém, procuro cumprir. (...) Acredito ainda em outras coisas, no boi, por exemplo, mamífero voador, não terrestre. Meu mestre foi, em certo sentido, o Tio Cândido.
Era ele pequeno fazendeiro, suave trabalhador, capiau comum, aninhado em meios termos, acocorado. (...) Tinha fé – e uma mangueira. 
(...) Tio Cândido olhava-a valentemente, visse Deus a
nu, vulto. A mangueira, e nós, circunseqüentes. Via os
peitos da Esfinge.

Guimarães Rosa, Tutaméia.


É possível rastrear, na correspondência privada de Guimarães Rosa, o momento em que a atividade literária deixou de ser exercício diletante para tornar-se uma tarefa de profissional. Esse momento, localizado nos meados da década de 1940, quando se aproximava a publicação de Sagarana — conjunto de contos inscritos num concurso em 1934 e laboriosamente recompostos, nas brechas do trabalho diplomático —, teria como referência as cartas de 6 e 30/11/1945, enviadas do Rio para Minas, no propósito de combinar com o pai uma viagem a Vila Paraopeba e Cordisburgo, onde pretende retomar “contacto com a terra e a gente”, não como passeio, mas “de cadernos abertos e lápis em punho para anotar tudo o que possa valer” (Rosa, 1999, p.178-181). Planejada com ansiedade e interesse, essa excursão foi feita a convite e em companhia do amigo Pedro Barbosa, a cuja família pertencia a fazenda das Pindaíbas, onde o grupo se hospedou. As anotações, tomadas naquele dezembro de observação e lembranças, foram guardadas sob o rótulo: “Notas da grande excursão a Minas”; hoje, podem ser consultadas no IEB-USP, na pasta E-26 do arquivo do escritor. São registros variados sobre a natureza da região, com destaque especial para o rebanho e as lavouras da fazenda, correspondendo sempre ao empenho de captar o vocabulário, a sintaxe e a perspectiva locais.

Quando se compenetra da situação de autor publicado e dedica-se ao preparo de novos livros — os livros que surpreenderão público e crítica, ao se lançarem em 1956, com os títulos de Corpo de baile e Grande sertão: veredas —, Guimarães Rosa desenvolve seu próprio método de pesquisa para a formação de um acervo das falas do povo do sertão. Seus cadernos de escritor nada têm dos desabafos e invenções do romancista burguês e urbano; são cadernetas de campo destinadas ao levantamento de um saber prático, comunitário, feito de crenças e charadas, provérbios e cantigas. Posteriormente, datilografadas e suplementadas com indicações de uso ficcional, testemunham a etapa da mediação criteriosa entre o legado arcaico de narrativas, as exigências da arte experimental erudita e a reflexão questionadora do pensador inconformado com os padrões consensuais da modernidade progressista.

Considerada a partir dos documentos de sua construção, a obra de Guimarães Rosa apresenta-se como ensaio estético-crítico, isto é, condensação de uma prática narrativa, que recupera ruínas de uma épica (brasileira) híbrida e, assim, vai desenvolvendo uma teoria da linguagem, cifrada, à maneira alegórica, nos enredos encadeados. Para apoio dessa leitura complexa, recorre-se aos ensaios de Walter Benjamin cuja afinidade com a escrita rosiana, descontadas as defasagens de tempo, latitude e cultura, é evidente. Tanto no ensaio de juventude, “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem humana”, quanto em textos capitais como as propostas epistemológicas introdutórias à tese, Origem do drama barroco alemão, e como o prefácio “A tarefa do tradutor”, Benjamin formula o conceito de linguagem para além de qualquer intencionalidade comunicativa ou qualquer utilitarismo informacional: “o que a linguagem comunica é a essência lingüística das coisas” (BENJAMIN, 1971, p.81). Em conseqüência, o conceito engloba e aproxima as línguas articuladas dos homens e a linguagem “muda” da natureza, operando um deslocamento vertiginoso da razão lógica para a revelação mística. Essa trajetória é, precisamente, o ponto de encontro da aventura filosófica do alemão com a viagem ficcional do brasileiro. Para interferir em circunstâncias político-culturais diversas, ambos escolhem estratégia equivalente – transportar o leitor para um tempo simultâneo onde os mitos modernos, propostos à maneira do oráculo arcaico, perdem sua credibilidade autoritária. Seja para Benjamin, seja para Guimarães Rosa, a tarefa da “nomeação”, atribuída aos homens, se os destaca dos demais seres é em função do empréstimo de uma linguagem sagrada comum a todos e, portanto, tanto melhor empregada quanto mais experimentalmente próximo o nomeador esteja das coisas nomeadas. Se, na obra benjaminiana, o filósofo tem de apropriar-se do discurso do poeta, com sua margem intransponível de simbolismo enigmático, nas estórias de Rosa, a função narrativa deve ser ocupada pelo vaqueiro ou pelo jagunço, pelo menino ou pelo louco, aquele que ouve “o recado do morro” e freqüentemente toma a forma de animal ou planta.

O trabalho de Benjamin com e sobre a linguagem corresponde, grosso modo, a um refinamento e complexificação, ao longo de duas décadas, do texto de 1916, “Sobre as linguagens em geral e sobre a linguagem humana”. Paralelamente, é possível perceber, no início diletante de Rosa (desde os contos publicados em O Cruzeiro até Sagarana), um esforço ousado de produzir e praticar uma teoria da linguagem, na contramão da modernidade burguesa, pelo exercício do papel adâmico de nomeação. No entanto, só se pode dizer que esse esforço ganhou efetiva consistência, a partir dos meados dos anos quarenta, quando as pesquisas do autor são sistematicamente desenvolvidas e preservadas e, assim, dão conta da constituição de um instrumento lingüístico plural, com potência reveladora. Em “São Marcos”, por exemplo, onde se delineia uma versão inicial de teoria da linguagem, é o intelectual urbano (o morador recente do Calango Frito) que protagoniza a experiência radical com a percepção e o trabalho de nomeação da natureza enquanto conduz a narrativa. Por isso mesmo, se o conto evidencia a virtualidade mágica da linguagem, posta à prova pelo choque da cegueira, sua composição é incomodamente preconceituosa, pois o narrador citadino adota um humor canhestro quando apresenta tanto o poeta popular quanto o feiticeiro, ainda que ambos lhe tenham servido de mestres na revelação do “canto e plumagem” das palavras (ROSA, 1967, p.236). Muito diferente é a estrutura de “Cara-de Bronze”, um dos três contos que compõem a “parábase” de Corpo de baile. Aí, a trama não se conduz por uma voz individual; ao contrário, faz-se drama polifônico para narrar, em plena potência, uma trajetória de produção da poesia.

No curso do desenvolvimento de uma teoria da história compatível com sua teoria da linguagem, através do uso do instrumental místico de revelação da “verdade”, que, em vertente messiânica, funciona combinado criticamente com o materialismo dialético, Walter Benjamin faz-se arqueólogo da metrópole moderna. Por seu lado, Guimarães Rosa elabora, com rigor, um discurso mítico-ritualístico, apropriado ao confronto com a história moderna, empreendendo uma etnografia e uma etnologia das comunidades do sertão brasileiro. E se, ao contrário de Benjamin, Rosa descarta a postura política explícita, não deixa, nunca, de operar diplomaticamente, através das alegorias do latifúndio e da jagunçagem, sobre a esfera do poder político-econômico.

Voltando à correspondência de Guimarães Rosa, referida no início, e tomando-a como apoio na datação de sua trajetória de pesquisa, considera-se a longa troca epistolar com o amigo e conterrâneo, o empresário Pedro Barbosa (o mesmo da fazenda das Pindaíbas); aí, tanto quanto no diálogo com o pai, a especificidade do interesse literário do diplomata vai ocupando parte do espaço das notícias. Em 16/11/1948, já de volta à Europa, depois da “excursão a Minas”, Rosa pede: “Quando você voltar ao Rio, de uma de suas viagens ao feudo paraopebano, escreva-me contando alguma coisa que transmita o cheiro dos bogaris de lá, o barulho do ‘carneiro’ de tirar água, e o berro dos bois, distintos semoventes.” 1 Ao lado das notas, tomadas na fazenda, três anos antes – e, àquele momento, provavelmente, objeto de trabalho para a composição ficcional —, surge a necessidade de vivificar a pesquisa com vozes envolvidas com a vida sertaneja. Por isso mesmo, em 27/01/1949, há outro pedido semelhante — a assinatura da “Gazeta” de Paraopeba. Além de Pedro, que, por sua vez, recebe o pedido de recolher depoimentos de empregados e da família, Florduardo Rosa, seu pai, vai-se tornando um colaborador assíduo da obra do filho. Como bom narrador, alheio ao mundo da literatura culta, deve contribuir com a memória das vilas mineiras, onde os ciganos acampavam, as boiadas faziam pouso para serem embarcadas nos trens da Central e os comerciantes, nos dias de folga, exercitavam-se como caçadores. A aparente futilidade de uma carta particular é o espaço em que o autor inventa sua “máquina de escrita”, pois encontra, nos destinatários, informantes preciosos do discurso do trabalhador rural, discurso impregnado de um tempo anterior ao tempo parisiense, que pode servir de senha para uma leitura “a contrapelo” dos projetos de desenvolvimento latino-americano. Ao dedicar-se, paralelamente, à retomada de notas etnográficas da atividade pecuária e à reunião de lembranças e depoimentos de brasileiros próximos dos remanescentes de um sertão híbrido e arcaico, o escritor cria as condições de enunciação de um texto artístico coletivo, cuja anacronia – ou policronia funciona como crivo crítico tanto dos pressupostos estéticos quanto da conjuntura política daquele momento.

Cruzando a correspondência com as cadernetas de campo e os posteriores “estudos para a obra”, encontramos, pouco a pouco, indicações do processo compositivo das estórias rosianas. Significativamente, na versão passada a limpo das “notas da excursão a Minas” de 1945, dentre as observações sobre a lida com o gado e a fabricação da farinha de mandioca — observações atribuídas a Avelino, “homem sabido”, Pedro Figueiredo e Tio Moreira —, registrou-se a frase: “o boi arrancou de lá (...), deu uma peitada na porteira” , que deve ser aproveitada (conforme indicação à margem) no conto “Cara-de-Bronze”, ainda em manuscrito. Mesmo que, na versão publicada, a frase, tal e qual, não apareça, a violência, que ela transmite, se desdobra em formulações semelhantes para descrever o movimento frenético da apartação de gado em dia de chuva: “E o gado queria mortes. Trusos, compassavam-se correndo, cumprindo, trambecando, sob os golpes e gritos dos homens (...)” (ROSA, 1978, p.75) Com seu formato de diálogo — entre teatro e roteiro para filme —, “Cara-de-Bronze” destaca o resultado das anotações dos cadernos: é a coleção das falas dos vaqueiros a melhor estratégia de resgate da cultura sertaneja como “imagem do pensamento”. O trabalho rural, com seu discurso cotidiano e suas trovas e ditos, conservadores de uma sabedoria e de uma ética, transborda dos relatos individuais. Só acumula a mesma força do gado no meio da tempestade, se a poesia, que o nomeia, produzir a dissonância do burburinho de vozes, berros, trancos e toques de viola. 

O que determina o método peculiar do trabalho etnográfico de Guimarães Rosa 
(bem como sua contrapartida etnológica) é a busca bibliográfica paralela. As viagens pesquisa do escritor percorrem um roteiro traçado pela linguagem, que tanto se escreve nos livros – livros de percursos épicos e de viagens científicas – quanto se inscreve na memória. O arquivo do escritor compõe-se, assim, de cadernetas de campo e cadernos de notas de leitura, cada um dos quais desdobrando-se em pilhas de folhas (na maior parte datilografadas) de cópia, combinações, acréscimos e mudanças da matéria de cadernos e cadernetas. Nesses grupos de folhas datilografadas, chamados de “estudos para a obra”, registros e citações se alternam e produzem as expressões lingüísticas cunhadas pelo escritor e marcadas pela sigla m%. Dentre as cadernetas de campo, a única efetivamente conhecida (identificada pelo número 6) é aquela em que estão as observações correspondentes à última parte da viagem de maio de 1952, quando Rosa acompanhou a boiada, conduzida por Manuelzão, entre a fazenda da Sirga (onde passou alguns dias de adaptação e preparativos) e a fazenda de São Francisco, pouco adiante do Capão do Defunto, onde foi feita a reportagem de O Cruzeiro, que celebrizou a imagem do escritor a cavalo. As cadernetas da excursão de 1945 e da viagem de 1952, entremeadas com as citações e referências dos cadernos de notas, alimentaram vários conjuntos de “estudos para a obra”, reunidos sob o título de “Boiada”. Este é, certamente, o tratamento primeiro da tarefa de fabulação, que resultou nos livros de 1956 e nas coletâneas posteriores de contos curtos. É curioso observar, em contraponto, a pesquisa, empreendida por Benjamin, desde 1927, como exercício de historiografia dialético-messiânico-materialista do século XIX — atividade emblematizada no “trabalho das passagens” —, e o acervo rosiano de pesquisas, definido pela imagem da “boiada”. Entre o objeto urbano e o rural, destaca-se um traço de afinidade – o movimento, que fascina o pesquisador e orienta sua tarefa. O movimento econômico, que, em Paris, se concentra nas galerias do comércio elegante, definindo a ordem hegemônica do capitalismo, surge como atividade pecuária, na periferia. A ambigüidade do transeunte metropolitano, ora consumidor, ora flâneur, também se repete no cavaleiro sertanejo – vaqueiro controlado pelos interesses do proprietário ou jagunço resistente ao controle e à lei. É a tensão resultante do caráter incompleto ou aberto desse movimento dialético que marca a escolha e a associação (em geral, desconcertante) dos registros, desencadeando o rigor crítico dessa “constelação”.

No conjunto dos estudos da “Boiada”, ganham destaque as falas dos moradores das 
vilas e fazendas, especialmente aqueles que, lidando cotidianamente com os animais, sabem representar em imagem (ou “idéia”) iluminadora o nexo necessário entre o mundo concreto das coisas e o mecanismo mental da compreensão. (Mais que os vaqueiros, talvez sejam os bobos e os meio alucinados os que melhor revelam as operações do pensamento.) A importância desses produtores sertanejos do conhecimento é ressaltada pelo paralelismo entre suas falas e as citações dos clássicos e dos cientistas.

A escolha revolucionária do caminho místico para a produção do conhecimento — 
de um conhecimento, elaborado em contexto multicultural periférico, que se deseja alheio às hierarquias político-sociais — implica numa atitude de contemplação diante do objeto. Assim, o processo de engendramento narrativo de Guimarães Rosa envolve a multiplicação de inscrições das imagens verbais, que se repetem, do manuscrito da caderneta de campo para a primeira folha datilografada de estudo e desta para a segunda e, às vezes, para a terceira, sempre experimentando pequenas variações. É como que um ritual de traduções em constante busca de aperfeiçoamento. A contemplação do objeto concreto — com o objetivo de cumprir uma ordem, como a que foi dada ao Grivo, de demanda do “quem das coisas” — estende-se, no caso do escritor, à contemplação das formas lingüísticas em sua concretude de símbolo. Para bem seguir esse ritual contemplativo, o escritor parte da
nomeação sertaneja, proferida pelos vaqueiros, e, ao copiá-la, deixa que o nome (ou a expressão nomeadora) se contamine por termos de outras línguas ou registros culturais. São esforços complexos e delicados de tradução, uma vez que imitam o gesto adâmico aproveitando a própria fala do que se expressa sem voz articulada.

Na caderneta 6 da viagem de 1952, lê-se: “No brejo: garças; o monjolinho, do 
tamanho do galo do campo, mas ‘tem muito é pernas’; tem o bico preto, comprido e o pescoço comprido, que fica pendendo e batendo, feito um monjolo. É chumbadinho de preto e branco. Anda aos casais. Faz: — Cuik, quick!...” 4 Aí se percebe um misto de descrição, explicação do nome corriqueiro e empenho em traduzir como que a auto-nomeação do pássaro. Para ajudar nessa tarefa atraente e impossível, páginas adiante, transcreve-se um glossário de termos ciganos: “capado — balinchõn / defunto — mulõn / espora — buzég”. Nas folhas de estudo, a outra etapa do rito tradutório, desdobra-se o trabalho de aproximação do verbo sagrado, através da transcrição de quadras e da tradução da fala dos bichos: “O touro (Tarzan) que chegou com as vacas e sentiu outros touros (boiadeiros) no curral, e desafiava: U – hu – han! U – hu – han — tossido, sem parar”. E, diante do desafio da traduzibilidade, quando à beira da revelação da poesia, o escritor impõe pequena marca pessoal à linguagem mágica da criação: “m%: o quirquincho ou quirquinxo de um tatu caçado (kirkincho = o tatu , Aymara).”


*           *          *

Como Susana Kampff Lages, recentemente, vários estudiosos da obra de Guimarães Rosa têm destacado as afinidades entre a construção desta e o pensamento de Walter Benjamin, mostrando, nas estratégias escriturais do brasileiro, uma surpreendente afinidade com as proposições e a prática daquele poderoso filósofo da historiografia moderna. Podem-se apontar alguns desencontros biográficos desses escritores que, não fossem as circunstâncias adversas, teriam-se entendido perfeitamente bem: em 1938, Rosa foi enviado para Hamburgo na função de cônsul-adjunto mas, nessa altura, Benjamin já havia sido obrigado a exilar-se na França; três anos antes, cogitou-se o nome de Benjamin para integrar o corpo docente da recém fundada Universidade de São Paulo, é possível, no entanto, que o convite nunca tenha sido formulado efetivamente. Mais instigantes, talvez, que essas especulações, seja um exercício ensaístico de crítica — como os que Eneida Maria de Souza vem sugerindo e desenvolvendo – onde a reflexão se apoie num encontro imaginário entre o sertanejo cosmopolita e o europeu moderno capaz de especular com a herança alegórica do narrador arcaico. Tal encontro dar-se-ia (quem sabe?) numa espécie de pós-Babel, local do cruzamento de esforços tradutórios. Apegados à materialidade do som das falas, tanto familiares quanto exóticas, e da forma das escrituras (fonéticas e ideogrâmicas), Benjamin e Rosa não se surpreenderiam com os “impasses de mágica”, desencadeados por sua conversa. Imediatamente, perceberiam a possibilidade de compartilhar as artes da astrologia e da cabala, mais um conhecimento oblíquo de velhas religiões orientais, sem perderem pé nas urgências político-econômicas da contemporaneidade e sem compromisso com dogmas ou constrangimentos de ordem epistemológica. Logo, estariam trocando seus cadernos de notas e, enquanto o brasileiro transcrevesse, para seu uso, algumas citações sobre o flâneur parisiense, Benjamin, por sua vez, copiaria uma quadra sertaneja, que apreende os paradoxos da cultura na própria ordem da natureza:

O bicho que tem no mato
o melhor é pássaro-preto
todo vestido de luto
assim mesmo satisfeito.


Marília Rothier Cardoso 

Nenhum comentário: